domingo, 19 de agosto de 2018

Há muito que a leitura de "Os Maias" deixou de ser obrigatória na escola

"... os jovens entre os 12 e 18 anos 
usam a Língua Portuguesa de forma pragmática 
e recorrem apenas a cerca de 1500 palavras para se expressarem (...). 
Ora, para ler os livros de Eça de Queiroz, 
é necessário dominar 20.000 a 30.000 palavras (…). 
A leitura de obras obrigatórias na escola, 
apesar do carácter aparentemente sacrificador, 
têm um efeito altamente disciplinador da memória, 
do conhecimento, da história, da estrutura das narrativas..."
Miguel Real (ver aqui 

Com a publicação das “Aprendizagem Essenciais” para a disciplina de Português do Ensino Secundário, “Os Maias”, talvez a obra mais conhecida de Eça de Queirós, deixa de ser de leitura obrigatória no 11.º ano. 
Esta ideia que tem andado pela imprensa, lia-a em artigos de jornalistas e, depois, em artigos de comentadores e de professores (por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui).

1. Trata-se, como consta em alguns desses artigos, de uma ideia errada pois há mais de quinze anos que a tutela não determina esta leitura como obrigatória. Para sustentar esta afirmação consultei os documentos curriculares mais recentes para esta disciplina:
No Programa de Português para os Cursos Científico-Humanísticos e Tecnológicos homologado em 2002 (para 11.º e 12.º anos) (ver aqui):
- não há qualquer referência à obra, ainda que haja quatro referências ao autor (páginas 14, 42, 58 e 73);
- indica-se como conteúdo para o 11.º ano, no âmbito dos “textos narrativos e descritivos”, a “leitura integral” de um romance de Eça de Queirós, sendo isto mesmo reiterado numa tabela em que constam os aspectos a ter em conta na análise da obra escolhida (categorias do texto narrativo, contexto ideológico e sociológico, valores e atitudes culturais, características da prosa queirosiana). 
No Programa e Metas Curriculares de Português para o mesmo âmbito de ensino, homologado em 2014 e em vigor (ver aqui): 
- indica-se, em duas passagens (páginas 20 e 35), a leitura integral de um, de entre dois, romances do autor: “Os Maias” ou “A Ilustre Casa de Ramires”. 
No documento Aprendizagens Essenciais, recentemente homologado (ver aqui):
- indica-se a leccionação de “um romance de Eça (página 8), na perspectiva de que o aluno deve ser capaz de “interpretar obras literárias de autores marcantes entre os séculos XVII e XIX” e Eça é um dos autor mencionado na lista apresentada. Não é explícito, mas presume-se, que a leitura seja integral.
2. Nesses artigos que li encontrei duas opiniões: uma a favor de que "Os Maias” sejam de leitura obrigatória ou fortemente recomendada; outra contra a imposição de livros concretos por parte do Ministério da Educação, cabendo tal escolha às escolas, aos professores e aos alunos. 

Nada de novo numa antinomia recorrente, cujo debate nunca chegou a lado algum. Não sendo especialista em literatura, sou sensível à posição de quem sabe (como Carlos Reis, Helena Buescu e António Carlos Cortez) e diz que a obra em causa, dada a sua especificidade a diversos níveis, deve ser lida na escola.

 Acrescento que sendo necessária alguma diversidade no currículo escolar, antes de mais há que assegurar alguma uniformidade, de modo a conseguir-se um quadro de referências civilizacionais comuns. Esse quadro tem de ser elaborado com o maior conhecimento e discernimento, à margem de toda e qualquer ideologia que conduza ao doutrinamento, afastando a educação. 

3. Dando-se o caso de, em algumas escolas, haver professores que muito compreensivelmente persistam na escolha d´"Os Maias", a obra será, de facto, lida por uma maioria ou por uma minoria de alunos? Todos aqueles que a lerem, conseguirão compreender o seu conteúdo? Conseguirão apreciá-la, frui-la?

Não disponho de dados concretos, apoio-me numa observação casuística e, devo dizer que, com base nela, a minha resposta não é animadora. Penso, de facto, que serão raros os alunos que lêem a obra na sua totalidade, quanto muito passarão os olhos por ela. E porquê? Parece-me haver duas explicações que estão, de resto, interligadas: 

- uma explicação é que os alunos não são devida e adequadamente chamados para a literatura ao longo da escolaridade. Ler é uma tarefa de grande complexidade que requer, entre outros requisitos, continuidade e progressividade. Pouco tendo lido (em livros, não em manuais) até ao secundário, quando se lhe diz "lê!" e se lhes indica um livro com centenas de páginas, com um vocabulário que não entendem, é normal que tenham dificuldade em pegar-lhe, e que, caso o façam, desanimem. São muitas as dificuldades com que se confrontam, desde o vocabulário à fluência de leitura, passando pela experiência da interioridade.

- outra explicação é que os alunos sabem perfeitamente que não é preciso ler esta obra (ou qualquer outra) para passarem de ano e, até, para terem notas aceitáveis, fim último que, como sociedade, lhe damos a entender que é o da escola. Além disso, pomos ao seu dispor resumos e resumos de resumos e todas as análises "exigidas" nos documentos curriculares, mais as interpretações possíveis... Tudo disponível em cadernos fininhos, em sites onde encontram slides animados, e, se não quiserem ou não souberem ler, mensagens em áudio para descarregarem no tablet ou no telemóvel... 

4. Aprender é uma tarefa que requer esforço dos alunos e, por isso mesmo, não pode dispensar o acompanhamento dos professores. Nesse acompanhamento, se queremos que muitos mais leiam livros e o façam de modo compreensivo e com envolvimento, temos de começar cedo e de o fazer bem.

Talvez aqui a analogia com a prática de um desporto seja aceitável: não podemos esperar que alguém corra a maratona se não se preparou sequer para correr e, mais, não vê qualquer sentido nisso.

NOTA: Este texto tem continuação aqui.

3 comentários:

Anónimo disse...

O ministério da educação e a esmagadora maioria dos alunos e encarregados de educação só podem ver vantagens em medidas inventadas pelos pedagogos do aprender a aprender, como é a ideia peregrina de retirar "Os Maias" do rol das obras literárias de leitura obrigatória no ensino secundário porque, deixemo-nos de hipocrisias, o que está em causa são, acima de tudo, os diplomas que atestam que todos tivemos uma educação escolar esmerada, com uma duração nunca inferior a 12 anos, independentemente de termos estudado, ou não, os Maias, os Incas ou os Astecas!...
A escola-elevador social, do tipo inclusiva, garante a todos os cidadãos portugueses, por despacho da ministra Maria de Lurdes Rodrigues, e com a chancela atualizada do jovem ministro Tiago Brandão Rodrigues, os mais elevados padrões de riqueza e bem-estar!
Contra factos, não há argumentos!...

Helena Damião disse...

Caro leitor anónimo, certamente não leu bem os extractos dos documentos curriculares: a obra em questão não foi retirada agora do currículo do ensino secundário, pois desde 2002 que lá não consta como de leitura obrigatória. Podemos considerar isso certo ou errado (fazendo minha a opinião dos autores que citei, considero que está errado) mas não podemos distorcer os factos, afirmando que foi a obra saiu do 11.º ano em 2018.
Cordialmente,
MHDamião

Anónimo disse...

Eu não tenho feitio para andar a escarafunchar em extratos de documentos curriculares redigidos num eduquês tão verborreico que até fere os ouvidos!
Só quem não teve a infelicidade de passar os olhos pelo Referencial de competências-chave de educação e formação de adultos, do tempo das Novas Oportunidades, onde se lê que “A opção por quatro áreas nucleares e uma área de conhecimento e contextualização no referencial apresentado, significa a consideração de todas elas como valiosas para a formação da pessoa/cidadão no mundo actual, ou seja todas elas, de forma integrada, contribuem para a cidadania e empregabilidade, já que possibilitam o desenvolvimento de conhecimentos, capacidades e atitudes que permitem as pessoas serem capazes de agir e reagir de forma adequada perante as situações mais ou menos complexas que a vida lhes vai colocando, e que permitem também o aprender a aprender nas suas quatro vertentes: aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a viver juntos e aprender a fazer.”, entre muitas outras jóias didáticas, como são as Áreas de Competência, os Critérios de Evidência, os Módulos Integrados e as Unidades de Aprendizagem, por exemplo, pode dar o benefício da dúvida a quem, por moto-próprio, ou dando cumprimento a ordens provenientes de entidades estrangeiras, vem prosseguindo um plano de redução e simplificação dos conteúdos das matérias lecionadas nas nossas escolas, de maneira a que, tanto professores como alunos, atinjam facilmente a satisfação plena enquanto membros interatuantes da comunidade escolar.
Eu sou contra estas políticas educativas que conduzem, insidiosamente, à desvalorização do saber e das qualificações escolares, mas o Governo, e a maioria do Povo que o apoia, estão, infelizmente, contra mim!

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