segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Pode a educação superar o problema do Mal?

Richard Kearney (aqui)
Conscientes de que a premissa iluminista traduzida na relação directa, de causa e efeito, entre a Educação e o Bem (exemplarmente ilustrada na máxima "Quem abre uma escola e fecha uma prisão", de Victor Hugo) se revelou, no século XX, um enorme engano, devemos recusar-nos a aceitar que a Educação não concorre, de alguma maneira, ainda que modestíssima, para o Bem.

Sei bem que do rescaldo da Segunda Grande Guerra sai destacada, sobretudo na Filosofia, uma enorme decepção acerca do poder da educação para nos desviar da maldade. Hannah Arendt e George Steiner mostraram que os mais elevados graus de educação escolar não impedem as maiores barbaridades, podendo até concorrer para elas.

Não devemos, por isso, afastar a apreensão sobre os reais efeitos do ensino no carácter daqueles que aprendem, mesmo quando ele é conduzido pelos mais elevados padrões que somos capazes de conceber. Na verdade, é impossível controlar, até a curto prazo, a direcção exacta ou, mesmo, aproximada, desses efeitos.

Mas devemos também saber que quem educa tem de ter como horizonte a perfectibilidade, ainda que consciente de que esse horizonte, mais do que longínquo, é inatingível. Porém, é para lá que se impõe caminhar, aceitando-se, em cada etapa, a perfeição possível.

Esta reflexão encontra-se patente numa entrevista a Richard Kearney, professor de Filosofia da Sorbonne e do Boston College que se tem dedicado a estudar o "Mal humano" (distinto do "Mal natural"): origem ou origens, explicações que pode ter, e o que se pode fazer para o evitar (aqui: Sociedade da Nações)

Segue-se uma síntese da respostas que deu a estas questões.
Em relação à origem do Mal, recordou Santo Agostinho, que nas Confissões, declarou que não é nos deuses e nos demónios que a devemos procurar, é, sim, ser humano.
E existirá uma noção universal de Mal? Não, disse Kearney, mas é preciso explicar este "não". Para São Tomás de Aquino pode dar-se o caso de as pessoas que cometem o Mal pensarem que estão a fazer Bem. Com base em Espinosa, precisou que isso não decorre da opinião, decorre sim da interpretação: o Mal humano é o que está sujeito a um conflito de interpretação. 
Vejamos: se, mais, recentemente, Nietzsche defendeu que os valores variam de sociedade para sociedade (por exemplo o valor mais importante para os Gregos era a coragem) e na mesma sociedade, Dostoievski (devemos ter isso presente dada a importância de debate dos valores) notou que, em todos os tempos e lugares, foi considerado sempre mal torturar uma criança inocente. 
Esta tensão, representada por Nietzsche e Dostoievski, é importantíssima para o debate dos valores, que tem de ser feito continua e empenhadamente. De facto, os valores não surgem do nada, foram inventados e evoluem. Além disso, não podemos descuidar a sua hierarquização, que nos permite reconhecer os de topo, os quais, nessa medida, constituem a moralidade.
É desses valores que a escola se deve ocupar, em primeiro lugar. 
Para isso a escola pública ocidental terá de rever o princípio de laicidade que adoptou (nada de religião no currículo), pois não se poderá compreender a origem e a evolução dos valores sem o ensino das religiões. Trata-se, sublinhou, de ensino das principais religiões, não de doutrinamento numa religião. 
O Mal solicita a compreensão é outra ideia de fundo. Compreender será perdoar? Respondeu Kearney: não necessariamente, porquanto o perdão implica que a pessoa que procedeu mal reconheça isso mesmo. É neste quadro que se compreende a intenção de Mandela: "verdade e reconciliação". E no qual devemos usar uma diferença feita por Luria entre "o homem sem memória" e "o homem que não pode esquecer". 
Talvez o Mal possa ser superado por esta pequena porta, porque é preciso que o seja. É preciso passar da "hostilidade" para a "hospitalidade". Mesmo que isso possa parecer impossível há que tentar, no pressuposto de que as pessoas não são todas iguais, mas também não são todas diferentes. Se conseguirmos que as pessoas que se julgam diferentes e que sentem hostilidade umas pelas outras partilhem as suas histórias, as marquem e avancem, estaremos a mudar a imaginação e, em sequência, a realidade. 
Este pensamento levou Kearney a organizar um projecto que se designa por Guestbook Project que, recorrendo às redes sociais, põe em contacto jovens de comunidades divididas (isrealistas e palestinianos). Em díades "hostis" partilham as suas histórias e um terceiro elemento, com tecnologias básicas um pequeno vídeo..

1 comentário:

joão viegas disse...

Prezada Helena Damião,

Obrigado pelo resumo. A questão que levanta é tão antiga como a interrogação socratica sobre se é possivel alguém fazer o mal de forma voluntaria. De certa maneira, é subjacente a qualquer obra de reflexão filosofica.

As suas interrogações evocam um grande filosofo (pragmatico), com uma pujante reflexão ética, que foi ao mesmo tempo um grande pedagogo, e cuja leitura me atrevo a recomendar, a menos que ja o conheça, como é provavel : John Dewey (começando talvez por "Reconstruction in philosophy").

Boas

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