Muito a propósito do texto Outras forma de opressão, a contribuição do Professor Galopim de Carvalho.
A escola de São Mamede, em Évora, era húmida e gelada no Inverno. Muitas crianças descalças levavam um pedaço de cortiça para não porem os pezinhos no ladrilho. Em todas as salas, nas paredes, além de Jesus crucificado e das fotografias do Marechal Carmona e do Doutor Salazar, havia as, para nós muito bonitas e coloridas, “Lições de Salazar”. Era uma escola só para rapazes, pois nesse tempo havia separação de sexos nestes e noutros estabelecimentos de ensino. Nas escolas femininas só havia professoras, mas nas masculinas havia professoras e professores, alguns deles, mais do que elas, particularmente severos.
Por não se saber a lição, errar uma conta, dar erros no ditado ou por qualquer violação da disciplina, apanhavam-se reguadas a sério, muitas vezes, meia dúzia em cada mão e, às vezes, mais.
Foi interiorizando medos, não confessados, que dei entrada nesta Escola em 1940. Adeus bons tempos de menino a aprender as primeiras letras no carinho da mãe e no aconchego da casa, à braseira nos dias dos meses mais frios.
Tendo feito a 1.ª e a 2.ª classes no então chamado Ensino Doméstico, estreei-me na vida escolar, na 3.ª classe de uma professora simpática e bondosa que, praticamente, não nos batia e que, quando tinha de nos aplicar umas palmatoadas como instrumento pedagógico, então aceite e seguido, o fazia num jeito de deixar cair a régua sobre a mão do aluno.
Nada que se comparasse com os castigos de muitos dos professores seus colegas, entre os quais tinha fama um certo professor, bem conhecido dos alunos pelas piores razões. Este homem, de pequena estatura física, franzino, de cabelos negros e lisos e sem brilho, má cara, de tez escura e macilenta, era de uma crueldade inaceitável nos dias de hoje. Ainda sei o nome deste “monstro” mas não o revelo para não incomodar eventuais descendentes. Mãos roxas e engadanhadas pelo frio, nas manhãs de Inverno, tantas vezes de pele estalada pelas frieiras, esperavam, estendidas, obedientes e trémulas, pela fúria do mestre-escola.
Um castigo desta natureza aplicado em crianças ou, mesmo, em adultos é crime na sociedade que hoje estamos a viver.
A entrada na escola primária e o caminho diário de ida e volta, entregue a mim próprio, abriram-me novos horizontes da cidade, permitiram-me explorá-la, primeiro no percurso mais directo – Porta Nova, Torre das Cinco Quinas, São Mamede – e, depois, progressivamente alargado, no interior das muralhas e, muitas vezes, fora de portas, como ainda hoje se diz.
O meu primeiro dia de aulas, em São Mamede, ficou assinalado pela minha iniciação nestes “mimos pedagógicos”.
No final da manhã desse dia e a caminho de casa, no intervalo para almoço, fui, em alegre alvoroço e alarido, atrás do automóvel do Dr. Alberto Jordão, um ilustre advogado e director da Companhia Alentejana de Seguros, A Pátria. Era um descapotável dos anos 30 e um dos poucos veículos motorizados então existentes na cidade. A essa hora o chauffeur (o termo francês estava na moda), o senhor Rodrigo, estacionava o “calças arregaçadas” à porta da escola, à espera do Albertinho, o filho do patrão. Num instante o Ford ficava repleto de rapazes, quais sardinhas em lata, entre os quais, uma ou outra vez, em dias seguintes, consegui enfiar-me e nele fazer o percurso que sempre terminava na Porta Nova, num arraial de gritos e correrias.
Nesse dia, porém, fruto da minha inexperiência, fiquei de fora e foi correndo atrás do carro, exteriorizando alegria e energia, que eu e mais dois condiscípulos fizemos aquele mesmo trajecto. Uma contínua que nos observara naquele desaforo foi dar conta disso ao director, um outro professor, cuja fama, só de pensarmos no seu nome, nos fazia estremecer.
Ao começo da aula, no tempo da tarde desse mesmo dia, a contínua veio chamar-nos, a mim, ao Marreiros e ao Diniz, para que fôssemos ao senhor director.
Meio assustado mas, ao mesmo tempo, tranquilo porque, em minha consciência, nada fizera de mal, notei que os colegas olhavam para mim com os olhos de quem dizia «estás tramado!». A verdade é que, nesse tempo, um rapazinho de oito ou nove anos não se dava conta do perigo que representava, para ele, correr, desarvorado, atrás de um automóvel. Cabia aos adultos adverti-lo e protegê-lo desse risco e, naquele tempo, a educação e a pedagogia estavam na ponta da palmatória.
Já dentro do gabinete, foi a reprimenda ouvida com muito respeito, de olhos postos na dita, balouçando nas mãos do pedagogo. Passada esta, estávamos a apanhar seis em cada mão. Para mim foi a estreia, para eles não, que já levavam dois anos de experiência.
O ano lectivo correu sem grande problemas. No exame, a minha falta de preparação anterior concretizou-se com um R (de reprovado) bem desenhado, a vermelho, na pauta. Experimentei aí o primeiro chumbo da minha vida de estudante. Deixei a classe de uma professora invulgarmente bondosa para a época e, para mal dos meus pecados, passei para a classe de um daqueles professores sempre temidos e nunca amados, com a fama e o proveito de muito severo.
Por cada erro no ditado, a mais de três, o mestre-escola contabilizava uma reguada. E eu dava tantos erros! E, como eu, muitos dos meus condiscípulos. Era vê-lo, triunfante, guedelha caída sobre os olhos, de sorriso sacana, a estalar a régua nas palmas das mãos de uma fila de rapazinhos de rosto marcado pela expectativa do castigo, aguardando a sua vez, franzindo e fechando os olhos a cada estalo. Concluído o ajuste daquelas contas, cansado o braço do pedagogo, iniciava-se a lição de aritmética ou de outra das matérias do programa. E a uma pergunta sem resposta ou mal respondida, era certo e sabido:
- Anda cá! Dá cá a mão! …
Naquele tempo, o nível de instrução obrigatória era o da 3.ª classe do ensino primário (3.º ano, como agora se diz), que terminava com um exame e um diploma exigível, por exemplo, para ingresso nos lugares mais humildes da função pública, no comércio, como caixeiro, nos correios, como carteiro ou boletineiro e, até, para ser eleitor. Ler, escrever e contar era tudo o que o cidadão comum necessitava para fugir à vida do campo, ao aprendizado artesanal ou oficinal e a outros trabalhos que apenas fizessem uso da força braçal. Este diploma de habilitações mínimas, o Primeiro Grau, como era chamado, vigorou durante muitos anos, e lembro-me, por exemplo, em meados dos anos 50, de o ter apresentado, como documento comprovativo de escolaridade, na obtenção da carta de condução de motociclos.
Eu, que nessa altura já concluíra o antigo 7.º ano do Liceu e a frequência de dois anos na Universidade, fui, por ser mais rápido e a conselho do instrutor, requerer um certificado do meu diploma da 3.ª classe, um papelinho singelo, passado na hora pelo amanuense da Direcção do Distrito Escolar, sedeada na Praça de Sertório. O examinador, um agente técnico de engenharia burocratizado, a quem toda a gente se referia como o senhor Engenheiro, não me tratou mal, pelo contrário, até foi simpático, explicando bem as palavras a um nível que entendeu adequado à minha suposta iliteracia.
Galopim da Carvalho
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
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8 comentários:
Ainda há poucos anos, em Arganil, se usava e abusava barbaramente desse "correctivo" pedagógico, como foi o caso de um neto meu que ainda hoje sore das mãos selvaticamente afectada pelas vigoroas reguadas que lhe aplicou, no ensino básico, a progenitora do actual presidente da câmara! Hoje como ontem! JCN
Gostei muito desse texto, lembrei-me com saudades de meu pai e suas histórias. Ele estudou em uma escola como essa. Ainda bem que não existe mais. Usar a palmatória como instrumento pedagógico é muito cruel e desumano.
Parabéns pelo seu excelente texto Professor Galopim de Carvalho.
PJ
A dita cuja só desistiu quando a mãe do pequeno e minha nora, Drª Isabel Lorena da Silveira de Sá Vieira Castro Nunes, a ameaçou publicamente de lhe ir às trombas (sic), caso continuasse a proceder daquele jeito. JCN
Louvo o Professor Galopim de Carvalho pelos seus livros e por este texto. Já em entrevista na TV o tinha ouvido falar sobre este tema dos "castigos" na Escola Primária, e terá até empregado a palavra "sádicos" relativamente a alguns professores. Estou absolutamente de acordo. Sou de Portalegre e frequentei ali a Escola Primária. Não fui muito "castigado" com reguadas por ser bom aluno e ter bom comportamento! Os meus Colegas, a maioria mal alimentados e cheios de frio no Inverno, rotos e descalços, eram verdadeiramente torturados. Eu tenho a "coragem" de dizer os nomes dos "carrascos": Sr. Viriato, Sr. Gomes, Sr. Godinho e sobretudo o Sr. Silvério. Havia Pais que preferiam que os filhos não fossem para a Escola, nesse ano, quando lhes calhava esta "fera". O Sr. Silvério dava reguadas, bofetadas e murros. Dava também explicações em casa, onde eu andei por causa do exame de admissão aos Liceus e membro-me duma Colega, a Fragata, junto ao quadro preto,
a ser espancada. Um dia teve que intervir a Sr.ª D.ª Ilda sua mulher e também professora, para tirar a pobre criança das suas mãos! O Sr. Silvério veio depois tirar um curso superior a Coimbra e foi diretor da Escola do Magistério Primário em Leiria. A fama de "um terror" também o acompanhou àquela cidade. É bom que se faça a história dessa época, neste aspeto, e não se venha com as habituais frases "Não lhe fizeram mal"; "Foi pena não ter apanhado mais", etc.. M.M. Almeida Ruas (Médico Endocrinologista, Coimbra).
Concordo com uma réguada merecida. Penso que deveria voltar às nossas escola. Evitava muita indisciplina qe é a principal causa do insucesso de hoje.
A minha professora sempre foi sensata. Raramente usava a régua e quando o fazia era muito branda. Ainda levei mas não magoaram nem fisica nem psicologicamente. Outros professores eram tiranos. Palmatória de caixão à cova. Ouvia-se o estalar da régua que nunca tinha descanso. Havia de tudo mas não podemos confundir realidades diferentes. Uma coisa é um castigo leve outra é a tortura.
O "Anónimo" concorda que havia tortura. Como eu, certamente terá filhos e netos que são educados, sem ter sido necessário castigos físicos ou psíquicos e muito menos a régua. O diálogo é a basa de tudo. Contudo, o diálogo tem que ser o adequado às diferentes idades. É aqui que muita gente erra: consideram por ex. que uma criança de 6 anos pode compreender um raciocínio de adulto! Termino dizendo que régua ou seja lá o que for nunca.Saber educar e ter capacidade de diálogo são coisas que se têm que aprender, até com estudo. De qualquer modo o Sr. expressou a sua opinião e aqui estamos serenamente a dialogar. Se este diálogo servir para o por a refletir e até ir estudar, a psicologia dos comportamentos humanos e as formas de educação (já de homens ,já até de animais), tudo já foi bem útil. Pessoalmente até por causa da profissão que tenho nunca deixei de estudar: todos os dias estudo.
MM Almeida Ruas, Endocrinologista, Coimbra
Já ouviu falar em reflexos condicionados, Dr? Pois é. Existem e funcionam em crianças que, pelo seu temperamento, não vão lá de outra maneira. Vou contar uma história que se passou comigo. Um dos meus dois filhos, roubava. Era no supermercado, na escola, na casa de amigos, onde calhava. Aquilo que os psicólogos chamam de cleptomania mas não sabem resolver. Tantas vezes se repetiu a história do "não é teu vai devolver e pede desculpa". E eu a pensar no inferno em que se estava a tornar a minha relação com ele. Num bom dia improvisei uma régua, enchi-me de coragem e dei-lhe uma palmada em cada mão. Duas a sério. Sem chorar mas com vontade, foi para o quarto e passado algum tempo veio mostrar-me o vermelho das mãos. Estás a ver o que me fizeste?, disse-me. Respondi-lhe que se voltasse a tirar o que não lhe pertencia levava quatro e mantive a régua sobre a minha mesa de trabalho bem à vista. NUNCA MAIS houve queixas nem reprimendas. Hoje tem 29 anos e conta que muitas vezes sentira vontade a desviar o que não lhe pertencia mas acabava por conseguir ultrapassar a tentação. Guarda a relíquia em casa dele. Foi o único castigo físico que apliquei. Abençoado! Naquele momento, a ele, doeram as mãos, e a mim doeu o corpo e a alma mas valeu. Não podemos fazer generalizações.
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