Georges Perec em La Disparition não usa palavras com a letra "e" o que não é nada fácil e muito menos em francês.
Aparentemente, também não deveria ser fácil escrever um livro cujo tema é a ciência e a cultura nos séculos XIX e XX sem referir a Química, como defendi em Jardins de Cristais - Química e Literatura. Encontrei, no entanto, recentemente um caso extremo de invisibilidade da Química: Ciência e Cultura (edição coordenada por Filipe Furtado e Gabriela Gândara Terenas). A propósito da explosão científica no século XX refere-se (seguindo por alto o texto) a Física, os quanta, a relatividade, a Física Nuclear (que já foi Química Nuclear), a Física de Partículas, a Matemática e Ciências Exactas, Engenharia, Economia, Teoria dos Jogos, Computação, Cosmologia, Física Teórica, Astrofísica, Astrobiologia, Ciências da Vida, Geociências, Climatologia, Hidrologia, Oceanografia, Geografia, Geocronologia, Biologia Molecular, Biofísica, Genética Molecular, Genómica, Biotecnologia, Bioquímica (que também pode ser designada Química Biológica), Etologia, Medicina (antibióticos, transplantes e meios complementares de diagnóstico), Aeronáutica, Astronáutica, Informática, Engenharia de Materiais, Nanotecnologia, Psicologia e Neurociências, entre outras áreas. Mas não a Química (que espreita por todos os lados nas áreas acima, mas que não aparece como palavra)! E isso é tão mais surpreendente quando uma das referências do livro é a Breve História de Quase Tudo do Byll Bryson, a qual além de referir bastante a Química, contou com o conselho e leitura do químico Roald Hoffmann, prémio Nobel e poeta.
Ora, no século XX qual foi a área científica que mais contribuiu para a transformação do mundo (e ainda está a contribuir no século XXI)? Que esteve envolvida na descoberta dos adubos sintéticos que ajudaram (e ainda ajudam) a alimentar o mundo? Qual foi a área que mais trabalhou para a descoberta, síntese e produção de antibióticos e medicamentos para doenças como a sífilis, malária, cancro, tuberculose, lepra, perturbações nervosas, entre tantas outras? Qual foi a ciência que desenvolveu o tratamento das águas, higiene e desinfecção, contribuindo para o desaparecimento das epidemias de cólera e febre tifóide e diminuição de muitas infecções? Como apareceu a anestesia, a assépsia e os imunossupressores que permitem muitas das operações modernas? Qual foi a área que desenvolveu os polímeros sintéticos e artificiais? Os novos materiais? os tecidos sintéticos e artificiais? Os corantes sintéticos? A agricultura moderna? O controlo de qualidade e a segurança alimentar? Foi a Química através das suas muitas áreas: Química Analítica e Bioanalítica, Síntese Química, Química Orgânica, Inorgânica e Bioinorgância, Fotoquímica, Química Teórica e Computacional, Química Supramolecular, Química de Colóides, Química de Materiais, Química Verde, e tantas outras áreas da Química, quase todas, por si só, pelo menos tão sexys, produtivas e modificadoras do mundo, como as áreas científicas referidas no livro (sobre o qual não está em causa a qualidade e interesse, mas apenas a desaparição da Química)!
Também sobre a divulgação e popularização da ciência não detectei neste livro qualquer referência a Jane
Marcet, pioneira da divulgação de ciência britânica com centenas de
milhares de exemplares vendidos das suas conversas sobre Química. Veja-se, sobre Jane Marcet, o artigo de João Paulo André (de onde copiei a imagem acima) e atente-se à comunicação de Marília Peres (com a minha co-autoria) sobre as invisibilidades desta autora nas suas traduções para francês e português a apresentar na International Conference on the History of Chemistry (10th ICHC) em Aveiro no início de Setembro.
Como contraponto a esta injusta invisibilidade da Química no século XX, aproveito para recomendar, para além do livro do Bill Bryson, uma outra obra surpreendente e muitíssimo agradável de ler que trata a ciência do século XX (incluindo a Química) com toda a justiça: Uma breve história do século XX de Geoffley Blainey. Tirando uma ou duas questões mínimas de tradução (o nome do polímero silicone é usado em vez do elemento silício uma vez) e a necessidade de síntese deixar alguns assuntos incompletos é um livro a não perder. Para mais é um livro em que Portugal, para além da Química, não é invisível.
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