terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Alguns poemas

 Alguns poemas que escrevi na lezíria, longe da minha Bairrada. 

I.

O morro é uma ave

No píncaro de uma árvore.

Um corvo num pinheiro.

O morro é o vale inteiro

Onde a voz se perde,

E o velho choupo oriundo

Do espelho de água

E da terra escura e gretada.

O morro é um homem

Que regressa ao cume,

Depois de ao fundo descer.


II.

Amo a rua da minha infância.

As suas clareiras, as casas

E a cruz no poente.

Quando volto, voltam as asas

E gorjeio rente às paredes de pedra.

Cruzo-a, sem relutância,

E espreguiço-me nos seus cristais

Como o sol luzente.

Na rua da minha infância,

Há sempre alguém a passar

Com a cabeça

Enterrada numa gavela de erva,

A crista de um galo

A cacarejar da terra ao céu,

O sorriso de um velho

E o guincho de uma bicicleta.

Na rua da minha infância,

Há sempre a aliança

A brilhar no recanto,

Alguém a acordar,

Nos portões e nos umbrais,

E a esperar a sombra

Ou uma aberta.

Há sempre o esganiçado pranto

De uma criança

Que quer voltar pràs demais.

 

III.

O rumor da água

No tanque.

O morro

E o domingo

Que a luz doura.

Canto ou digo

A pele, a terra

E a lama

Que a roupa

Dos dias guarda.   

Os dedos da mãe

Sem sangue,

Sem lume,

Nas reentrâncias

De pedra.

O vaivém

Do peito

E o fio

Torcido

Que escorre.

Agora, alguém

Te chama,

Pai,

Do perfume

Do céu,

Do estendal dos dias

Ao sol.

Mas a tua voz

Já se perdeu,

E a água

Ainda corre.


IV.

O orvalho da manhã

Nas ervas.  

Na várzea,

O olival de nuvens negras.

O vermelho, o amarelo

E a flor

Dos medronhos.

As vespas a zumbir ao sol,

Vomitadas da terra.

O céu a ruir, em lágrimas

E folhas,

E da tarde o arrebol.  

Assim fossem

Os meus sonhos.


V.

Como posso cantar sozinho esta beleza,

O sol, como uma açucena rubra, 

A pairar nos pinhais do poente,

Se não sou todo este vasto céu

Estendido da varanda ao horizonte?!

Como posso cantar sozinho esta beleza,

O sol, como uma açucena…

Ah, cantá-la-ei com a pouca terra,

A minha terra, tão pobre e dura!

  

VI.

Não é o sono a fechar-me os olhos,

Nem o silêncio glacial da noite

Ao redor, em volta,

Nem os arrepios.

São as tuas mãos,

A voar ao sol com as gaivotas,

Rente aos meus braços caídos.


VII.

Dormes, mãe, como no ventre

E com a janela aberta.

Levantas sempre o estore.

O frio perdura e aperta.

Não há pele que escore,

Por isso te traí levianamente.

O alvor, mãe, clareia-te o rosto

E estremece o corpo.

Acordam os braços de repente

E voas, pela sílica transparente,

Ao encontro da terra.

O ocaso, mãe, e voltas pelo corgo.

Deténs-te antes da porta

E olhas o clarão ténue e fremente.

Do sol, voltas de rastros.

Dormes, mãe, como no ventre,

Com a janela aberta

E sempre a escutar-me

Os passos.

 

VIII.

Antes de voltar ao chão,

Volto a vê-lo de pé,

Com os dedos rachados pelo frio,

A segurar a tigela pela mão,

A beber e a soprar o leite.

Na pocilga, os animais

Poderiam perder a fé.

Tinham de arrostar o dia no cume.

O tempo era sempre escasso.

Ao lume da cozinha,

Do chão não regressou mais.

Agora, volto à infância

E beijo o homem na face crestada.

Arranco-o do que lhe custava,

O eterno e justo descanso.



 


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