segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

"SOB O CHARME DE PORTUGAL": NA BIBLIOTECA JOANINA DE COIMBRA

«Sous le charm du Portugal. Visages et Paysages»  (Plon, Paris, 1931) é um livro que comprei num alfarrabista da autoria de Lily Jean-Javal (1882-1958; na figura), uma judia francesa viúva de Jean Laval,  capitão francês que morreu na Primeira Guerra Mundial. Visitou Portugal com uma amiga finlandesa deixando este livro de viagem com fotografias. Transcrevo aqui a sua visita à Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra (minha tradução), guiada pelo seu director, o Prof. Joaquim de Carvalho. A capa da Bíblia de Abravanel que aqui se fala (pormenor em cima) serviu para ilustrar a capa de outro livro, com um texto de M. Jean-Laval,  sobre  o Cap. Artur de Barros Basto, um famoso judeu português, que reavivou a memória dos marranos do norte de Portugal («La renaissance du judaisme au Portugal au XXe siàcle. Artur de Barros Basto, Abraham Issrael Ben-Rosh")

«Entramos no santuário dos livros, um tesouro de que M. de Carvalho é o guardião. Deslumbramento: três salas de uma decoração faustosa, toda uma chinoiserie do séc. XVIII, representando pássaros, pagodes feéricos. As galerias, ornadas de encadernações semelhantes a jóias do Renascimento, são sustentadas por pilares com forma piramidal  e marcadas por escadas douradas e pintadas. Tudo desemboca apoteoticamente no retrato de D. João V, o Luís XIV português, que reinou de 1706 a 1750. O seu filho D. José I teve como ministro o ilustre marquês de Pombal, que deu `estatutos à Universidade. Admiramos uma mesa em madeira do Brasil. "Gostaria, diz M. de Carvalho, que vissem esta biblioteca com o reflexo do sol poente. É particularmente fascinante."

Passamos diante de uma espécie de nicho, uma cela monástica que convida ao trabalho e à meditação, Pela janela estreita, apercebemo-nos de uma cruz recortada numa montanha. Os livros mais raros estão expostos numa outra sala; uma Bíblia dos sécs. XII ou XIII é a principal glória. É uma obra prima de paciência saída das mãos de alguns semitas, que viveram sem dúvida no norte de África. Com que amor e com que arte foram traçados esses caracteres hebraicos! Este livro pertenceu no séc. XV a um judeu ilustre, Isaac Abrabanel, exegeta e filósofo bíblico, amigo e conselheiro do rei D. Afonso V e da nobreza.  Constituiu um traço de união entre o judaísmo e o Estado, numa época que marca o apogeu da civilização semita em Portugal e onde se afirma a repercussão da civilização ocidental no judaismo. Partidário de D. Fernando,  duque de Bragança, e e da sua família, viu-se comprometido numa conspiração contra D. João II, sucessor de D. Afonso V, e por isso obrigado a refugiar-se em Castela  e depois condenado por contumácia à forca. Ministro dos reis católicos ainda serviu, durante oito anos, de "escudo e baluarte ao judaísmo ameaçado", beneficiando dos favores de que gozava na corte, mas depois teve de fugir na época da expulsão total dos judeus na Península Ibérica. Chegou a Itália com o seu filho Leão Juda Abravanel, também chamado Leão Hebreu Filósofo. Este tinha nascido em Lisboa e tinha feito estudos científicos e literários  brilhantes, acumulando numa só pessoa as aptidões de um médico e de um escritor. Tinha acompanhado o seu pai em Espanha, deixando o seu filho com um ano em Lisboa, onde o julgava em segurança.  O rei D. Manuel I, apoderando-se da situação, fê-lo baptizar á força. Este acto de violência inspirou a Leão Hebreu uma obra patética onde exala a sua dor e onde conta as infelicidades que caíram sobre ele desde a sua juventude, assim como as suas peregrinações pelo mundo. O poema intitula-se Elegia sobre as Vicissitudes dos Tempos. É também autor de Diálogos do Amor (Dialoghi di Amore), uma obra filosófica impressa pela primeira vez em Roma em 1535, que foi traduzida em latim, espanhol e hebreu. Existem duas traduções francesas, uma de Ponthius de Thiard, historiógrafo do rei Henrique II, e outra de Denys Sauvage dedicada a Catarina de Médicis (Lyon, 1558). O sucesso de Leão Hebreu é devido em parte ao seu estilo bajulador e penetrante. Os leitores cristãos eram edificados por estes piedosos diálogos, não podendo imaginar que Leão tinha permanecido judeu, embora ele o indicasse formalmente nesse mesmo livro. Leão Hebreu parece que também escreveu uma obra intitulada Coeli Armonia.

M. de Carvalho consagrou páginas inéditas aos Abravanel pai e filho. Além da sua tese na Sorbonne que tem por titulo Leão Hebreu filósofo; publicou recentemente uma carta inédita de Isaac Abravanel. "Essa carta, diz o comentador, testemunha um profundo sentimento do eterno, de uma resignação magnífica à vontade suprema, e também uma rara cultura literária, Isaac Abravanel lia Azurara, o cronista do Infante D. Henrique, conhecia Sócrates através de Platão, Aristóteles, Séneca e tinha assimilado as ideias contemporâneas."

Esta digressão talvez nos tenha levado para lá da preciosa Bíblia, mas não para lá do mundo dos livros...

Mostrou-nos em seguida um primeiro incunábulo português, e uma série de mapas ilustrados com caravelas, e paisagens que nos transportam para lá dos mares, mapas quase todos eles executados a instância de D. João de Castro, vice-rei da Índia no séc. XVI. Missais principescos, ainda uma outra Bíblia famosa, o Livro do Mundo, publicado em Mainz em 1462, decorado de virgens que parecem ter sido esculpidas em relevo.»



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