terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

“E assim vamos erguendo o monumento da camelice!”


Em comentário ao texto “Ei, intelectuais! Deixem as crianças em paz!”, publicado neste blogue, um leitor recordou uma reflexão de Eça de Queiroz, publicada no livro Cartas de Inglaterra, sobre a literatura para a infância e juventude. Agradecendo a intervenção, aqui reproduzimos uma parte significativa dessa reflexão, salientando, com as palavras do leitor, que passados 130 anos parece que, em certos aspectos, continuamos na mesma.

“Em Inglaterra existe uma verdadeira literatura para crianças, que tem os seus clássicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e génios – em nada inferior à nossa literatura de homens sisudos. Aqui apenas o bebé começa a soletrar, possui logo os seus livros especiais: são obras adoráveis, que não contém mais de dez ou doze páginas, intercaladas de estampas, impressas em tipo enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assunto é um história, em seis ou sete frases, e decerto menos complicada e dramática que O Conde de Monte-Cristo ou Nana; mas enfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral, e a sua catástrofe.
Tal é, para dar exemplo, a lamentável tragédia dos Três velhos sábios de Chester: eram muito velhos e muito sábios; e para discutirem coisas da sua sabedoria, meteram-se dentro duma barrica, mas um pastor que vinha a correr atrás duma ovelha, deu um encontrão ao tonel, e ficaram de pernas para o ar os três velhos sábios de Chester!
Como esta, há milhares: a Cavalgada de João Gilpin é uma obra de génio.
Depois, quando o bebé chega aos seus oito ou nove anos, proporciona-se-lhes outra literatura. Os sábios, a barrica, os trambolhões, já não o interessariam; vêm então as histórias de viagens, de caçadas, de naufrágios, de destinos fortes, a salutar crónica do triunfo, do esforço humano sobre a resistência da natureza.
Tudo isto é contado numa linguagem simples, pura, clara – e provando sempre que na vida o êxito pertence àqueles que têm energia, disciplina, sangue-frio e bondade. Raras vezes se leva o espírito da criança para o país do maravilhoso: - não há nestas literaturas nem fantasmas, nem milagres, nem cavernas com dragões de escama de ouro: isso reserva-se para a gente grande. E quando se fala de anjos ou de fadas é de modo que a criança, naturalmente, venha a rir-se desse lindo sobrenatural, e a considerá-lo do género boneco, como os seus próprios carneirinhos de algodão.
O que se faz às vezes é animar de uma vida fictícia os companheiros inanimados da infância; as bonecas, os polichinelos, os soldados de chumbo (…). Esta literatura é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a criança – mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos e misérias atravessam aqueles seus amigos, os guerreiros de chumbo, cujas baionetas torcidas ela todos os dias endireita com os dedos: e assim pode ficar depositado num espírito de criança justo horror da guerra.
As lições morais, que se dão deste modo, são inumeráveis, e tanto mais fecundas quanto saem da acção e da existência de seres que ela melhor conhece – os seus bonecos.
Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze anos: popularizações de ciências, descrições dramáticas do universo; estudos cativantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; a história; e, enfim, em livros de imaginação, a vida social apresentadas de modo que nem uma realidade muito crua ponha no espírito tenro securas de misantropia, nem uma falsa realização produza uma sentimentalidade mórbida (…)
Não sei se no Brasil existe isto. Em Portugal nem tal jamais se ouviu falar. Aparece uma ou outra dessas edições de luxo, de Paris (…) e que constituem ornatos na sala. A França possui também uma literatura infantil tão rica e útil como a de Inglaterra; mas essa Portugal não a importa: livros para completar a mobília, sim; para educar o espírito, não.
A Bélgica, a Holanda, a Alemanha, prodigalizam estes livros para crianças; na Dinamarca, na Suécia, eles são uma glória da literatura e uma das riquezas do mercado.
Em Portugal, nada.
Eu à vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres crianças, Creio que se lhes dá Filinto Elísio, Garção, ou outro qualquer desses mazorros sensaborões, quando os infelizes mostram inclinação para a leitura.
Isto é tanto mais atroz quanto a criança portuguesa é excepcionalmente viva, inteligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os portugueses, só começamos a ser idiotas – quando chegamos à idade da razão. Em pequenos, temos todos uma pontinha de génio: e estou certo que se existisse uma literatura infantil como a da Suécia ou da Holanda, para citar só países tão pequenos como o nosso, erguer-se-ia consideravelmente entre nós o nível intelectual (…). E assim vamos erguendo até aos céus o monumento da camelice!”

Maria Helena Damião e Maria Regina Rocha

Referência bibliográfica:
Eça de Queiroz (1951). Literatura de Natal. In Cartas de Inglaterra. Porto: Lello & Irmão, páginas 49-54.

Imagem de Eça de Queiroz retirada de:
http://www.webboom.pt/mostra_fotografiaautor.asp?id=51092

10 comentários:

A. Monteiro Inácio disse...

Helena,

Sem querer de modo algum deixar entender que apontar as nossas falhas, que são muitas e variadas, é um exercício esgotado e infrutífero (como parece comprovar a actualidade destas críticas de 130 anos), gostaria muito mais de ver substituida esta atitude geral de amargura resignada com o estado das coisas, este implícito amaldiçoar da sorte por sermos Portugal, como se o facto de conseguirmos detectar e divulgar os defeitos nacionais nos colocasse do lado de fora e nos ilibasse. Criticar sim, sempre, mas deixemos de encolher os ombros perante a impossibilidade de mover a montanha que é a nossa cultura.

Como Eça já na altura sabia (referindo-se à Holanda e Suécia como países com área e demografia comparáveis), o problema não é Portugal. O problema são os portugueses ou, mais especificamente, a cultura portuguesa. E a maioria dos portugueses, de uma forma mais ou menos intuitiva, pressente que a razão de não sermos um país mais rico, mais saudável, mais culto e mais feliz prende-se mais com a questão cultural do que com qualquer outra.

Infelizmente, a relação entre cultura, mentalidade, atitudes e comportamentos é tão complexa que dificulta à partida a compreensão dos mecanismos que nos fazem ser como somos. A análise sistemática destes mecanismos é o que eu proponho.

Se conseguirmos identificar a fonte dos aspectos culturais que nos limitam talvez seja possível encontrar soluções. Mas estudar e compreender a complexa mecânica da portugalidade não é suficiente para ultrapassarmos as perenes dificuldades de ser português. Os íntimos e indissociaveis laços entre cultura e identidade apresentam-se como o mais formidável obstáculo à mudança de mentalidades. Os nossos «queridos» defeitos nacionais são parte daquilo que nos caracteriza e os obstáculos psicológicos que impedem qualquer tentativa de «reforma cultural» são tremendos. A identidade portuguesa está estruturada sobre a construção que fazemos da nossa cultura como algo de único e nosso.

Após analisarmos e fomentarmos o debate nacional sobre a forma como a matriz cultural que interiorizamos através do meio onde nos desenvolvemos acaba por condicionar as nossas atitudes e comportamentos, iremos conseguir dar um passo muito importante para nos renovarmos.

Se em vez de criticar por criticar, (como se pelo peso das críticas o problema fosse esmagado até desaparecer), identificássemos as fontes dos problemas a possibilidade de os resolvermos aumentaria consideravelmente.

Anónimo disse...

"Em Inglaterra existe uma verdadeira literatura para crianças"

Pena que não lhes ensinem os "factos da vida". Talvez assim não fossem dos países da Europa com maior rácio de mães adolescentes.
Possivelmente hoje não é bem como Eça descreveu e talvez na altura também já não fosse.

Só uma possibilidade.

LA disse...

Eu não sabia que as minhas opiniões tinham assim tanta importância que até pudessem dar origem a posts no chiquíssimo De Rerum Natura, mas vocês é que sabem, estão à vontade!
Já agora, vale a pena dizer que no Cartas de Inglaterra se fala também da guerra que houve na altura no Afeganistão, do terrorismo na Irlanda, e dos problemas que os judeus tinham na alemanha, e isso tudo foi há 130 anos! No livro o Eça goza com a estúpidez dos políticos que não se atrevem a tomar as decisões certas, sensatas, e pelos vistos parece que ainda está tudo mesmo muito na mesma! É incrível!

Ana Cristina Leonardo disse...

"Em Inglaterra existe uma verdadeira literatura para crianças"
Pena que não lhes ensinem os "factos da vida".

1. Por acaso existe mesmo, os livros ingleses para crianças são do mais divertido que há
2. Ainda bem que não lhes ensinam os "factos da vida"; não há nada mais demagógico e chato do que livros a quererem "ensinar" coisas às crianças; aliás, as crianças como não são parvas, percebem logo que estão a ser enganadas, até porque esses livros quase sempre tentam passar a mensagem nas entrelinhas
3. Numa palavra: a literatura infantil não serve para ensinar "os factos da vida"
4. Relacionar literatura infantil com adolescentes grávidas está ao nível da anedota da rã a quem cortaram as patas e que, como ela deixasse de saltar, se conclui que ficou surda

Musicologo disse...

O problema não está na oferta, está na procura! Os livros não podem ser impingidos a ninguém, ninguém lê um livro satisfeito porque "lho mandam ler" ou porque "é exigido pelo programa escolar".

Existem milhares de livros interessantes em Portugal, quer para adultos, quer para crianças. O que é feito da Alice Vieira, da Ana Maria Magalhães e da Isabel Alçada, da Maria Teresa Maia González, entre outras? Histórias tremendadente reais de faca e alguidar com as quais qualquer criança e adolescente se identifica e adora para todos os gostos e feitios. Desde "A lua de Joana", ao "Poeta às vezes", a mil e uma "Aventuras" ou "Viagens no tempo", ao "Lote 12 segundo frente"...

O problema não está, portanto, nos livros. Está sim em quem os (não) quer ler! Os jovens de hoje querem é internet, playstation e morangos com açúcar. É mais fácil, dá menos trabalho. Não há uma introspecção, nem uma valoração da meditação, do trabalho filosófico, do prazer que é pegar num livro, ficar encostado ao vidro cheio de chuva para passar o tempo.

As crianças têm mil e uma coisa para fazer, para que vão "perder tempo" a ler? Ler é "perder tempo" e é "chato". Esta é a realidade. E é essa realidade que tem de ser mudada. Na mentalidade e na sociedade.

Eu próprio gosto imenso de ler e adoro ler, mas leio muito menos do que gostaria, porque passo muito tempo a ler e a trabalhar na internet. É muito mais apelativo que enfiar-me no sofá com um livro na mão. Tem barulhos, tem sons, posso falar com os meus amigos, posso jogar ao mesmo tempo, posso trabalhar.

O livro não permite a multi-tarefa.

Talvez tenha tudo de passar por uma mudança de realidade, de suporte, de paradigma até. Passar a literatura para suportes cibernéticos. Cada vez há mais adeptos dos blogues e do blogging. E há blogues literários muito bons. Despertar a curiosidade por esses blogues. As crianças e jovens interessarem-se por partilhar esses espaços e incentivá-los a escrevê-los não "à balda" como tantas vezes se faz, mas impôr disciplina. Os pais supervisionarem essas actividades e chamarem a atenção para os erros que os próprios filhos dão nos blogues. Se eles escrevem mal em tudo quanto é lado e lêem tudo mal escrito, como depois se aperfeiçoam? Eu leio blogues de jovens que escrevem lindamente, em conteúdo, mas dão erros ortográficos crassos até mais não e não justificam os parágrafos. O conteúdo está lá, falta todo um método e uma forma. Quem os for ler, e identificar-se com eles, imita-os. E mal.

Os livros passavam todos por um processo de revisão, a literatura actual online não!

Por isso, soluções concretas:

- Consciencialização dos jovens para a gramática e as regras e métodos de bem escrever a língua. Saber como ler e como escrever. Isso é o essencial.

- Alertar para o que existe de mais obscuro e sugerir, nunca impôr.

O resto o tempo encarrega-se de o fazer. Os livros existem, os blogues existem, as crianças e jovens encontrarão as coisas que necessitam e se irão interessar. O ponto fulcral é saberem lidar, interpretar e tirar o máximo prazer e usufruto do que vão encontrar! Saberem ser auto-críticos para desde cedo perceberem o que é uma coisa bem escrita e que vale a pena de uma coisa à balda e aos repelões.

Saber puxar por uma consciência e uma auto-referência. Transmitir trilhos e direcções. Depois cada um seguirá o seu caminho em segurança e com vontade.

É preciso querer-se andar!

Isabel disse...

Já escrevi isto no meu blog, ando a ler a arca de noé, 2ª classe do Aquilino ao meu filho de 3 anos. Li noites seguidas a história da aboborinha cheia de palavras dificeis e às vezes caio na tentação de as substituir mas não é necessário, ele adora a história que entende perfeitamente mesmo com as palvras difíceis.

De Rerum Natura disse...

O passatempo foi ganho por 'Musicólogo' pelo seu comentário a este post.

Pede-se-lhe, pois, que escreva para sorumbatico@iol.pt (até às 20h do próximo dia 25), indicando morada para envio do prémio.

Rui Baptista disse...

Caro "musicólogo":

Como bem refere no seu texto, para parte da juventude actual, solicitada para “tarefas”, aparentemente bem mais aliciantes, “ler é perder tempo e é ‘chato’”.

Em época anterior à nossa, essa cítica lemo-lo no poema de Pessoa, "Liberdade": "Ai que prazer /Não cumprir um dever./Ter um livro para o ler/E não o fazer/Ler é maçada./Estudar é nada!"

Ora tal foi escrito em tempos "remotos" em que a Internet (esse mundo todo ora todo virtuoso, ora apenas virtuoso de aparência) não tinha surgido no mundo dos jovens tornando fácil o difícil. Apenas um exemplo: para se ter acesso a uma migalha do conhecimento que afadigadamente se buscava remexiam-se prateleiras pejadas de livros em nossa casa ou em bibliotecas públicas. Hoje, com simples toques no teclado, é-nos servida uma refeição suculenta de conhecimento, embora, por vezes, sem crédito bastante que possa servir de suporte a trabalhos académicos sérios.

“Malgé tout”, que maravilhoso mundo este, que me põe em poucos segundos em contacto directo consigo nesta troca de ideias (ou melhor, usufruindo da leitura do seu texto). Nos textos lidos nos artigos dos jornais há como que uma barreira entre os seus autores e o leitor por não haver uma troca de impressões e quando a há existe, vezes sem conta, condicionada por interesses redactoriais que a terminam a seu bel-prazer.

Talvez me devesse ater à primeira razão deste meu comentário: dar-lhe os parabéns pelo seu belo texto. Mas que quer, “as palavras são como as cerejas”!

Musicologo disse...

Ora, que agradável surpresa! Sendo assim vou enviar mail com a morada, desde já agradecendo a valoração do comentário. Agradecendo também as belas palavras do Rui Baptista e concordando inteiramente: quantas coisas não leio eu em jornais e revistas que me apetecia rebater ou debater? Mas da maneira que as coisas são feitas hoje em dia é difícil. Escrever para o jornal normalmente é perda de tempo e não dá gozo nenhum. Muito melhor a interacção (quase) directa!

Antonio Marques disse...

Achei muito bom o POST Acima estão de parabens, falando em Trabalhar na Internet não posso deixar de dar uma dica que pode enrriquecer seu texto acima, Participo de um site que a um bom tempo e ganho R$ 40,00 reais por Cada Venda que eu faço do KiT deles, é uma boa opção para trabalhar online, eles disponibilizam ate o site para mim vender o kit, se alguém se interessar basta visitar o site e clicar em Programa de Afiliados no final da pagina e verá como funciona, o link do site é http://www.netrenda.com.br





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