sexta-feira, 14 de agosto de 2015

TUDO COMEÇOU HÁ MAIS DE SETE DÉCADAS

Publicamos mais um maravilhoso texto do Professor A. Galopim de Carvalho.

Tudo começou como adolescente curioso de saber, mais amante dos campos e das suas gentes do que da instituição escolar de então, que eu achava desinteressante, castrante e rígida. Foi no meio rural que despertei o interesse pelas rochas, pelos minerais e pelos fósseis. Nasceu também aí o gosto pela divulgação científica, uma prática que me ficou e desenvolvi mais tarde a par de uma vivência, igualmente gratificante, de ensino e de investigação científica na Universidade.

Sendo um fruto da cidade, sempre me senti melhor no mundo rural. Esta inclinação foi, simultaneamente, causa e consequência de um campismo meio selvagem que pratiquei nessa fase da minha vida, na companhia do meu irmão Mário e de alguns amigos, um campismo ao encontro das herdades, dos montes e das aldeias do concelho de Évora e, também, das suas gentes.

Ao gosto pelo campo, em geral, e pela geologia, em particular, juntava-se o do convívio com os camponeses. Com alguns deles troquei os ensinamentos dos meus manuais de estudo com os seus saberes fruto da experiência vivida na natureza e com eles iniciei uma vivência social e política, impensável no meio citadino, a todos os níveis vigiado e censurado, que marcou a minha maneira de estar e ver o mundo.

Ao memorizar essa fase da minha vida sou levado a concluir que foi também com os camponeses que cultivei e amadureci este gosto pelo campo essencial à profissão de geólogo. Com eles e por eles tomei o gosto de divulgar, uma actividade que marcou toda a minha existência, e que, sem me ter dado conta, acabou por me tornar figura pública, com as vantagens e os inconvenientes que tal acarreta.

Decorrido todo este tempo sobre a minha vivência alentejana, transporto comigo marcas indeléveis desta que é a maior região do país. Os seus montados de azinho e sobro e as suas planuras de searas ondulantes, ainda verdes em começos de Maio e já a dourar sob o sol de Junho, simbolizam a paisagem que, como é natural, mais se identifica comigo. Esta paisagem, sempre que me é dado vê-la, faz-me regressar às raízes e nelas está, ainda, a casinha isolada, a que chamamos monte, no cimo de uma ondulação do terreno, branca de cal, com cunhais e ombreiras azul-cobalto e uma grande chaminé fumegante. Lá dentro, o lume de chão e os enchidos ao fumeiro. Nessas raízes estão ainda os cheiros e os sabores das ervas aromáticas, os saberes, os falares e os cantares locais. Tantas marcas do Alentejo reflectiram-se nos meus gostos pessoais e profissionais. Os livros de ficção que escrevi são disso testemunho, do mesmo modo que o são a maioria dos trabalhos de campo que realizei como geólogo.

Em complemento da minha formação como geólogo beneficiei, e muito, da convivência, frequente e próxima, do professor Orlando Ribeiro, grande geógrafo e insigne humanista, com quem aprendi a não separar a geologia e a geografia do chão que pisamos da componente social e humana que a complementa.

Nalgumas deslocações que fiz pelo mundo, mais do que as cidades, atraíram-me os espaços naturais, longe do betão e do asfalto. Foi assim que interiorizei a imensidade do tempo geológico no Grand Canyon do Colorado, “viajei” no espaço ao olhar a Cratera do Meteoro e apreendi o significado da erosão no Monument Valley, no Arizona. Foi assim que percorri as planuras entre montanhas do Oeste Americano, os seus desertos e lagos salgados. No Canadá deslumbrei-me com a miríade de lagos deixados no recuo do último grande glaciar, com o maravilhoso polícromo das suas florestas caducifólias, no Outono, e com as chamadas bad lands no Norte de Alberta, autênticos ninhos de fósseis de dinossáurios. No mar azul das Caraíbas, nos recifes e nas areias brancas dos seus fundos e das suas praias vi, no terreno, como se formam os calcários, os de hoje e os do passado com milhões de anos de idade. No Egipto pisei a areia escaldante do Sahara oriental, em franco contraste com o verdejante vale do Nilo. Da Amazónia ficaram-me os aromas quentes e húmidos da floresta sempre chuvosa, a luz coada pela densidade da vegetação e o som dos animais que a povoam. Sobrevoei os Himalaias, molhei os pés nas águas barrentas do mar da China e desci ao fundo de muitas minas e de uma da cratera de um vulcão nos Açores.

No percorrer de uma longa caminhada, para além da infância, da adolescência e do tempo que cumpri como miliciano ao serviço do Exército, dou particular atenção às experiências vividas e presenciadas e às reflexões que muitas delas me suscitaram como docente e investigador científico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, como director do Museu Nacional de História Natural da mesma Universidade e, ao mesmo tempo, como cidadão interventor na árdua defesa e valorização da geologia e do nosso património geológico e paleontológico, numa sociedade cinzenta, onde o conhecimento geológico continua arredado dos nossos agentes de cultura e da grande maioria dos nossos decisores aos vários níveis da administração e dos serviços.

Nas lutas cívicas, que travei, tive oportunidade de me relacionar intensamente com a comunicação social escrita, falada e televisionada. Foi bom e, como se viu, foi útil esse relacionamento. Nele fiz tantos apoiantes e amigos quantos os com quem privei, em número de algumas dezenas, entre os mais prestigiados e influentes jornalistas e os mais simples e apagados estagiários que, com o passar dos anos, se fizeram respeitados profissionais. Aprendi a percorrer os corredores do Poder e, sem nunca me afastar das causas que abracei e pelas quais me bati e dei a cara, fiz amigos e estabeleci relações de muita simpatia com alguns ministros e presidentes da República. Outro tanto aconteceu no universo multipartidário da Assembleia da República onde, por diversas vezes, me desloquei em busca de apoio. Foi assim nas Câmaras Municipais, à margem das respectivas cores políticas, com as quais iniciei e tenho mantido estreita cooperação, sempre a título gracioso, nunca remunerado, condição essencial que garante a minha não dependência desse outro poder e me não inibiu ou inibe de exercer livremente o meu juízo crítico e de procurar levar a bom termo os projectos em que me tenho envolvido.

Gozar da simpatia e, por vezes, da amizade de tantas personalidades com influência e poder de decisão, com as quais tive de me relacionar, profissionalmente ou apenas como cidadão, agilizou grandemente todo o trabalho que desenvolvi nesta fase da minha vida em que estive ligado ao Museu Nacional de História Natural. Devo dizer, em abono da verdade, que sem o suporte institucional deste museu e sem o apoio de alguns dos seus funcionários eu não teria tido nem a voz nem a visibilidade que os media me deram. Nos anos em que tive responsabilidades na Universidade de Lisboa e, em particular, no referido Museu, beneficiei, no exercício das minhas funções, da consideração e da amizade dos respectivos reitores, nomeadamente os Profs. Rosado Fernandes, Virgílio Meira Soares, José Barata Moura e António Sampaio da Nóvoa.

Na Faculdade de Ciências, onde exerci a docência e investigação científica entre 1961 e 2001, ano em que me jubilei, vivi em paz comigo, com os colegas e com a instituição, num ambiente de grande afectividade, estima e simpatia. Foi prova deste viver, as cerca de oito centenas, entre ex-alunos, colegas e amigos que encheram, a transbordar, o grande auditório da Faculdade de Ciências, assistindo à minha última lição (“Geologia e Cidadania”) em 30 de Maio de 2001.


A meu pedido e devidamente autorizado pelo governo, ainda mantive a direcção do referido Museu, por mais três anos (sem qualquer remuneração, para além da pensão que me era devida), findos os quais essa autorização me foi negada.

Como portador de deficiência auditiva, agravada nos últimos anos, deparo-me, diariamente, com barreiras que me impedem de abarcar, parcial ou totalmente, o mundo à minha volta. Acabo sempre por ficar isolado no seio de uma convivência que me está, em grande parte, vedada. Esta condição ensinou-me a viver comigo próprio, potenciando-me as capacidades de interiorização, de observação, de reflexão e de apelo à memória. O computador, que aprendi a manejar rudimentarmente, quando a função pública me arrumou na degradante prateleira dos reformados, tornou-se o meu principal veículo de comunicação com o mundo.

Sendo a escrita um acto solitário, julgo ter encontrado nesta minha deficiência total disponibilidade para as exercitar. Quando me sento ao computador não tenho idade, não tenho coronárias entupidas e outras mazelas próprias de quem já viveu muitos anos, não sinto a falta da audição, nem penso nos graves problemas que o desgoverno de Portugal trouxe à grande maioria dos portugueses, problemas que também me bateram, e de que maneira, à porta.
A. Galopim de Carvalho

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito obrigada, Professor, por este testemunho! Continue sempre a escrever bem e a contar tudo o que viveu e aprendeu e, em particular, a dar agora o seu testemunho da sua situação, que é a de tantos outros cidadãos.

Este texto deveria ter mais divulgação noutros meios de comunicação!

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...