domingo, 26 de fevereiro de 2023

GALILEU EM PÁDUA

Minha recensão saída no As Artes entre as Letras:


Galileu em Pádua (Gradiva) é o título de um livro de história da ciência que mais parece um romance histórico da autoria do físico italiano Alessandro De Angelis, professor da Universidade de Pádua e da Universidade de Lisboa (Instituto Superior Técnico). 

O subtítulo - Os melhores anos da minha vida - é uma frase que Galileu Galilei usou para designar o período entre 1592 e 1610 em que foi professor na Universidade de Pádua, na época pertencente à República de Veneza. 

Foi um período extraordinário da história da ciência. Pode dizer-se que começou nessa altura a ciência moderna. Galileu escreveu em Pádua c. 1600 o livro Le Meccanhice  (As Mecânicas) em que discute os movimentos na Terra: foi em Pádua que começou as suas experiências de queda de corpos ao longo de planos inclinados que conduziriam à  lei da queda dos graves. E foi também em Pádua que escreveu o seu celebérrimo Sidereus Nuncius (O Mensageiro das Estrelas), publicado em Veneza em 1610, onde relata as suas primeiras observações com o telescópio, revelando novos mundos: descobriu montanhas na Lua, manchas no Sol, satélites de Júpiter e fases de Vénus.

De Angelis revela-se um engenhoso criador literário e um sagaz comunicador de ciência. Informou-se bem, consultando toda a documentação existente, sobre os passos de Galileu em Pádua, desde que veio de Pisa e deu a sua primeira aula, quando tinha 28 anos, até à sua última aula, aos 36 anos, antes de rumar para Florença, onde tinha granjeado a protecção dos Medici: por alguma razão tinha chamado aos novos satélites de Júpiter «estrelas mediceias». Inseriu as cartas conhecidas de e para Galileu dessa época e entre elas imaginou a «vida de Galileu» (para usar o título de uma famosa peça de Brecht). O resultado é um livro que se lê com muito agrado, quase um romance, através do qual se pode aprender ciência.

Galileu veio de Pisa, sua terra natal (ali nasceu em 1564) onde já ensinava, e iria depois de Pádua para Florença, onde tinha sido educado entre os dez e os 16 anos, já que o seu pai, Vicenzo Galilei, era músico, alaudista e teórico musical, na corte dos Medici aí sedeada. Galileu cresceu num ambiente musical, sabendo tocar alaúde (um dos seus cinco irmãos foi mesmo músico profissional como o pai). O sábio pisano haveria de morrer em Florença, em 1642, em prisão domiciliária, determinada pela Inquisição após o processo relativo ao heliocentrismo que ocorreu em 1633.

É um Galileu muito humano o que nos é apresentado pelo autor neste livro, muito bem traduzido do original italiano por Bárbara Villalobos. Um Galileu que gosta de se divertir, de comer e de beber, e de frequentar bordéis. Foi em Pádua que Galileu viveu com a veneziana Marina Gamba, a mãe dos seus três filhos (duas filhas, ambas freiras, Virginia e Livia, e um filho, que foi seu herdeiro, Vincenzo como o avô) com quem, no entanto, nunca casou. Os filhos foram, portanto, ilegítimos, embora o herdeiro tinha sido legitimado mais tarde. Galileu deixou Marina quando se deslocou de Pádua para Florença. É um Galileu preocupado com a falta de dinheiro aquele que nos é retratado: as filhas foram enviadas para o convento porque o pai não tinha meios para pagar os dotes se caso casassem.

Um dos melhores amigos de Galileu (o nome próprio, tal como de família, remete para Galileia, a terra bíblica), aparece logo no início do livro: trata-se do matemático e físico veneziano Giovanni Francesco Sagredo, que melhorou o termómetro de Galileu, discutiu com ele possibilidade de fazer um telescópio com um espelho e colaborou com ele em estudos de magnetismo. Em sua homenagem, e numa altura em que Sagredo já tinha falecido (morreu em 1620), Galileu fá-lo personagem do seu livro Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo (1632), no qual discute os modelos heliocêntrico e geocêntrico, a obra que haveria de conduzir à acusação que a Igreja fez a Galileu. O nome de Sagredo volta a aparecer em Discursos sobre Duas Novas Ciências, escrito na prisão doméstica e enviado clandestinamente para impressão na Holanda (saiu em 1638), uma das obras-primas da ciência. Tanto no Diálogo como nos Discursos os personagens são três: Simplicio, Sagredo e Salviati, sendo Simplicio o mais ingénuo, Salviati, o mais ousado, e Sagredo o mais moderado. De Angelis é também o autor de uma versão moderna do Discurso sobre Duas Novas Ciências, que tem tradução em inglês.

Um dos pontos altos do livro Galileu em Pádua é a sua descoberta dos primeiros satélites de Júpiter, a que hoje chamamos luas galilaicas. Está relatada na p. 245, datada de «Pádua, casa da Rua dos Vinhais, 7 de Janeiro de 1610».

«Apontando o cannocchiale [o telescópio] para Júpiter, Galileu não conseguiu acreditar no que via. Afastou os olhos esfregou-os, respirou profundamente e depois olhou de novo. Embebeu a pena no tinteiro e escreveu: ‘Esta noite vi Júpiter acompanhado de três planetas, totalmente invisíveis pela sua pequenez, e a sua configuração não ocupava mais que cerca de um grau em longitude. Três planetas pequenos, mas brilhantes’ […]»  

Esta é uma transcrição do Mensageiro das Estrelas, que entre nós foi editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, com prefácio de Henrique Leitão. Os desenhos de Galileu estão reproduzidos no livro. Os «planetas» moviam-se e o astrónomo representou os seus movimentos em dias sucessivos. A Terra não era o único astro a ter lua: havia outros centros de movimento no Universo. A pergunta é óbvia: por que não também o Sol?

Vale muito a pena esta obra de De Angelis, reputado físico experimental que trabalhou no CERN em Genebra, especialista em radiação cósmica e também em história da ciência. Além do mais, é um bom escritor, na tradição de Galileu.

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