quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

PENSAMENTO DO DIA: CONTRA O DOGMA

 

Novo texto de Eugénio Lisboa:

«Aquilo de que o mundo precisa não é de dogma, mas de uma atitude de investigação científica combinada com uma crença de que a tortura de milhões de pessoas não é desejável, seja ela infligida por Staline ou por uma divindade imaginada à semelhança dos que nela acreditam.»

 Bertrand Russell 

 Esta salutar reflexão de Bertrand Russell, que teve o privilégio insigne – verdadeira medalha de mérito – de ter por inimigos jurados todos os fanáticos de direita e de esquerda, deve andar connosco, como guião lúcido, que nos ampare no pedregoso caminho da vida, por entre falsas utopias, sempre apoiadas em sinistras ameaças para governo dos recalcitrantes. 

É curioso como, de cada vez que um regime totalitário ascende ao poder, elege logo, como seu principal inimigo, não o adversário da véspera (que pode rapidamente converter à “boa doutrina”), mas as personalidades independentes que, essas sim, são realmente “perigosas”. Assisti a isso, em Moçambique, quando a Frelimo ali subiu ao poder. Os jornais como o NOTÍCIAS, que, até aí, fora o promotor entusiasta do Estado Novo e da guerra colonial, não foram minimamente incomodados e a rapaziada fascista que os redigia, foi rapidamente reciclada, tornando-se entusiástica bajuladora do adversário da véspera (não hesitando, para mostrar serviço, em denunciar, como não suficientemente revolucionários, os corajosos resistentes à boa doutrina anterior…), Que eu saiba, o primeiro e talvez o único periódico que a Frelimo “fechou” foi A VOZ DE MOÇAMBIQUE, que tanto incomodara o Estado Novo. Considerou perigosa a sua independência – e, nisso, até tinha razão. Alguns dos mais antigos colaboradores desse periódico não se tornariam facilmente colaboracionistas, embora pudessem ser colaboradores críticos. Mas estes nunca interessam às ditaduras. 

 Nunca é demais reler mentes insubordinadas aos espartilhos ideológicos, os quais gostam de nos servir soluções fabricadas no conchego das cozinhas do Partido. Soluções que são para seguir obedientemente e não para serem escrutinadas. 

Nada há tão parecido com as religiões organizadas como as ditaduras (de direita ou de esquerda), com o seu pensamento único, com a censura bem estabelecida, com a sua inquisição laica ou sagrada, com a sua polícia do pensamento e com as suas câmaras de tortura (e até, sendo necessário, com os seus pistoleiros a soldo). 

Russell é uma lufada de ar fresco e, com o seu espírito lúcido e não hipotecado a utopias salvíficas, restitui-nos a uma fundamental decência humana. Vale sempre reeditá-lo e dá-lo a ler à juventude. É, além do mais, um admirável escritor, na linha da grande prosa de ouro inglesa: lúcida, transparente, destemida, não arrebicada. 

Eugénio Lisboa

13 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Sr. Eugénio Lisboa, Estaline foi um produto da sua época, e como tal, muitos reclamam que, se não devemos esquecer os seus horrores, também não devemos esquecer os méritos, os que teve de acção na derrota do nazismo. Aceita que ele teve méritos Sr. Eugénio Lisboa?

Houve outros homens, igualmente produtos da sua época, que poderiam também ter servido de mote para Russell, um deles é o também inglês, Oliver Cromwell, que ficou na história como um ditador, com os mesmo tipo de horrores de Estaline. Na Inglaterra existem monumentos em sua homenagem, e, pasme-se, Sr. Eugénio Lisboa, que ele foi eleito um dos 10 britânicos mais importantes de todos os tempos. Para Eugénio Lisboa, Cromwell, foi um ditador genocida ou um herói?

E o que dizer de Napoleão, outro produto da sua época, que na Franca é hoje um herói. A sua loucura, quantos milhões de homens levou para a morte? Existem historiadores que o comparam a Hitler. Concorda?

Porque é que o Sr. Eugénio Lisboa fala preferencialmente do ditador Estaline e de Hitler, e nunca explicita os outros ditadores? Será porque os outros são heróis, nos respectivos países, e é só por isso?

Eugénio Lisboa disse...

O monstro Staline não foi um produto da sua época, tal como Hitler, Mussolini, Franco ou muitos outros. Homens desta dimensão - monstros ou génios - não são "produtos da sua época", são, antes, "produtores da sua época". Gostaria de saber quais foram os "méritos" de Staline que possam compensar as dezenas de milhões de mortos por que foi responsável - e não se tratou apenas de infames purgas de quem não aderia ao pensamento único. Perseguiu cientistas sérios a favor de charlatães, como Lysenko, cujas "teorias" mataram milhões à fome, perseguiu grandes escritores e compositores impondo uma grotesca "arte oficial" e liquidou excelentes generais, que, depois, tanta falta fizeram. Contra o aviso destes generais, recusou-se a armar a Rússia contra um mais do que provável ataque de Hitler, o que tornou a primeira parte da invasão alemã um quase passeio até às portas de Estalinegrado. Estalinegrado foi uma epopeia dos soldados russos, mas não de Staline. Grande parte dos heróis de Estalinegrado nem espingardas tinham e as ordens eram de se apossarem das espingardas dos mortos. Tudo consequência da obtusidade do chefe do Kremlin. Staline foi um monstro da dimensão de um Macbeth e tentar desculpá-lo como um produto da sua época é colocar-se, no plano moral, no mesmo patamar por ele ocupado. O Sr. ID cita outros monstros para desculpar Staline: um monstro não desculpa outro. E, por acaso, alguns dos que cita até tiveram méritos compensatórios, o que não foi o caso de Staline. Não lhe vejo nenhuma atenuante. Por acaso Lenine também não viu, tanto que, no leito de morte, avisou que não entregassem o partido a tal homem... O Sr. ID, tal como muitos stalinistas não reciclados, é, felizmente, uma espécie em vias de extinção. Valha-nos isso!
Eugénio Lisboa

Ildefonso Dias disse...

"O homem verdadeiramente culto é discreto, reflectido; estuda e interroga os livros, os factos e os homens, num esforço constante de extensão do consciente. Não podendo tudo conhecer a fundo, separa claramente aquilo que conhece apenas pelo exterior daquilo que possui realmente por conhecimento próprio, e marca sempre, com cuidado, os limites em que pode mover-se. E aquilo que não possui a fundo, procura delimitá-lo com consciência, isto é, ter a consciência nítida das suas lacunas e das suas deficiências." [Abel Salazar]

É a ausência dessa consciência de que nos dá conta Abel Salazar, que leva o Sr. Eugénio Lisboa a escrever sobre Lysenko. É o Sr. EL atribuir a si, "o direito de discutir aquilo que só conhece superficialmente de raspão, ou conhece por uma forma global, no pouco mais ou menos do semi-conhecimento".[AS]

"O que é próprio do verdadeiro homem culto é não emitir opinião senão sobre aquilo que bem conhece por esforço pessoal, e sobre o qual tem reflectido"[AS].

"Entre o pseudo-homem culto, irreflectido e vivaz, e o homem inculto mas reflectido, a preferência deve ir, sem hesitações, para o ultimo. Porque a forma da mentalidade e a ética intelectual têm muito mais importância do que a pseudo-cultura."[AS]

É pois naturalíssimo que o Sr. EL tenha repugnância a homens como Abel Salazar e Bento Caraça, e se sinta feliz pela extinção de outros homens.

Eugénio Lisboa disse...


Não responderei mais a ID, porque é um senhor de má fé, ao afirmar que tenho repugnância por Bento de Jesus Caraça e Abel Salazar. Admiro-os e sempre admirei no que têm de admirável e rejeito aquilo em que possam ter estado errados. O facto de BJC e AS terem sido perseguidos pelo Estado Novo (o que foi estúpido e criminoso) não os torna, só por isso, imunes à crítica, no que estiveram errados. Não é do meu feitio canonizar ninguém. O Sr. ID não argumenta, limita-se a transcrever frases de pessoas que idolatra e que não eram, eles próprios, idólatras. O facto de Bento Caraça ter sido um admirável Professor de Matemática e um grande divulgador de conhecimento, não lhe dá razão na sua adesão a um regime monstruoso como foi o de Staline. Talvez tenha apenas a atenuante de, na altura em que morreu, não ter tido ainda conhecimento do que na União Soviética realmente se perpetrava.
Se o Sr. ID continuar a afirmar, sem uma única prova, que tenho repugnância por Bento Caraça e Abel Salazar, poderei ter de o fazer provar, em instância própria, aquilo que diz. O Sr. ID aprendeu bem um dos instrumentos mais frequentemente usados pelo regime que idolatra: a calúnia, a má fé, a invenção de factos que nunca o foram. Quanto à superficialidade dos meus conhecimentos, desejo ao Sr. ID que tenha dedicado ao estudo e ao conhecimento as horas e os dias e os anos que eu lhes tenho dedicado. Ser ignorante seria a sua única desculpa, mas o Sr. não é só ignorante: mente e inventa, para levar a água ao seu moinho. E sabe por que o pode fazer? É só porque vive sob um regime que não faz aos que divergem o que fazia o país de Staline, que o senhor idolatra. A mais completa falta de escrúpulos e uma espécie de loucura moral definem perfeitamente os patrões das ditaduras. Mas, aqui, estamos a entrar nos domínios da psiquiatria.
Eugénio Lisboa

Anónimo disse...

Resumindo:
Entre os dogmáticos, o Staline é bom porque venceu a guerra contra a Alemanha e o Hitler é mau porque perdeu a guerra contra os russos.
Entre os democráticos, o Truman é bom porque decidiu lançar a bomba atómica e ganhou a guerra contra o Hiroito.
Alexandre, o Grande, foi bom ou foi mau?

Ildefonso Dias disse...

Os professores Carlos Fiolhais e David Marçal, não hesitaram em dizer que Lysenko era um charlatão e que não sabia sequer o que era o método cientifico, porque eles o conhecem (tenho a convicção de que, hoje, não estarão orgulhosos dessa afirmação).

E porque o conhecem, estes professores sabem o que é preciso para concluir que milhões morreram à fome. Primeiro, verificavam: qual a produção de grão antes de Lysenko?, qual a produção de grão durante a época de Lysenko? e citavam as fontes... verificavam se houve aquisição de grão no exterior... analisavam as tábuas de mortalidade, correlacionavam as áreas de baixa produção e elevada mortalidade... etc, etc.

Mas como não fizeram nada disso, naquilo que li sobre o que eles escreveram sobre Lysenko, a verdade é que também não afirmaram que ele matou milhões à fome... porque isso seria não cientifico e seria caluniar.

Quanto aquilo que o Sr. Eugénio Lisboa faz ao insinuar que o professor Bento de Jesus Caraça, aderiu às monstruosidades de Estaline, isso tem um nome, é caluniar. E contra isso nada, só vejo mais uma razão para citar o professor Abel Salazar.

"Entre o pseudo-homem culto, irreflectido e vivaz, e o homem inculto mas reflectido, a preferência deve ir, sem hesitações, para o ultimo. Porque a forma da mentalidade e a ética intelectual têm muito mais importância do que a pseudo-cultura."[AS]

Eugénio Lisboa disse...

Para esclarecimento dos meus leitores de boa fé e só para estes:
Eu escrevi: "Talvez [Bento de Jesus Caraça] tenha apenas a atenuante de, na altura em que morreu, não ter tido ainda conhecimento do que na União Soviética realmente se perpetrava".
A isto comenta o meu inquisidor favorito e obstinado, com a clareza que se lhe conhece: "Quanto aquilo que o Sr. Eugénio Lisboa faz ao insinuar que o Professor Bento de Jesus Caraça aderiu às monstruosidades de Staline, isso tem um nome, isso é caluniar."
Isto é uma ilustração perfeita dos métodos usados sistematicamente na pátria de Staline e Lysenko: ali chamava-se caluniador ao caluniado e criminoso à vítima do crime.
Sugiro aos meus leitores de boa fé e só a estes que leiam, sobre Lysenko, o longo artigo na Wikipedia, o que lhes evitará a consulta de muitos outros livros e referências.
Eugénio Lisboa

Ildefonso Dias disse...

Não sendo eu um leitor de boa fé para o Sr. Eugénio Lisboa, fui contudo ler o artigo que sugeriu da wikipédia.

Lá pode-se ler: "Um artigo no The Atlantic sugere que Lysenko desempenhou um papel ativo nas fomes que mataram milhões de soviéticos e que as práticas de Lysenko prolongaram e exacerbaram a escassez de alimentos, mas os argumentos para essa alegação permanecem obscuros." [fonte: wikipédia]

Pergunto: É com base em argumentos obscuros que o Sr. Eugénio Lisboa conclui,e quer que os seus leitores de boa fé concluam, também, que milhões de pessoas morreram de fome?

Fui também ler o Excerto do livro “A Ciência e os seus Inimigos” de Carlos Fiolhais e David Marçal (Gradiva, 2017):

Escrevem os professores Carlos Fiolhais e Davida Marcal: "Só havia um «pequeno» problema: a teoria é falsa, pelo que as plantações nela baseadas não vingavam, circunstância que levou à morte pela fome de faixas enormes da população."

Certamente que estes professores e cientistas não consultaram apenas a Wikipédia, consultaram outras fontes que serão confiáveis, mas lamentavelmente não disseram que fontes foram consultadas.

Eugénio Lisboa disse...

Da insidiosa arte de se citar só parcialmente, ao sabor das nossas conveniências (sempre só para os leitores de boa fé):
Do artigo sobre Lysenko, na Wikipédia, figura também este excerto que o meu inquisidor se "esqueceu" de transcrever: "A China de Mao Tse Tung adoptou os seus [de Lysenko] métodos no final dos anos 1950 (durante o Grande Salto para a Frente] e sofreu fomes ainda maiores. Os camponeses foram reduzidos a comer casca de árvore e excrementos de pássaros" Diz-se também que as vítimas foram "apenas" trinta milhões. Pequenos danos colaterais...
A arte de reescrever a história e os textos, incluindo a supressão ou a inclusão posterior de fotografias, foi muito praticada no regime de Lysenko e admiravelmente aprendida pelos seus discípulos, de que restam, felizmente, poucos...
Eugénio Lisboa

Ildefonso Dias disse...

O Sr. Eugénio Lisboa com o exemplo da China e Mao Tse Tung, vem acusar-me de supressão, mas o que faz é dar-me razão quando digo que é preciso dados objectivos que comprovem do ponto de vista cientifico que de facto morreram milhões de pessoas à fome pelos métodos de Lysenko.

Quem poderá acreditar, sem reservas, que os Chineses indo à URSS, e testemunhando tal miséria humana, se é que tal existiu pelas razões que aqui se discutem (pessoas famintas, por causa de Lysenko, só com pele e osso, a morrer) se prontificaram a acolher no seu próprio país isso, e que tal provocou "fomes ainda maiores"?

Ninguém acredita, creio que, nem mesmo, o Sr. Eugénio Lisboa. É que os Chineses têm, de sobejo, dado provas ao mundo de são pessoas inteligentes.

Eugénio Lisboa disse...

Para os meus leitores de boa fé - e só para esses:
TRÊS PENSAMENTOS SOBRE A TEIMOSIA
1) "Teimosia e estupidez são gémeos" - Sófocles
2) - "Teimosia é firmeza de carácter adulterada pela estupidez. - Nietzsche"
3) -"Em face de um obstáculo que é impossível superar, teimosia é estupidez" - Simone de Beauvoir

Através dos séculos, les beaux esprits se rencontrent toujours!
Eugénio Lisboa

Ildefonso Dias disse...

A Europa está novamente à beira do precipício.
Ao Sr. Eugénio Lisboa falta-lhe agora o espantalho do comunismo para acenar.
Teimosamente acredita que as mordomias que o mundo capitalista lhe proporciona valem mais que tudo o resto.
Incapaz de compreender o mundo actual, porque isso significa ter que rever muitos dos seus Dogmas, teimosamente continuará sem compreender a realidade, nem sequer a pode analisar com algo que possa ter sentido explicativo.

Eugénio Lisboa disse...

Sempre só para os meus leitores de boa fé:

DOIS PENSAMENTOS SOBRE O DELÍRIO

1) - "E não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico como qualquer outra série de ideias e actos humanos." - Antonin Artaud

2) - "Temo que os animais considerem o homem como um semelhante que perdeu a razão animal sadia, como um animal em delírio(...)". - Nietzsche

O delírio faz parte do nosso quotidiano. Temos de nos habituar a viver com ele, como vivemos com o vírus da gripe ou outro qualquer. E devemos ter a maior compreensão para com aqueles que, no seu delírio, pensam, como observava o grande Mencken, que, pelo facto de uma rosa cheirar melhor do que uma couve, uma sopa de rosas é melhor do que uma sopa de couves.

Eugénio Lisboa

DUZENTOS ANOS DE AMOR

Um dia de manhã, cheguei à porta da casa da Senhora de Rênal. Temeroso e de alma semimorta, deparei com seu rosto angelical. O seu modo...