Nasci em Évora, em 1931, nos dias grandes e quentes do Verão alentejano, aumentando para cinco o número de filhos do casal, a partir de então com três rapazes e duas raparigas. Uma outra irmã viria a nascer, tinha eu 8 anos.
Nas minhas raízes não houve doutores, engenheiros, almirantes ou generais, nem sequer, um sargento. houve um segundo grumete, ao serviço da fragata Dom Fernando II e Glória, em adolescente, e depois, como homem, empregado de escritório, um “manga-de-alpaca”, como alguns diziam, depreciativamente, uns por despeito, outros por desdém.
Houve uma mãe que, de costureira em solteira, se transformou em mulher da casa, inteligente, extremosa e incansável, e gente do povo de muitas artes: dois corticeiros, um sapateiro, um curtidor de peles, dois caiadores, um capador, um açougueiro, sem esquecer a minha tia Rosalina, irmã da minha avó materna, que, com as filhas, fazia queijos de ovelha e tinha uma venda de hortaliças, e o meu tio Zézinho, seu marido, conhecido por Zé dos Cabanejos, pelo facto de fazer cestos e canastras ou cabanejos.
De toda esta família, só o meu pai estudou, tendo concluído o 5.º ano do liceu, o que lhe valeu um emprego mais estimado, permitindo-lhe, em conjunto com a minha mãe, dar aos seis filhos as habilitações a que cada um aspirou. A Sociedade Harmonia Eborense, na Praça do Geraldo, preencheu a grande maioria dos tempos livres e de lazer do meu pai, que para ali se dirigia, invariavelmente, depois do jantar e de nos ler, ainda à mesa, um capítulo de um livro que sabia escolher na nossa pequena biblioteca ou na da dita Sociedade.
Esta meia hora de leitura foi, durante anos, o nosso folhetim ou a nossa telenovela. Ouvimos, assim, diariamente e, com a maior atenção, essas leituras que o pai fazia na perfeição, valorizando o texto com inflexões de voz e gestos a condizer. Foi deste modo, que “lemos”, através dos seus olhos, entre outras volumosas obras, “A Toutinegra do Moinho”, de Émile Richebourg, “A Execução dos Távoras”, de César da Silva, e a “Revolução Francesa”, em três grandes volumes, cujo autor não fixei, e a “Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi.
Igualmente sócio do Lusitano de Évora, o meu pai torcia pelos rapazes da camisola verde e branca, as cores preferidas pelas classes média e alta. O povo alinhava, mais com os azuis do Juventude Sport Clube, muitas vezes alcunhado de “Rasga-a-Roupa”, ou pelos encarnados do Sport Lisboa e Évora, uma espécie de sucursal alentejana do grande Benfica. Ao serviço desta classe distinguia-se a Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António de Aguiar, assim chamada em homenagem ao grande pensador e político liberal do século XIX.
Da alta sociedade faziam parte, sobretudo, as famílias ricas, como eram as dos comerciantes mais abastados, dos grandes senhores da terra (os terratenentes, como se dizia), da banca e dos seguros e as de alguns profissionais liberais de mais avultados proventos. Era deste grupo social que saíam, normalmente, os Governadores Civis e os Presidentes da Câmara. Com esta classe conviviam os comandantes da Polícia e da GNR e outras destacadas figuras do topo das hierarquias militar, religiosa e civil.
Os representantes desta franja do tecido urbano preferiam o “Clube” e o “Grémio da Lavoura”, dois centros de convívio essencialmente masculino, onde nunca entrei. Tirando uma ou outra excepção, as mães não saíam, ficavam em casa, a tratar da lida doméstica, e, concluída esta, punham-se à janela a ver quem passasse ou a falar com a vizinha da frente, tendo à sua guarda os filhos mais pequenos e as filhas, fossem elas crianças ou raparigas crescidas. Entrei tarde e mal preparado para a escola oficial.
A aprendizagem das 1.ª e 2.ª classes tive-a em casa, com a minha mãe, nas muitas horas que ela dedicava à costura, recitando a tabuada e juntando as letras na Cartilha Maternal, de João de Deus. Na Rua do Segeiro, onde morávamos, a carpintaria do mestre Roberto abriu-se-me aos olhos e ao coração. Sempre que podia escapar à mãe e às obrigações escolares, esta oficina era o meu mundo mais apetecido. Ali aprendi a conhecer as ferramentas, os seus nomes, os seus usos e os lugares onde ajudei a guardá-las ao fim do dia.
A essa oficina associo o cheiro exalado pela madeira de pinho, ao ser serrada, o odor a barro molhado do rebolo de amolar, o do azeite rançoso, viscoso e enegrecido, sobre a ardósia de dar fio aos formões e badames, e o do grude derretido em banho-Maria num caldeiro de cobre. Os sons cantantes das serras e serrotes, das plainas e garlopas a desbastarem e alisarem pranchas e barrotes, são parte da memória desse meu pequeno grande mundo.
O mestre Roberto foi nesse tempo e ainda o é, como evocação, uma figura central no meu imaginário. Com um percurso escolar atribulado, nem sempre exemplar, e um serviço militar cumprido por obrigação e com algum desalinho não ao gosto da instituição, cheguei tarde à meta que me permitiu trabalhar em domínios próprios da ciência que abracei e, ao mesmo tempo, ensiná-los a muitos milhares de alunos e divulgá-los a um número ainda maior de concidadãos. Poucas pessoas terão tido, como eu, o privilégio de exercer profissionalmente a actividade que preencheria os seus tempos livres e de sentir o local de trabalho como a sua própria casa.
Esta condição sempre me diluiu a diferença entre dias ou tempo de trabalho e dias de descanso ou tempo de férias. Por vezes, dou comigo a dizer que estive sempre em férias, o que é uma maneira divertida de dizer que nunca deixei de trabalhar nesses tempos de lazer que a sociedade organizada concede a quem trabalha.
Quarenta anos de investigação e ensino na Universidade permitiram-me conhecer, por dentro, não só as salas e salões, os corredores, as escadarias e as torres de marfim, mas também, os subterrâneos do mundo académico, um mundo demasiado elitista a que resisti, vacinado por uma saudável ruralidade bebida nos campos do Alentejo e na convivência com as suas gentes.
A. Galopim de Carvalho
1 comentário:
Lindas palavras, gratas memórias!
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