Quebrar o Feitiço: A Religião Como Fenómeno Natural, de Daniel C. Dennett
Lisboa: Esfera do Caos, 2008, 336 pp.
Quando o original saíu, vaticinei no Público que seria improvável que viesse a ser traduzido em Portugal, dado ser um país avesso a discussões imparciais sobre a religião. Felizmente, errei. A Esfera do Caos acaba de lançar a tradução portuguesa desta obra que foi um enorme sucesso de vendas nos EUA e no Reino Unido. Vaticinei também que, caso fosse publicado em Portugal, o livro não teria o sucesso que teve nesses países. Espero estar também errado. Parabéns à Esfera do Caos por se estar nas tintas para os meus vaticinares e por esta oportuna edição, que espero esteja correctamente traduzida. A minha recensão original, de Junho de 2006, pode ser lida aqui.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
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11 comentários:
Caro Desidério,
Não tive ainda oportunidade de ler este novo livro de Daniel Dennett, mas li o anterior sobre o mesmo tema intitulado Breaking the Spell. Li também a tua recensão a este novo livro.
1. Diálogo: sim ou não? Sinceramente há vários aspectos destes e de outros livros sobre o mesmo tema e na mesma perspectiva que me desiludem profundamente, e que me parece não contribuírem substancialmente para qualquer diálogo. Pergunto-me, aliás, se é esse o seu objectivo, o diálogo. Ao ler estes livros, fico com a sensação de que a intenção dos seus autores é a de esclarecerem todos os que andam enganados, os que acreditam em Deus, e que nada mais devem fazer do que aceitar que andam enganados e serem esclarecidos por quem tem nas mãos a verdade definitiva. Não há diálogo possível, porque não há diálogo necessário. Dennett e outros autores na sua linha consideram que seria uma pura e simples perda de tempo ouvir com atenção algumas pessoas que acreditam em Deus e que não subscrevem nenhuma das posições que são atacadas nestas obras. Para ficares com uma ideia de como sinto estes livros, imagina que eu próprio escrevo um livro sobre a ciência com base em todos os episódios caricatos cuidadosamente escolhidos, insistindo, por exemplo, nos estudos, publicações e práticas astrológicas, paranormais, etc. Qual seria a tua reacção?
2. O argumento do espantalho. Dennett e vários outros autores na mesma linha olham para as crenças e práticas religiosas dos norteamericanos. Há aqui uma estreiteza de horizontes. É verdade que em Breaking the Spell Dennett avisa logo de início os seus leitores de que se dirige aos seus concidadãos americanos. Mas mesmo na América do Norte há muitos cristãos que certamente não se identificam com nada do que é criticado por Dennett. Ao ler Breaking the Spell, ao ler e ouvir a obra de Dawkins, The God Delusion, encontro um abuso incontrolável do chamado argumento do espantalho, ao qual também recorre abundantemente a retórica política para arrancar gargalhadas do público. Apresentar da forma mais ridícula possível alguma coisa ou alguém como forma de ataque, parece-me uma metodologia que não é séria.
3. Religião natural contra religião revelada? Há neste estudos uma insistência constante na tese seguinte: se há uma explicação evolucionista da religião, então nada há nela de divino. Esta oposição entre uma religião que emerge da natureza e uma outra que desce do céu por revelação já há muito que não tem razão de ser, sobretudo depois das obras de autores a que já neste blog me tenho referido, como Teilhard de Chardin e Karl Rahner. Mas em tempos recentes, tem havido uma mudança muito significativa no sobrenaturalismo que caracterizou o cristianismo – falo da religião que melhor conheço – durante séculos. Creio que tanto Dennett como Dawkins, como muitos outros, não conhecem estes desenvolvimentos, que são o fruto de uma atitude crítica constante pelo menos de uma parte de estudiosos cristãos, atitude crítica que os autores negam existir na religião, simplesmente porque a desconhecem. Continuam a dirigir as suas críticas sem terem em conta que elas perderam entretanto muito da força que já tiveram. Sim, as religiões, como a arte, a política, a ética, têm uma raiz biológica, nasceram a partir de dentro da experiência humana ao longo de milénios. Mas este facto não contradiz em nada a concepção cristã, por exemplo, segundo a qual o cristianismo dá um sentido à vida que não se esgota na simples narrativa biológica. Não se trata de negar seja o que for do que a narrativa biológica afirma mas de lhe acrescentar sentido. Ora, é esta ideia central que está completamente ausente dos livros destes autores, e que me levam a lamentar que as conclusões a que chegam não tenham em conta todas as premissas possíveis e legítimas.
Saudações.
Olá, Alfredo!
Este livro é a tradução portuguesa do Breaking the Spell.
Concordo com o que dizes em parte -- mas o que dizes não se aplica ao livro do Dennett. Este livro nada tem a ver com o livro de Dawkins. Não é um livro que procura refutar a existência deste ou daquele deus, ou a razoabilidade desta ou daquela religião; é apenas um livro que procura incentivar o estudo científico da religião, como fenómeno biológico. E o próprio Dennett concorda contigo: do facto de haver uma explicação biológica para a religião não se segue que a religião é uma ilusão. Também há uma boa explicação para a física, mas a física não é uma ilusão. De modo que as tuas críticas me parecem deslocadas. O que seguramente não encontras também aqui é uma maneira mais ou menos disfarçada de cantar hinos à religião. Tens um livro imparcial, que apresenta resultados de vários estudos evolucionistas sobre a religião (na parte do meio, que é a única que tem alguma densidade: as outras é a repetição ad nauseum de que, "por favor, desculpem lá, mas a religião é um fenómeno como outro qualquer e temos de ter a liberdade de a estudar cientificamente, pode ser?").
A crítica que faço a Dennett é esta: ele parece ignorar outros estudos da religião, só porque não são evolucionistas. As explicações evolucionistas da religião não parecem particularmente iluminantes, se as compararmos com a História Natural da Religião, de David Hume, que não usava o conceito mágico de meme -- que a bem da verdade é apenas um sinal do cientismo contemporâneo, dado que é apenas uma metáfora e não tem qualquer poder explicativo superior ao que já Hume dizia.
O livro do Dawkins é um disparate e não recomendo a sua leitura a ninguém. Mas recomendo o livro do Dennett -- mesmo que se leia apenas a segunda parte, que é onde está o busílis.
Daniel Dennet é um ateísta militante e o seu preconceito anti-religioso fundamenta todas as ideias que defende. Para mim, qualquer estudo pseudo-científico que pense desenvolver não tem credibilidade porque será sempre direccionado para as conclusões que determinou à priori.
O seu enfoque da religião como um fenómeno biológico é uma tentativa de retirar o carácter sagrado que os crentes lhe colocam e colocá-los ao nível de cobaias de laboratório. Nunca vi Dennet incentivar o estudo do ateísmo, por exemplo. Mas pode ser falta de informação da minha parte. E merecia ser estudado porque se está a tornar numa forma de religião fundamentalista e intolerante. Hoje um ateísta faz mais proselitismo agressivo contra a religião e procura com mais intensidade "salvar o mundo" do "mal", que identifica com a religião monoteísta, do que um crente. Veja-se os "debates" nas caixas comentários deste blogue e a agressividade dos comentadores ateus com o Doutor Perspectiva.
Para mim, Dennet está ao nível de Dawkins.
Estás enganado, Parente. Lê o livro. Não tem nada a ver com o Dawkins. E a vantagem do livro é por-te a par da investigação empírica que tem sido feita nos últimos. Dennett em si não tem grande coisa a acrescentar -- e nesse aspecto o livro é uma aldrabice -- mas faz bons resumos da bibliografia recente sobre a área.
Agora, dizeres que as pessoas que estudam a religião cientificamente são todas de desprezar porque distorcem as coisas revela precisamente o tipo de distorção das coisas que estás tão ansioso por denunciar. Pois aparentemente qualquer estudo de um religioso sobre a religião já é para ti aceitável.
Não se trata de fazer das pessoas religiosas cobaias. Trata-se de estudar cientificamente um fenómeno humano como se estudam outros fenómenos humanos: estudamos cientificamemnte o amor, a política, a sexualidade, por que raio não podemos estudar a religião cientificamente? Hum. Eu não gostei da primeira parte do livro porque é só o Dennett precisamente a defender esta ideia, que eu achei idiota por achar óbvio... mas afinal agora vejo que o homem tinha razão! Só que, claro, os destinatários que precisavam de ler essa parte não precisamente as pessoas que nem vão ler o livro porque sabem à partida que Dennett é ateu.
Desidério
Por acaso li o livro na versão inglesa e comprei a edição portuguesa no mês passado. Leio todos os autores ateus que encontro e que o poder de compra me permite. Faço-o porque é uma forma de desenvolver a capacidade crítica sobre as minhas próprias ideias e para estar actualizado sobre as últimas modas contra a religião.
Eu afirmei muito simplesmente que o Dennett não tem, na minha opinião, credibilidade para fazer qualquer abordagem científica em relação à religião por causa dos seus preconceitos. Quem considera a religião como "tóxica" será que depois de um estudo "científico" negará essa ideia formada à priori? Não generalizei isso a todos os ateus nem afirmei que só um religioso pode estudar a religião. Falei apenas do Dennett. Se leres o que escrevi com mais atenção verás que apenas me refiro ao Dennett.
Pode-se estudar cientificamente a religião, o ateísmo ou o que se quiser. Não se pode exigir é que só porque vem com o rótulo de "científico" e vem de encontro aos nossos próprios preconceitos as aceitemos de uma forma acrítica. Isso não é ciência. E diria o mesmo se aparecesse qualquer estudo pretensamente científico mas preconceituoso em relação ao ateísmo. Não podemos deixar que a emoção vença a razão.
Estamos de acordo então quanto aos princípios gerais, Parente. Apenas discordamos porque tu consideraste o livro tendencioso e eu não o achei nada tendencioso. Não se compara com o Dawkins.
Mas há outro aspecto importante no que dizes. Isso ficará para outra altura, mas a questão é esta: poderá haver tolerância epistémica entre ateus e religiosos? A minha resposta é um rotundo "não". Donde não se infere que não deva haver tolerância humana, política, social. Mas epistemicamente não pode haver tal coisa. De parte a parte: tu também não podes achar que eu tenho razão na minha descrença em deuses.
Em relação à questão da tolerância epistémica entre ateus e religiosos, discordo do rotundo "não" e considero que esse "não", seja do lado de um religioso ou de um ateu, é o primeiro passo para haver intolerância humana, política e social. Posso mudar de opinião se me forem apresentados, no futuro, argumentos convincentes.
Os religiosos desenvolveram mecanismo indirectos de tolerância espistémica. Por exemplo, a tese do Alfredo Dinis de que não é possível provar que Deus existe ou que não existe é um desses casos.
A um nível mais básico, quando um crente fala em "fé", "graça de Deus", "vocação" ou influência do "Espírito Santo" para chegar ao conhecimento de Deus é uma forma de criar mecanismos de tolerância em relação ao ateísmo, não o tornando "culpado" nem o julgando pelas suas convicções.
A ideia de Dennett sobre a religião como um fenómeno biológico pode ser um bom caminho para a tolerância espistémica do lado dos ateus deixe que se lhe retire a carga de toxicidade que traz subjacente. Também Dawkins já deu um passo nesse sentido ao admitir numa entrevista que numa escala de 0 a 7, situa em 6 a firmeza das suas convicções.
São estes pequenos detalhes que são o fermento da tolerância.
Neste momento, penso que o ateísmo em geral ainda está preso do mito científico porque precisa de um porto seguro onde lance a sua âncora. E falta aparecer uma disciplina nova no campo filosófico: a filosofia do ateísmo. Será dar a dignidade ao ateísmo que ele merece e precisa, libertando-o dos dogmas científicos.
Fico por aqui porque a pausa para almoço terminou e hoje é dia de muita labuta.
Caro Parente
Depende o que entendes por tolerância epistémica. Por esta expressão entendo a seguinte tese, aplicada especificamente ao debate entre ateus e religiosos:
-- Tanto têm razão os ateus como os religiosos.
Esta tese é insustentável porque seria dizer que uma contradição ("Deus existe e não existe") seria verdadeira. Lembro-me de ter lido um texto do actual Papa em que ele argumentava com razão que o relativismo epistémico é uma tolice. Verdade só pode haver uma, neste sentido: se os cristãos tiverem razão, os islâmicos não a têm, nem os ateus, e vices-versas.
Agora, eu compreendo e sou solidário com o teu raciocínio: talvez saber que a tolerância epistémica é um disparate provoque intolerância humana. Na verdade, penso que é por causa disso que muitas pessoas são relativistas. Mas isto é como combater o racismo pintando os negros de branco. Não resolve realmente o problema, pois não?
Os seres humanos têm muita dificuldade em lidar com as diferenças de opinião. Mas têm de se habituar a fazer isso, sob pena de nunca vivermos num clima de discussão aberta e franca, tolerante e justa. Se para podermos tolerar a diferença de opinião temos de dizer a seguir que todas as opiniões se equivalem, é porque na verdade não toleramos as diferenças de opinião, pois temos de pressupor que na verdade ninguém está realmente errado nem ninguém está realmente certo. A velha máxima de Voltaire, que ele realmente nunca escreveu, custa a entrar na cabaça da malta: Discordo em absoluto do que dizes, mas defenderei sempre o teu direito a defendê-lo.
Quanto à filosofia ateísta, quase toda a filosofia contemporânea o é, no sentido de nao ter compromissos religiosos e de não aceitar autoridades bíblicas ou outras. Uma uma reflexão explícita do que significa ser ateu também existe. Posso dar-te a boa nova em primeira-mão que as Edições 70 vão publicar a tradução portuguesa, lá para 2009, do Cambridge Companion to Atheism, org. pelo Michael Martin, um especialista nestes assuntos.
O meu maior problema com os ateísmos populares é a ignorância e os preconceitos cientificistas que me parecem omnipresentes. Não vejo grande diferença entre o ateísmo ignorante e a crendice, que tanto tu como o Alfredo, e todos os filósofos cristãos da tradição, condenam. Há uma pequena diferença, pois parece-me que o ónus da prova está do lado religioso e não do lado ateu, e por isso é mais desculpável ser-se ateu sem argumentos sólidos do que crente sem os mesmos. Mas atrofia-me a mania parva que as pessoas ignorantes nestas matérias têm de pensar que têm os melhores argumentos do mundo a favor das suas posições, quando na realidade não conhecem nada da bibliografia relevante. Seria como eu ter e pretensão de saber justificar a minha crença na evolução. É absurdo. Eu não sei biologia, não consigo justificar tal coisa porque nem domino correctamente a teoria. Apenas declaro que confio nos biológicos. E não há problema nenhum com isso, pois a maior parte de nós não sabe justificar a maior parte das suas crenças. Pertencemos a comunidades epistémicas e transferimos para elas a responsabilidade de justificar crenças que nós mesmos somos incapazes de justificar adequadamente. Qual é a dificuldade de compreender isto?
Caro Desidério
Não confundo tolerância epistémica com relativismo. Se eu acredito que Deus existe não vou afirmar "talvez exista" ou "podes ter razão e eu estou enganado". Não abdico das minhas convicções nem divido as minhas certezas com os oponentes mas também não parto do princípio que o outro é um palerma completo ou que é desonesto intelectualmente. Procuro perceber o ponto de vista dele, o que o leva a não aderir ao que considero a verdade, e abdico de ser intolerante com ele, como um princípio absoluto. E foi no Verão passado, na discussão que tivemos por mail, que percebi tudo isto.
Eu defendi veementemente a tese de que estavas errado (e continuo a ter a mesma opinião) mas não me limitei a isso. Fui intolerante porque num gesto desabrido e extemporâneo cancelei a assinatura do Crítica na Rede, decidi nunca mais comprar um livro teu, nem os que traduzisses no futuro. Cai na armadilha da intolerância humana. Deixei de ser racional e passei a ser comandado pelas emoções.
Depois de discutirmos o assunto e perceber os teus argumentos (à partida tinha considerado que nem valia a pena discutir o tema pois era absurdo), não mudei de opinião mas percebi o que é ser intolerante e fui capaz de deixar de o ser (reactivei a assinatura do site e revoguei todas as minhas decisões anteriores). Este exemplo ilustra o que pretendi dizer no comentário anterior.
Quanto à comunidade epistémica não considero que a ciência o deva ser do ateísmo já que a considero património da humanidade. Também me reconheço na teoria da evolução e isso não entra em contradição com a minha fé porque não faço uma leitura literal da Bíblia. Enquanto a ciência não me demonstrar, de uma forma inequívoca, que Deus não existe então não vejo motivos para renegar tudo aquilo em que acredito.
E que diz o meu amado "Tao" sobre a religião, hein?! ;)
(...)
The more prohibitions you have,
the less virtuous people will be.
The more weapons you have,
the less secure people will be.
The more subsidies you have,
the less self-reliant people will be.
Therefore the Master says:
I let go of the law,
and people become honest.
I let go of economics,
and people become prosperous.
I let go of religion,
and people become serene.
I let go of all desire for the common good,
and the good becomes common as grass.
Tao Te Ching, 57
Melhor ainda... look at this!
When they lose their sense of awe,
people turn to religion.
When they no longer trust themselves,
they begin to depend upon authority.
(...)
Tao Te Ching, 72
A religião primitiva ou autêntica, essa expressão espontânea da reverência natural perante o Universo incógnito, nunca é imposta do exterior, mas tão simplesmente uma miraculosa revelação interior.
Sim, a religião é revelada...
Rui leprechaun
(...na própria alma maravilhada! :))
"Quanto à comunidade epistémica não considero que a ciência o deva ser do ateísmo já que a considero património da humanidade. "
Concordo plenamente contigo, Antonio.
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