Do académico Eugénio Lisboa, temos o prazer de transcrever este seu ensaio publicado no Jornal de Letras (08/08/2012):
“Com 88 anos, faleceu, no passado dia 20, Helena Cidade Moura, que deixou uma marca inconfundível, como campeadora melhorista, antes e depois do 25 de Abril. Co-fundadora do MDP-CDE,deputada por este mesmo partido, activista da CIVITAS, lutadora pela liberdade, pela alfabetização, pelo desenvolvimento e pelo emprego, Helena Cidade Moura caracterizou-se sempre por uma grande obstinação, na luta por aquilo que visava. Conheci-a, há cerca de dez anos, na sua casa, no Monte Estoril, quando me convidou para o cargo de Presidente da Direcção da CIVITAS de Cascais. Quando fui vê-la, sabendo, antecipadamente, do que se tratava, ia determinado a não aceitar o seu convite. Tinha as mãos cheias de trabalho e era um trabalho que me convinha: fazer aquilo de que gostava, no tempo que tinha disponível e numa idade em que já ganhara o direito de ser eu a definir a minha própria agenda. Ia, pois, bem preparado: para tudo, excepto para lidar com a teimosia da Helena, como todos, carinhosamente, lhe chamávamos.
A Helena era o tipo de pessoa à qual só havia uma maneira de se resistir: cedendo. E foi o que acabei por fazer. Exerci o cargo, durante três anos, tão bem quanto pude, com uma excelente equipa de colaboradores, concentrando-nos, sobretudo, em cursos de cidadania. Durante anos, fui vendo, regularmente, a Helena, que nadava em ideias e projectos. Telefonava-me, com frequência, anunciando planos magnos e magníficos para a alfabetização do país inteiro (eu sugeria-lhe, ironicamente, que devíamos começar pelos ministros...).
Mas, após os três anos na CIVITAS, comecei a resistir à Helena: expliquei-lhe, repetidamente, com amizade e firmeza, que a minha agenda não coincidia com a dela, que respeitava, enormemente, o seu trabalho, a sua determinação e a sua entrega, mas pedia-lheque aceitasse, também, a valia do meu. Que me permitisse fazer o que eu queria fazer e não o que ela queria que eu fizesse. A Helena, suavemente, parecia ceder, mas voltava sempre à carga, com determinação e doçura redobradas. Que desse, apenas, o nome, que o trabalho ficava para ela. Eu cedia, desconfiado... Depois, pedia-me que lesse certos papéis e lhe desse a minha opinião. Que fizesse sugestões. Não quereria eu, por acaso...? O trabalho de sapa ia fazendo o seu caminho. Às tantas, encontrava-me quase envolvido. Resistia, escabujava, resmungava. Mas a Helena não desarmava. Depois, as coisas, tristemente, começaram a tornar-se mais complicadas. Combinávamos encontros, mas a Helena, com a memória já muito afectada, esquecia-se, perdia os papéis, não aparecia. Eu não tinha coragem de lhe perguntar por que faltara... Com tristeza, fomo-nos distanciando.
Agora, como bom soldado, afastou-se, desvanecendo-se suavemente, mas deixando connosco aquela boa imagem de uma grande senhora, que toda a vida se entregou aos outros, às boas causas – e morreu quase pobre, isto é, com uma pequeníssima reforma, que aflitamente se encolhia, humilde, ao lado das pensões obscenas, que por aí se passeiam, nas mãos de gente sem estilo e sem coração.
Como aconteceu ao velho pescador, que Hemingway congeminou, em Cuba, a Helena foi destruída, mas não foi vencida. Ninguém conseguia vergá-la: atacava sempre de novo. Sempre. Morreu, como se diz, de pé.”
Eugénio Lisboa
“Com 88 anos, faleceu, no passado dia 20, Helena Cidade Moura, que deixou uma marca inconfundível, como campeadora melhorista, antes e depois do 25 de Abril. Co-fundadora do MDP-CDE,deputada por este mesmo partido, activista da CIVITAS, lutadora pela liberdade, pela alfabetização, pelo desenvolvimento e pelo emprego, Helena Cidade Moura caracterizou-se sempre por uma grande obstinação, na luta por aquilo que visava. Conheci-a, há cerca de dez anos, na sua casa, no Monte Estoril, quando me convidou para o cargo de Presidente da Direcção da CIVITAS de Cascais. Quando fui vê-la, sabendo, antecipadamente, do que se tratava, ia determinado a não aceitar o seu convite. Tinha as mãos cheias de trabalho e era um trabalho que me convinha: fazer aquilo de que gostava, no tempo que tinha disponível e numa idade em que já ganhara o direito de ser eu a definir a minha própria agenda. Ia, pois, bem preparado: para tudo, excepto para lidar com a teimosia da Helena, como todos, carinhosamente, lhe chamávamos.
A Helena era o tipo de pessoa à qual só havia uma maneira de se resistir: cedendo. E foi o que acabei por fazer. Exerci o cargo, durante três anos, tão bem quanto pude, com uma excelente equipa de colaboradores, concentrando-nos, sobretudo, em cursos de cidadania. Durante anos, fui vendo, regularmente, a Helena, que nadava em ideias e projectos. Telefonava-me, com frequência, anunciando planos magnos e magníficos para a alfabetização do país inteiro (eu sugeria-lhe, ironicamente, que devíamos começar pelos ministros...).
Mas, após os três anos na CIVITAS, comecei a resistir à Helena: expliquei-lhe, repetidamente, com amizade e firmeza, que a minha agenda não coincidia com a dela, que respeitava, enormemente, o seu trabalho, a sua determinação e a sua entrega, mas pedia-lheque aceitasse, também, a valia do meu. Que me permitisse fazer o que eu queria fazer e não o que ela queria que eu fizesse. A Helena, suavemente, parecia ceder, mas voltava sempre à carga, com determinação e doçura redobradas. Que desse, apenas, o nome, que o trabalho ficava para ela. Eu cedia, desconfiado... Depois, pedia-me que lesse certos papéis e lhe desse a minha opinião. Que fizesse sugestões. Não quereria eu, por acaso...? O trabalho de sapa ia fazendo o seu caminho. Às tantas, encontrava-me quase envolvido. Resistia, escabujava, resmungava. Mas a Helena não desarmava. Depois, as coisas, tristemente, começaram a tornar-se mais complicadas. Combinávamos encontros, mas a Helena, com a memória já muito afectada, esquecia-se, perdia os papéis, não aparecia. Eu não tinha coragem de lhe perguntar por que faltara... Com tristeza, fomo-nos distanciando.
Agora, como bom soldado, afastou-se, desvanecendo-se suavemente, mas deixando connosco aquela boa imagem de uma grande senhora, que toda a vida se entregou aos outros, às boas causas – e morreu quase pobre, isto é, com uma pequeníssima reforma, que aflitamente se encolhia, humilde, ao lado das pensões obscenas, que por aí se passeiam, nas mãos de gente sem estilo e sem coração.
Como aconteceu ao velho pescador, que Hemingway congeminou, em Cuba, a Helena foi destruída, mas não foi vencida. Ninguém conseguia vergá-la: atacava sempre de novo. Sempre. Morreu, como se diz, de pé.”
Eugénio Lisboa
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