Minha recensão do livro com o título de cima de Manuel Paiva (Imprensa Nacional):
Estou a falar de Memórias de um Cientista, com subtítulo De Estalinegrado à covid-19 ou a luta entre a ciência e as trevas, a autobiografia de Manuel Paiva. O prefácio é de Onésimo Teotónio Almeida, o professor da Universidade Brown e colunista do JL, que tão rápido está de um lado como do outro do Atlântico. Estalinegrado aparece no título por causa do ano de nascimento do autor, 1943, quando estava a findar a dura e famosa batalha. Curiosamente, o autor tem uma relação com a Rússia, pois, como conta no livro, a sua mulher, que conheceu na Bélgica, é neta de um general que integrou o Estado Maior do czar. A covid-19 tem a ver com o livro pois levou ao isolamento do autor nos Estorninhos, onde o escreveu.
Serei suspeito se recomendar o livro, já que sou amigo do autor (e, já agora, do prefaciador). Mas recomendo-o vivamente, não me importando com a suspeição. Li-o de um fôlego, com imenso prazer. Vale bem a pena conhecer a vida do Manuel desde a infância e juventude portuenses até à sua emigração para a Bélgica, para cursar Física em Bruxelas, tornar-se professor e fazer carreira em Física Médica, com larga investigação no domínio da respiração humana, designadamente nos astronautas (trabalhou com a NASA). Já conhecia, em traços gerais, a sua biografia, não só em virtude da dita amizade, mas também porque li todos os outros seus livros. Este está particularmente bem encadeado, mesclando curiosas histórias familiares com elucidativas histórias profissionais, com alguma divulgação de ciência pelo meio. Bem escrito, não transparece que o autor trocou o português pelo francês, em 1964, quando deu o salto para o país de Tintim. Dotado de uma memória de elefante, o Manuel é um bom contador de histórias. Uma experiência de vida é algo muito pessoal que só é transmissível na medida em que o protagonista faz um esforço de recolecção e quer contar a sua versão do que viveu para conhecimento de contemporâneos e vindouros. O género autobiográfico não é comum entre nós. Mas a Imprensa Nacional publicou há pouco uma excelente autobiografia de Jorge Calado, o químico que é amante de ópera e de fotografia (Mocidade Portuguesa, 2022), embora limitada aos primeiros anos. Um outro magnífico exemplo são as Memórias de Rómulo de Carvalho, que ele escreveu para os tetranetos (Fundação Gulbenkian, 2010).
Este é o sexto livro do autor em português. Elenco-os aqui: o primeiro é Diálogos sobre Portugal (com Mariana Pereira, Livros & Leituras, 1998), uma interessante conversa entre dois cientistas de gerações diferente sobre o seu país; seguiu-se Como Respiram os Astronautas e outras histórias de física biomédica (Gradiva, 2004; 2.ª ed. rev., 2013), uma bem conseguida peça de disseminação científica; depois, o livro para crianças Ciência a Brincar: descobre o céu! (com Constança Providência, Nuno Crato e eu, Bizâncio, 2005); À Espera de Godinho: quando o futuro existia (com Amadeu Lopes Sabino, Jorge de Oliveira e Sousa e José Morais, Bizâncio, 2009), resultado da reunião de quatro lusitanos na capital belga; Portugal e o Espaço (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016), um ensaio sobre a entrada de Portugal para a investigação espacial; e Um Inventor em Aldoar e a busca de vida no Universo (Progresso da Foz, 2019), um primeiro ensaio autobiográfico difícil de encontrar.
O autor conta nas suas Memórias como nos conhecemos, tornando-nos amigos. Não é apenas sermos ambos físicos, mas também e sobretudo por partilharmos alguns interesses intelectuais, em particular saber o que é a identidade portuguesa. Encontrei Diálogos sobre Portugal numa livraria de Coimbra. Achei-lhe tanto interesse que resolvi escrever uma recensão na Gazeta de Física, que na altura dirigia. Enviei-a o autor, que mais tarde entrevistaria para a mesma revista. Vivi uma história engraçada associada a esta obra. O autor e o editor convidaram-me para a apresentar na Livraria Lello no Porto. O evento foi anunciado para um fim da tarde nesse extraordinário sítio. Pois, como autor, editor e apresentador eram desconhecidos, à hora marcada só lá estávamos os três. Tudo acabou bem: não houve apresentação, mas comemos um bom bacalhau num restaurante próximo, regado com um tinto do Douro.
Eu haveria de participar num forum de cientistas portugueses a trabalhar no estrangeiro que o Manuel promoveu em Faro e, tendo apreciado a reunião, ofereci-me para organizar o encontro seguinte na Universidade de Coimbra, que ocorreu em 2004. Foi um belo reencontro. Tenho mais histórias com o Manuel. Um dia fomos falar a miúdos de uma escola numa exposição promovida pela Agência Espacial Europeia numa tenda no Terreiro do Paço, em Lisboa. Fizemos várias experiências que os infantes adoraram e respondemos a todas as questões. Só fiquei um pouco frustrado no dia seguinte, pois, tendo dando in loco uma entrevista ao DN, sugeri um bom título que afinal não saiu: era «No Terreiro do Espaço»...
Manuel é o rapazinho de Aldoar que subiu lá fora, graças à sua dedicação ao trabalho, o que nele passa por uma organização meticulosa. Ele planeia tudo o que faz com enorme antecedência, tal como as agências espaciais. Aborrece-se com a falta de pontualidade dos portugueses e, de um modo geral, com a nossa falta de planificação. Acho que mais portugueses fossem como o Manuel estaríamos muito melhor. Leiam a maravilhosa história da sua vida, onde entram Mário Soares, os intérpretes cubanos de uma conversa crucial entre Khrushchev e Castro e vários astronautas. A expressão «ciência e trevas» no subtítulo remete para o final do livro: a divisa da Universidade Livre de Bruxelas é «A ciência vence as trevas». É todo um resumo de vida.
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