quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Helena Cidade Moura: um testemunho pessoal


Do académico Eugénio Lisboa, temos o prazer de transcrever este seu ensaio publicado no Jornal de Letras (08/08/2012):

“Com 88 anos, faleceu, no passado dia 20, Helena Cidade Moura, que deixou uma marca inconfundível, como campeadora melhorista, antes e depois do 25 de Abril. Co-fundadora do MDP-CDE,deputada por este mesmo partido, activista da CIVITAS, lutadora pela liberdade, pela alfabetização, pelo desenvolvimento e pelo emprego, Helena Cidade Moura caracterizou-se sempre por uma grande obstinação, na luta por aquilo que visava. Conheci-a, há cerca de dez anos, na sua casa, no Monte Estoril, quando me convidou para o cargo de Presidente da Direcção da CIVITAS de Cascais. Quando fui vê-la, sabendo, antecipadamente, do que se tratava, ia determinado a não aceitar o seu convite. Tinha as mãos cheias de trabalho e era um trabalho que me convinha: fazer aquilo de que gostava, no tempo que tinha disponível e numa idade em que já ganhara o direito de ser eu a definir a minha própria agenda. Ia, pois, bem preparado: para tudo, excepto para lidar com a teimosia da Helena, como todos, carinhosamente, lhe chamávamos.

A Helena era o tipo de pessoa à qual só havia uma maneira de se resistir: cedendo. E foi o que acabei por fazer. Exerci o cargo, durante três anos, tão bem quanto pude, com uma excelente equipa de colaboradores, concentrando-nos, sobretudo, em cursos de cidadania. Durante anos, fui vendo, regularmente, a Helena, que nadava em ideias e projectos. Telefonava-me, com frequência, anunciando planos magnos e magníficos para a alfabetização do país inteiro (eu sugeria-lhe, ironicamente, que devíamos começar pelos ministros...).

Mas, após os três anos na CIVITAS, comecei a resistir à Helena: expliquei-lhe, repetidamente, com amizade e firmeza, que a minha agenda não coincidia com a dela, que respeitava, enormemente, o seu trabalho, a sua determinação e a sua entrega, mas pedia-lheque aceitasse, também, a valia do meu. Que me permitisse fazer o que eu queria fazer e não o que ela queria que eu fizesse. A Helena, suavemente, parecia ceder, mas voltava sempre à carga, com determinação e doçura redobradas. Que desse, apenas, o nome, que o trabalho ficava para ela. Eu cedia, desconfiado... Depois, pedia-me que lesse certos papéis e lhe desse a minha opinião. Que fizesse sugestões. Não quereria eu, por acaso...? O trabalho de sapa ia fazendo o seu caminho. Às tantas, encontrava-me quase envolvido. Resistia, escabujava, resmungava. Mas a Helena não desarmava. Depois, as coisas, tristemente, começaram a tornar-se mais complicadas. Combinávamos encontros, mas a Helena, com a memória já muito afectada, esquecia-se, perdia os papéis, não aparecia. Eu não tinha coragem de lhe perguntar por que faltara... Com tristeza, fomo-nos distanciando.

Agora, como bom soldado, afastou-se, desvanecendo-se suavemente, mas deixando connosco aquela boa imagem de uma grande senhora, que toda a vida se entregou aos outros, às boas causas – e morreu quase pobre, isto é, com uma pequeníssima reforma, que aflitamente se encolhia, humilde, ao lado das pensões obscenas, que por aí se passeiam, nas mãos de gente sem estilo e sem coração.

Como aconteceu ao velho pescador, que Hemingway congeminou, em Cuba, a Helena foi destruída, mas não foi vencida. Ninguém conseguia vergá-la: atacava sempre de novo. Sempre. Morreu, como se diz, de pé.”

Eugénio Lisboa

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