Por João Boavida
Recensão recentemente saída na Revista Portuguesa de Pedagogia, publicação da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.
Chego ao fim das mil e duzentas páginas deste livro e quase fico a admirar tanto
a personalidade de Fernando Pessoa como a capacidade de trabalho, a paciência e
a perspicácia com que Richard Zenith tratou o tema da vida e obra do nosso maior
poeta do século XX. O carácter exaustivo, ou quase, da obra é o maior contributo
até hoje levado a cabo para compreender e avaliar a dimensão desta personalidade
única da nossa cultura.
O livro, escrito originariamente em inglês, vai dando conta da realidade sociopolítica
de Portugal, desde os finais do século XIX até à terceira década do século
XX, quando Fernando Pessoa morreu. Faz, por isso, referência a factos da nossa
história, talvez desnecessários se o livro tivesse sido escrito preferencialmente para
portugueses, mas que se tornam úteis para o leitor estrangeiro. E como alguns desses
acontecimentos estarão esquecidos, e outros, pela sua particularidade, serão
desconhecidos da maioria dos portugueses, no final resulta uma obra enriquecida
e proporcionando uma melhor compreensão da personalidade de Fernando Pessoa
e da sua circunstância.
Para nos dar a compreender a sua poética, Richard Zenith enquadra-o em factos
da História de Portugal que são importantes, sobretudo a epopeia dos Descobrimentos,
em influências literárias, António Vieira, o Romantismo (Shelley), o Simbolismo
(Mallarmé, Verlaine, Rainbaud, Camilo Pessanha), Cesário Verde e um certo realismo
sensorial, até ao Saudosismo (Teixeira de Pascoais). Mas também em mitos, desde a
Caverna platónica até ao Sebastianismo, que a partir do desastre que lhe deu origem,
tão grande influência exerceu no imaginário português. E, finalmente, num profetismo,
de profundas raízes culturais e religiosas, de que o sapateiro Bandarra é talvez a sua
mais expressiva manifestação, e que tem, através da ideia de um Quinto Império,
reflexos e ideações importantíssimas na obra de Fernando Pessoa.
Entre os aspetos mais cativantes estará a utilização, por Richard Zenith, de uma
estrutura diacrónica que segue o poeta desde o nascimento até à morte, acompanhando
de perto os factos, e produzindo contínuas interpretações, e sempre em
ordem a uma visão de conjunto. Parece, de facto, ser esta estrutura a mais indicada,
não tanto por ser a mais natural, mas sobretudo porque é a que melhor permite compreender a pessoa em causa – um Fernando Pessoa, tão nosso e tão integrado no tempo português e, simultaneamente, tão distante, tão afastado do nosso comum modo de ser.
Sem esquecer, e dando-lhe a devida importância, os períodos que Pessoa viveu em Durban, enquanto jovem, pela influência que tiveram para a sua vida intelectual e poética, onde o inglês teve não só grande influência como foi, digamos, um companheiro constante do seu pensamento e da sua expressão poética e teorética.
Esta biografia é, a vários títulos, admirável, e só foi possível por umas tantas qualidades de que Zenith deu mostras.
Em primeiro lugar, uma capacidade de trabalho impressionante, na consulta e leitura de milhares de documentos: manuscritos ou dactilografados, soltos ou em cadernos, cartas, panfletos, poemas completos, começos de poemas, artigos para os jornais, manifestos, esboçados, ou mais desenvolvidos, textos quase sempre incompletos, obras em aberto à espera de continuação ou de acabamento; uns, longos, outros curtos, às vezes só uma frase, um breve apontamento, além de muitos horóscopos, tábuas cosmológicas, mapas astrológicos, interpretações cabalísticas, apontamentos múltiplos, de natureza mais ou menos filosófica e religiosa, escritos tanto em português, como em inglês e francês.
Mesmo tendo em conta que a famosa arca de Pessoa já fora vasculhada, ordenada, catalogada e estudada por muita gente, e que Zenith terá encontrado muito trabalho feito, podemos imaginar o enorme e continuado esforço que esta obra exigiu. É certo que Richard Zenith era um dos investigadores que há muito vinha trabalhando sobre Fernando Pessoa, mas, mesmo assim, é admirável.
Lembremos que é da sua autoria, juntamente com Carlos Filipe Moisés e Maria Helena Merlim Borges, uma obra editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2012, intitulada Fernando Pessoa, o editor, o escritor e os seus leitores, que poderia chamar-se fotobiografia, embora seja mais do que isso pelos muitos contributos que a enriquecem, mas provavelmente não foi assim catalogada porque já fora publicada em 1981, pela Imprensa Nacional e o Centro de Estudos Pessoanos, Fernando Pessoa, uma fotobiografia, da autoria de Maria José de Lencastre.
Foi também necessária muita paciência, a Richard Zenith, para levar a obra a bom termo. Ler, adivinhar a difícil caligrafia, interpretar e comparar textos, cruzar informações, tentar situar cronologicamente milhares de papéis não datados (ou com datas fictícias) mas que era importante localizar em função da época e da idade de Fernando Pessoa; ir avaliando as suas obsessões, através de inúmeros registos que ia deixando; dar conta dos seus interesses, sempre em evolução, mas profundos, complexos, frequentemente ambíguos e sob pontos de vista racionalmente exigentes, ou mesmo ultrapassando a razão comum; articular textos da sua sempre adiada intervenção política, sofrendo com as desditas da Pátria (desde a descrença na decadente Monarquia, passando para a esperança na República, caindo novamente
na desesperança republicana, renascendo com Sidónio Pais, morrendo com o seu
assassinato, renascendo com Salazar e, já perto da morte, desiludindo-se do Estado
Novo, sobretudo pela sua orientação controladora e repressiva, coisa que um artista
não pode tolerar porque a liberdade é tudo para ele).
Zenith acompanha com bom
ritmo e uma profundidade adequada todo este processo procurando interpretar e
explicar a complexidade intelectual de Pessoa, o que requer uma importante capacidade
de teorizar e um enquadramento cultural muito rico.
Finalmente, foi-lhe necessário grande perspicácia e capacidade interpretativa,
pois não se limitou a descrever ou resumir os conteúdos, frequentemente difíceis
e obscuros, mas foi fazendo, como já se disse, interpretações em função de uma
personalidade sempre em evolução, mas com notáveis constâncias, oscilando o
biógrafo entre a análise discursiva da vida e dos acontecimentos vividos por Pessoa,
com constantes sínteses desse caudal de pensamento e de emoção, em ordem a
uma ideia senão definitiva pelo menos o mais completa possível.
Até porque a interpretação que Richard Zenith vai fazendo é de grande consistência
teórica, e com vasto suporte cultural, como também já foi referido, conseguindo,
deste modo, uma boa correspondência entre o biografado e o modo mais
adequado de o dar a conhecer.
E não por qualquer presunção intelectual, que o texto
não denota, mas porque a própria complexidade de Fernando Pessoa o exige. Neste
sentido, Richard Zenith mostra-se à altura da tarefa, terá alcançado um marco difícil
de ultrapassar, e esta biografia passou a ser certamente uma obra incontornável para
o conhecimento de Fernando Pessoa.
Um dos aspetos mais cativantes desta obra está no evidente prazer com que
Richard Zenith trata a pessoa de Pessoa, procurando compreendê-la, inserir-se no
seu intelecto e dar dele notícia, como se fosse mais um heterónimo, tratando-o
com evidente admiração, mas também com uma certa bonomia compreensiva e
até algum humor.
Ficamos a conhecer muito melhor o poeta, a sua reserva, a sua discrição, o seu
silêncio, a sua figura fugidia, a sua quase sombra, a sua solidão procurada e cultivada,
as suas imensas leituras, a sua enorme cultura, a sua extraordinária capacidade
intelectual e, acima de tudo, o seu imenso talento poético.
Porque Pessoa não foi somente o extraordinário poeta que toda a gente sabe,
ou ouviu dizer, mas ele é também uma personalidade fora do comum, com grande
imaginação e efabulação e uma aguda e multitemática capacidade de teorizar.
E,
mais ainda, com espantosos e perturbadores desdobramentos de personalidade,
permitindo-se viver vidas paralelas, personalidades múltiplas com pensamentos e
sentimentos correspondentes a cada uma delas. Porque, para lá das personalidades capazes de se manifestarem literariamente de modos tão diferentes, como são os heterónimos mais conhecidos – Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares, além de Pessoa ele mesmo – criou e desenvolveu, desde muito cedo e ao longo da vida, inúmeras alternativas da sua personalidade, heterónimos de variada consistência e orientação psicológica e teórica, uns mais efémeros, outros mais persistentes, mas que nos revelam não só a riqueza do seu caráter como as enormes potencialidades que, pelos níveis de realização conseguidos para cada um, nos permite avaliar.
Os heterónimos não são tanto uma estratégia poética, como o seriam se fosse um conjunto de pseudónimos, mas resultam duma necessidade de dar diferentes vozes às muitas vivências da sua pessoa; isto é, foram o modo de desdobrar personalidades e multiplicar realizações mentais e sensibilidades estéticas, cuja necessidade sentiu quase desde criança.
Daí as dezenas de heterónimos que foi criando ao longo da vida, distribuindo as diferentes personalidades por papéis, conforme se tratava de poesia ou prosa, e segundo a preocupação era a literatura, a filosofia, a, política, a arte, o ocultismo, a telepatia, a astrologia, a religião e quase tudo o que sobre estes domínios se possa imaginar.
Richard Zenith cria confrontos, pressupõe diálogos, debates entre Pessoa e os seus heterónimos, como se fossem outras pessoas (e talvez fossem) e dá ao texto o pretexto e a oportunidade de criar ou sugerir essa simultaneidade de personalidades.
E assim vai acompanhando este processo de forma continuada, pondo, ao lado de Pessoa, o heterónimo Ricardo Reis, para o afastar de Ofélia Queiroz, que toda a vida o amou ingloriamente; ou o heterónimo António Mora, para discutir assuntos filosóficos e para-filosóficos; o Álvaro de Campos para nos transmitir as ânsias futuristas de abarcar todos os mundos e de poder embarcar para todos eles, quase sem sair do seu quarto, ou talvez por isso mesmo; o de Alberto Caeiro, para lhe revelar que a dimensão das coisas é não terem outra dimensão que aquela que o olhar lhes dá e, assim, se contrapor à sedução de mistérios e metafísicas que tanto o seduziram; ou um Bernardo Soares, que do seu escritório de amanuense da Rua dos Douradores, indaga as profundezas de uma alma aparentemente sem fundo e sem forma.
Enfim, inúmeras personagens, porque a lista de heterónimos de Fernando Pessoa é enorme, incluindo um Alexandre Search, um Barão de Teive, um Charles Robert Anon, um Faustino Antunes, um Dr. Pancrácio, um Eduardo Lança, um I.I. Crosse, um Vicente Guedes, um Chevalier de Pas, um David Merrick, um Gaveston e muitos mais.
Entretanto, vamos ficando a saber da vida e dos hábitos de Pessoa, do seu amor pela família, mas também do seu afastamento, dos sobrinhos que o adoravam pelas suas brincadeiras e palhaçadas, da sua delicadeza, do seu silêncio ou das suas palavras lentas e baixas que, no entanto, todos ouviam atentamente, do seu pequeno grupo de amigos, algo extravagante, do seu ensimesmamento natural e cultivado, da sua vida sexual, casta, ambígua e algo contraditória, das suas finanças sempre em rotura, dos seus calotes ou difíceis pagamentos, dos seus vícios do tabaco e do álcool, que o acabaram precocemente, dos seus projetos de ganhar dinheiro, que nunca deram em nada, das suas desastrosas iniciativas editorias, que delapidaram uma herança, etc. etc.
Em resumo, pode dizer-se que Fernando Pessoa era o génio inevitável. Pela inteligência poderosa, de que desde cedo deu mostras; pela curiosidade insaciável, que o tornou um leitor voraz; pela propensão para o mistério e a capacidade de o viver e de o pensar; pelas suas características psicológicas ciclotímicas, e até pelo seu estilo de vida era, de facto, um ser excecional.
É certo que isto não é suficiente para produzir um génio, embora ajude, mas havia nele algo de muito mais, e que escapou à maior parte dos seus contemporâneos – a sua genialidade poética. É esta que dá razão de ser, unifica e engrandece todas estas características invulgares.
O trabalho é enriquecido, ainda, por abundantes notas para cada capítulo, por Fontes e Referências, lista das Obras de Fernando Pessoa, Bibliografia Selecionada, Índice Remissivo, e uma diversificada e razoavelmente extensa documentação fotográfica.
Em suma, para além de tudo o que foi dito relativamente a Fernando Pessoa, é um monumento, uma grande homenagem à cultura portuguesa.
João Boavida
______________Referência: Boavida, J. (2022). Recensão ao livro "Pessoa, uma biografia". Revista Portuguesa de Pedagogia, 56, e056008. https://doi.org/10.14195/1647-8614_56_08
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