N´A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Dinis compõe marcantes retratos do "professor das primeiras letras" no Portugal rural do século XIX. Retratos que têm por pano de fundo o "atraso cultural em que o povo estava mergulhado" (Abreu, 2010, p.39), e uma especial vulnerabilidade a vontades políticas, tanto da província como da capital.
Ciente da importância da educação escolar, o escritor "projecta repetidamente esse lamento, e apreensão" (Abreu, 2010, p.39), afastando-se, no entanto, da falaciosa ideia, tão cara ao Iluminismo, de que tal educação é garantia de formação do carácter e que só ela o pode fazer.
Centra essa reflexão na personagem de Augusto, o jovem que, pela sua férrea vontade, se fez professor. Mostra tenacidade e esperança na educação, mas com a fina consciência dos "espinhos da profissão".
O desnorte a que, mais uma vez, somos conduzidos pela sistemática imposição de discursos sobre a escola e o conhecimento, a docência e a sua ética, exige que encontremos portos seguros de pensamento. Alguns deles estão na boa literatura... Eis um exemplo saído da mão de Júlio Dinis:
"Meses depois morria o velho mestre-escola da aldeia. Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe que pretendia aquele lugar, que já há muito tempo servia, e pedindo-lhe para que se interessasse por que ele o obtivesse. O conselheiro quis tirar-lhe da ideia tal projecto; escreveu-lhe que, na idade em que estava Augusto, o não ter ambições era indício de uma profunda doença moral; que a posição a que ele aspirava equivalia a uma sepultura estreita a que se acolhesse vivo.
Augusto persistiu, porém, no intento, e o conselheiro empenhou-se por ele em Lisboa. Conseguiu que uma portaria, meio pelo qual se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa, o dispensasse da idade que ainda não tinha, pois mal completara dezanove anos, e Augusto foi, por conseguinte, admitido a concurso para tão pouco disputado lugar e provido nele por três anos. O conselheiro, a quem não fora impossível obter-lhe despacho vitalício, quis ver assim se, no fim dos três anos, o obrigava a abandonar tão laboriosa e mal recompensada carreira, e, de propósito, o fez despachar temporariamente (...).
Mas, ao fim de três anos, Augusto, apesar de por experiência conhecer já os espinhos da profissão, apresentou-se novamente ao concurso para obter novo despacho (...). Desta vez tivera um competidor, homem muito protegido por influências da localidade, as quais ainda não tinham podido vencer a do conselheiro, que pugnava por Augusto."
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Abreu, Carmen da Conceição da Silva Matos (2010). Júlio Dinis - Representações romanescas do corpo psicológico e social : influência e interferência da literatura inglesa. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Dinis, Júlio (1990). A morgadinha dos Canaviais. Porto: Livraria Civilização, pp. 79-80.
2 comentários:
A grande questão por trás do discurso grandiloquente - que apresenta os currículos escolares atuais, organizados em domínios e subdomínios de onde jorram as aprendizagens essenciais que dão de beber aos alunos que serão alvo de uma avaliação eminentemente formativa, mas simultaneamente flexível e inclusiva, que, por defeito, os classifica como casos de sucesso académico e de perfil à saída da escolaridade obrigatória - é a seguinte:
- Atualmente, para que serve a escola secundária?
As escolas EB1 + JI têm finalidades que se me afiguram evidentes, enquanto a trilogia "Ler - Escrever - Contar" fizer algum sentido no sistema de ensino português, mas com os antigos professores do liceu rebaixados de categoria profissional e social, através da sua inclusão na carreira única dos professores dos ensino básico e secundário e dos educadores de infância, para que serve a escola secundária?!
Uma escola que se baseia em paletes de grelhas de burocracias, que se enchem com hipocrisias, é uma escola sem futuro!
Caro Leitor Anónimo
Karl Popper dizia, em tom sério-irónico, que um dos maiores pecados do Espírito Santo que era usar palavras gradiloquentes, compondo um discurso irrefutável. Aprendemos pouco com ele.
Ler, de forma compreensiva, os textos internacionais, nacionais e de escola que veiculam e operacionalizam o currículo constitui um verdadeiro exercício de resistência para um professor ou um investigador. Uma "trepadeira de palavras", como disse Marçal Grilho, quando Ministro da Educação. Porém desde os anos noventa do século passado até ao presente, essa trepadeira embelezou-se, robusteceu-se, entra no ouvido e com facilidade se transforma no nosso falar.
De qualquer maneira, este não era o foco do meu texto...
Cordialmente,
MHDamião
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