Novo texto de Eugénio Lisboa:
A cultura do futebol actualmente em vigor infecta as mentalidades e os lugares públicos, fanatiza e estupidifica as pessoas e acobarda aflitivamente os políticos. Quase nenhum político, intelectual ou artista em evidência se atreve a dizer que não gosta de futebol ou, mais simplesmente, que lhe repugna toda esta horrorosa atmosfera e cultura futebolísticas que nos submergem e nos sufocam, onde quer que nos encontremos. Ressalvo um político português que, um dia, interrogado sobre por quem torcia, num qualquer desafio de futebol, que se ia disputar, teve a coragem de responder, com corajoso e saboroso acinte, que o assunto não lhe interessava minimamente. Refiro-me a Manuel Maria Carrilho.
Hoje, como
no tempo cinzento do salazarismo pelintra e acomodatício, “ser do futebol”,
“interessar-se” pelo futebol – é estar do lado seguro, é ser “da malta”, é ser de confiança, é…merecer o voto das
maiorias. Quanto mais boçal, quanto mais futeboleiro, quanto mais primário, em
termos de se “aquecer” fanaticamente por um clube qualquer, tanto mais
simpático e “porreiro”, tanto mais merecedor de uma carreira política
ascendente e bem recheada.
O futebol
infecta os lugares públicos (por altura do mundial, não se conseguia entrar num
café, restaurante ou pastelaria, para fins de um cavaco pacífico e apetecido,
sem se ter os ouvidos trespassados pelos orgasmos histéricos de um relator de
futebol), devora fracções pantagruélicas de jornais, revistas e noticiários de
televisão, promove a megaconstrução de estádios obscenamente desnecessários à
realização de um Euro 2004, estádios, repito, de que nem o país nem a
competição precisam e que são pagos, injustificadamente, com o dinheiro do
contribuinte. O futebol faz tudo isto e muito mais: polui ruas, estradas,
praias, aldeias e cidades, devora orçamentos, gera o fanatismo, a competição
mais doentia e até o ódio e a violência. Dizia Orwell, que dominou como um
mestre a arte da objectividade fria, que “o desporto à séria nada tem que ver
com o fair-play: está intimamente relacionado com o ódio, o ciúme, a
gabarolice, o desprezo por todas as regras e o prazer sádico de ser espectador
da violência – por outras palavras, é a guerra, menos o tiroteio.”
Apetecer-me-ia corrigir: menos o tiroteio, mas com acréscimo de uma ou outra
facada e de um ou outro murro violento a comporem o quadro. Não o desporto sério, mas o desporto à séria (o contrário de sério),
perpetrado pelos que, ao profissionalizá-lo, o corromperam nas próprias raízes.
O futebol profissional arrasa tudo, corrompe tudo: praticantes e espectadores:
“O futebol é como a guerra nuclear”, dizia Frank Guifford, “ – não há
vencedores, há apenas sobreviventes.”
No tempo de
Salazar e parafraseando uma proclamação célebre dos marxistas, dizia-se que o
futebol era o ópio das massas. Salazar não passava afinal de um dinky toy, de
um inepto aprendiz de feiticeiro, ao lado dos promotores do opiário de hoje. Dizia Leibniz, um filósofo que provavelmente
não gostava de desporto violento, que a educação pode tudo – até faz dançar os
ursos. O futebol, tal como hoje existe e é promovido e venerado (do mais baixo
trabalhador ou funcionário ao mais alto dirigente) não faz dançar os ursos mas
transforma seguramente os homens em ursos. O verdadeiro desporto não deve ser
convertido em “espectáculo” porque não foi concebido como tal: não é para se ver, é para se praticar. Lembrava Sílvio Lima que as épocas de ouro do desporto
foram aquelas em que o espectador foi banido do estádio – ou só lá ia, em
raríssimas ocasiões, para ser encorajado a praticar sempre o que vira uma vez.
O futebol profissional é a corrupção deste verdadeiro espírito do desporto.
O futebol é
hoje uma das mais eficazes e mais sinistras fábricas de fanáticos. E observava
Huxley que, “definido em termos psicológicos, um fanático é um homem que
sobrecompensa conscientemente as suas dúvidas secretas.” O futebol é pois essa
fábrica de fanáticos que, aquecidos à mais elevada temperatura e gritando em
excesso, duvidam, no fundo e secretamente, de si, do seu clube, da sua selecção
nacional e do seu país. Por isso se compensam, se sobrecompensam, obscenamente,
afirmando, até à caricatura (e ao ódio), a excelência de tudo em que, afinal,
não sabem bem se acreditam. Quem se lhes opõe ou duvida de tais certezas é
inimigo – porque lhes abala o edifício de (in)certezas.
A
proeminência histérica e obsessiva deste “desporto-rei” imposta aos jovens
desde a mais tenra idade infecta-os no que há de mais delicado e sensível: a
sua capacidade de definirem valores. O que o futebol – a cultura futebolística
em vigor – promove é a maior inversão de valores que a toda uma juventude se
pode infligir. A competição violenta e parcial, a inveja, o ódio, a gabarolice
vácua e projectada em intoleráveis decibéis, a grosseria triunfalista não são
valores que uma sociedade civilizada apadrinhe e promova. Mas é ver o ar de
babadice cúmplice e carinhosa que os políticos adoptam e os pivots televisivos
promovem (com um sorriso doce, anunciando que o noticiário chega, por fim, ao futebol…) O tempo televisivo, sempre tão precioso e tão
caro, dizem eles, passa a ficar infinitamente disponível, quando se trata de
futebol. Nem a Grande Informação (mais a Judite de Sousa) acharam que fosse demais consagrar uma edição inteira aos
altos e baixos da equipa portuguesa na Coreia do Sul – com minúcias, com
requintes de análise quase proustiana, quase bizantina, quase rendilhada, sobre
o nascimento, vida e morte de jogadores, treinadores e árbitros. Quando achará
a Grande Informação ser importante projectar, num momento nobre do seu canal,
nomes grandes da arte, da literatura, da ciência, da música, da filosofia…(que
os temos!), assim enriquecendo o leque de preocupações de um programa que se
não deve confinar nem à política do futebol nem ao futebol da política?
Julgo que,
se o futebol tudo tem infectado e corrompido, de poucos espaços se tem
abusivamente apoderado tanto como do espaço televisivo. Chegou-se ao ponto
grotesco, por altura do mundial, de se montar, televisivamente, todo um
dispositivo que referendasse o espectador quanto às alterações a fazer na
equipa do mundial… A esta estranha concepção de democracia (em que se pede aos
ignaros atrevidos decisões sobre assuntos de especialidade) chamou o inesquecível Ortega y Gasset “democracia
morbosa”. É contra este morbo sinistro do futebol, corruptor, em acelerado, das
mentalidades e do futuro da democracia, que importa insurgirmo-nos todos – os
que insistem em pensar com autonomia e cabeça fria. Sim, é importante conservar
o segundo canal da televisão pública, mas como plataforma onde se respire um ar
não demasiado poluído pelos ruídos extremistas, invasores e intolerantes desta
histérica cultura do futebol – e não como canal em que se gaste quase metade do
noticiário (ou mesmo mais do que metade) a falar do Mundial e a entrevistar
gente palradora e debitadora de minúcias sobre o ex-Mundial… Um Mundial que se
saldou por uma catadupa de revelações vergonhosas, todas elas a confirmarem o
enterro definitivo (e não só entre nós) do verdadeiro “espírito desportivo” (um
treinador a quem se pagava 3500 contos por mês, a pedir mais, em véspera de
jogo, jogadores opiparamente pagos a pedirem isenção de impostos sobre os
prémios, em tempo de austeridade fiscal, um Secretário de Estado a tomar, para
si, as dores de um jogador que se drogava e a quem se ofereceu, “para
conforto”, uma placa, etc., até à náusea). São estes exemplos que se doam a uma
juventude que, de dia para dia, se afunda mais num pântano ou num vazio de
valores, onde se não vê sombra nem de cultura nem de ética nem de gosto: num
país onde o afundamento ético é tal que uma maioria parlamentar acha modo de
violentar afrontosamente a Constituição, congeminando uma vergonhosa “lei de
excepção”, para Barrancos, passando por cima do facto de que está aqui em jogo
o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei…e
permitindo assim aos que violam a lei há mais de 50 anos o que se não permite
aos que a tenham violado apenas há poucos meses! Por outras palavras, o crime
longamente repetido compensa, por se ter tornado tradição!
Observava
esse grande clerc que dava pelo nome de Romain Rolland, que ”por toda a sua educação,
por tudo o que vê e ouve à sua volta, a criança absorve uma tal soma de
mentiras e de parvoíces, misturadas com verdades essenciais, que o primeiro
dever do adolescente que vise ser um homem são é vomitar tudo isso.” O nosso
dever – o dos educadores – é, pois, propiciar à juventude – e aos outros… -
esse vomitório fundamental, que os purgue de toda essa infame cultura
futebolística. Este meu texto pretendeu ser isso mesmo: um saudável vomitório. Nem
no tempo de Salazar a loucura futebolística foi tão longe, digo-o com grande
tristeza.
NOTA EM
FEVEREIRO DE 2022: Ressuscito dos meus arquivos este texto que é hoje mais
actual do que nunca. A corrupção que ele denunciava como sendo inerente ao
desporto profissional está hoje aí à mostra em toda a sua sumptuária
obscenidade: negócios sujos, fuga aos impostos, compra de árbitros, vendas de
jogadores como se fossem gado, porcarias de toda a espécie. Não gostaria de
confusões: gosto do futebol, como desporto bonito e às vezes surpreendente e
até o pratiquei na minha juventude. Mas o futebol, como todo o desporto é
fundamentalmente para ser praticado e não para ser VISTO e explorado
comercialmente, da forma mais nauseante. A este respeito, recomendo mais uma
vez aos nossos políticos e às pessoas, em geral, a leitura do que sobre isto
escreveu esse grande ensaísta e admirável escritor, que foi Sílvio Lima, antigo
Professor da Universidade de Coimbra. As suas obras foram publicadas em dois
belos volumes, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Nelas se inclui o notabilíssimo
texto intitulado ENSAIO SOBRE A ESSÊNCIA
DO ENSAIO, que é um verdadeiro modelo do que deve ser o espírito
ensaístico. Nenhum professor ou Professor deveria ignorar este belo ensaio,
muitíssimo bem pensado e documentado e melhor escrito. Como ensaísta, em
Portugal, Sílvio Lima não fica abaixo de ninguém.
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