Meu prefácio ao livro de Daniel Gonçalves, «Elogio da Tristeza» (Nona Poesia, Ponta Delgada). que acaba de sair. O poeta, que vive em Santa Maria, escreveu versos com base na maior erupção vulcânica que conhecemos:
A Terra tem ocasionalmente grandes
fúrias. Uma das maiores, talvez a maior dos últimos dois mil anos, foi a
explosão do Monte Tambora, numa ilha da Indonésia, ocorrida em Abril de 1815. O
evento foi classificado no índex de explosividade vulcânica com o grau máximo (sete),
um grau acima do da grande explosão de Krakatoa, em 1883, também na Indonésia,
e muito acima da erupção da Urzelina, em 1808, na ilha de S. Jorge, nos Açores,
que foi das maiores de sempre em Portugal. Morreram, directamente pelos efeitos
da megaexplosão de Tambora ou indirectamente pela fome causada pelas subsequentes
alterações climáticas, mais de 70 000 pessoas (sem contar com as vítimas
de epidemias que advieram, de tifo, na Europa, e de cólera, na Ásia). O
material vulcânico expelido, que excedeu os 175 quilómetros cúbicos de volume e
ascendeu a mais de 40 quilómetros de altitude, dispersou-se rapidamente pelo
globo, uma vez que a atmosfera não conhece fronteiras. Na Europa e na América
do Norte, o ano seguinte, 1816, ficou conhecido como o “Ano sem Verão.”
O planeta sofreu grandes mudanças
e a arte também. Na literatura, foi no “Ano vem Verão” que nasceu Frankenstein,
da imaginação da inglesa Mary Shelley (que então só tinha 18 anos), confinada,
numa villa à beira do Lago de Genebra, com o seu namorado e futuro
marido, o escritor Percy Shelley, com Lorde Byron e com o médico John William Polidori
(que na mesma altura escreveu a primeira história de vampiros, muito antes do
Drácula). Em Yunan, na China, mais perto do vulcão, estava o poeta Li Yuyang, que pôde testemunhar as enormes perdas
de colheitas, a fome e o desespero dos
camponeses. Nas artes visuais, as pinturas dos ingleses John William Turner e
John Constable, e do alemão Caspar David Friedrich, modificaram-se com o
aparecimento de nuvens escuras e de vermelhos no céu. O céu passou a estar coberto
de nuvens escuras e os pores-do-sol passaram a ser dantescos. Em 2007, um grupo
de meteorologistas investigou quantitativamente (analisando a razão vermelho/verde
nas imagens digitais do céu) a relação entre as representações pictóricas em
centenas de quadros pintados ao longo de quatro séculos e os eventos
vulcânicos, tendo concluído que existe uma relação íntima entre geologia e
artes: quando os vulcões despejavam o
seu material piroclástico para a atmosfera, logo mudavam as cores do céu nas
telas. Disse Turner, aqui citado por Daniel Gonçalves: “A minha actividade é
pintar aquilo que vejo, e não aquilo que sei que lá está”. Isto foi muito antes
de Picasso ter dito: “Pinto as coisas como as imagino e não como as vejo.”
O poeta Daniel Gonçalves, natural
de Zurique, que não fica muito longe do Lago de Genebra, e residente na ilha de
Santa Maria, no mesmo arquipélago que viu as erupções das Urzelinas, escreve
aquilo que imagina, pois não viu o “Ano sem Verão”. Os seus poemas em “Mil
oitocentos e dezasseis” mostram que o vulcão Tambora continua hoje metaforicamente
em actividade, ao provocar explosões na mente do poeta. Os seus versos são
tensos e dramáticos, como se espera da escrita ditada pelas fúrias da Terra,
mas, ao mesmo tempo, rendilhada e elegante como fios de lava que escorrem pela
montanha. Gonçalves tem já um bom número de volumes e de prémios, e este livro,
dentro de um livro maior, Elogio da Tristeza, vem confirmar a força da
sua erupção literária. Talvez seja a geografia vulcânica dos Açores a ditar o
vigor poético dessas ilhas, tão nítido em poetas como Antero de Quental,
Vitorino Nemésio, Natália Coreia, Emanuel Félix, J. H. de Santos Barros e João
de Melo. A poesia geológica de Gonçalves,
que reside na ilha com a história telúrica mais antiga, fez-me lembrar Vitorino
Nemésio, que, em Limite de Idade, nos deixou notável poesia biológica.
Vejamos curtos excertos que são significativos
dos quatro “andamentos” em que se divide o canto gonçalviano “Mil oitocentos e
dezasseis”, esperando despertar o apetite para a leitura integral. No primeiro,
sobre Tamboro: “um ano sem verão, uma vida sem sol, que me importa a grande
sombra, se me faltas tu (…)”. No segundo, sobre a génese de monstros no lago
suíço: “lago de Genebra”, como dar vida a um monstro, de que chão/ arrancar, um
barro daninho, de que peito, uma/ costela falsa, de que água, de que vinho, as
partes/ sólidas, que hão-de falar, de que espectro de// deus, de que tábua de
poesia, de que margem de/ lama, como pôr de pé este monstro, à luz destes/
relâmpagos, desta névoa sibilante, lembrando os/ fantasmas, o arquipélago dos
corvos, (…). “ No terceiro, sobre a pintura inglesa com alterações cromáticas:
“eu, joseph mallord william turner, culpado de/ viver no céu, e esconder-me em
terra, de lamber/as cores, antes de as entregar ao tempo, de pagar/ adiantado,
pelo ilusionismo dos meus pincéis,// culpado de dar corda à poesia, e às tentações/
da carne (…).” E, por último, no quarto andamento, sobre a tragédia agrícola chinesa:
“o poeta encarcerado no langoroso poema da/ ruína, cravando os dentes felinos
da metáfora, no/ útero gelado do céu, o poeta a conduzir o dragão/ furioso, a
ver se a poesia atordoa o pesadelo, e// quebra as pesadas pranchas da miséria,
enquanto/ a caligrafia vacila (…).”
A explosão de Tambora foi uma das
maiores do Holoceno. Mas hoje vivemos, para muitos cientistas, no Antropoceno,
um tempo em que as alterações climáticas não resultam de fenómenos naturais,
mas sim da acção humana. O ano de 1816 mostra-nos o que podem ser os anos daqui
por duas ou três décadas. Embora a sua inspiração remonte ao Holoceno, Daniel Gonçalves
é um poeta do Antropoceno. A sua poesia, enraizada no passado, é, sem dúvida, do
presente, alertando-nos para um futuro funesto que ainda estamos a tempo de
prevenir. Cito Ricardo Reis: “Uns , com
os olhos postos no passado,/ Vêem o que não vêem: outros, fitos/ Os mesmos
olhos no futuro, vêem/ O que não pode ver-se (…).” A poesia tem o supremo dom
de tornar o tempo transparente.
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