domingo, 3 de fevereiro de 2008
O velho e o novo Estatuto da Carreira Docente
Novo artigo de opinião de Rui Baptista:
“En politique, une absurdité n’est pas un obstacle”. Napoleão
No uso da licença e da liberdade de quem não pede favor senão justiça, como foi costume na vida do Padre António Vieira, julgo assistir aos professores o direito de exigir contas dos responsáveis pelo estado caótico a que chegou a Educação em Portugal.
Ainda que estribado num simples dever de cidadania, continuo a assumir a recusa em comungar do desalento do Poeta de “Orpheu”: “Já não me importo/ Até com o que amo ou creio amar./ Sou um navio que chegou a um porto/ E cujo movimento é ali estar”. Recusa que data da época em que a justiça se enleou na verdadeira selva em que se transformou a política educativa portuguesa que enclausurou em grades de iniquidade os professores com melhor preparação académica, abrindo a jaula da ignorância para que – em feliz imagem camiliana – as feras fizessem das garras o seu argumento.
E, para evitar que tenhamos como futuro o esquecimento (José Luís Borges), deve avivar-se a memória das pessoas para o facto de toda esta lamentável situação se ficar a dever, em grande parte, ao famigerado Estatuto da Careira Docente (Decreto Lei 139-A/90, de 28/Março), promulgado, no tempo em que Roberto Carneiro era Ministro da Educação, “numa mesa de negociações entre o Ministério da Educação e cerca de 30 sindicatos e organizações afins”.
Tempos após a publicação do referido estatuto, por mim considerado como verdadeiro “Leito de Procusta”, em sugestiva alegoria havido “como regra odiosamente mesquinha ou tirânica” (“Correio da Manhã", 15/Novembro/95), são publicadas as tabelas salariais dos professores dos ensinos básico e secundário com aumentos de 15,6% para licenciados e 45,4% para não licenciados (a maior parte com cursos médios ou apenas secundários) com os mesmos 29 anos ou mais de serviço. Premiaram-se assim os que menos estudaram com um aumento salarial de cerca do triplo.
E como se isto não fosse já por si só um bónus devera generoso, a estes últimos professores equiparados a bacharel, apenas para efeitos docentes ou de prosseguimento de estudos, foi facultada a possibilidade de em meia dúzia de meses obterem uma licenciatura em ensino através de escolas superiores privadas criadas para o efeito à pressa e à pressão para o acesso à docência do 2.º ciclo do ensino básico, o que teve o efeito perverso de deixar de haver professores para o 1.º ciclo do ensino básico (antiga instrução primária) passando, em alguns casos, ele a ser ministrado por simples curiosos em pequenos agregados populacionais.
Mais tarde, por discordância pública com o facto de vir a ser possibilitada a docência do 3.º ciclo do ensino básico a diplomados pelas Escolas Superiores de Educação, até então destinada, apenas, a licenciados universitários, fui acusado em artigo de jornal por um professor de uma dessas escolas de “xenofobia académica”. No legítimo direito de defesa, respondi-lhe da forma seguinte:
“Mas como eu me sinto feliz e orgulhoso pelo reconhecimento público de que tenho sido um esforçado centurião (aliás, desde 87) da recusa em as Escolas Superiores de Educação poderem formar professores para o 3.º ciclo do ensino básico. Nunca me perdoaria a mim próprio deixar que os estudantes universitários pudessem ser apanhados desprevenidos nas teias que à sorrelfa se teciam, nos gabinetes da 5 de Outubro, para lhes usurpar um mercado de trabalho já saturado e da sua natural pertença. Posso aceitar a acusação que me é feita de ‘xenofobia académica’, mas que colhe nobre exemplo nos franceses que na II Guerra Mundial lutaram contra os alemães nas forças da Resistência, enquanto compatriotas seus colaboravam contra os invasores. Nesta perspectiva, portanto, a minha ‘xenofobia académica’ , mais do que uma mera opção , deve ser considerada como uma questão de honra” (Público, 1/Fevereiro/1997).
Era este o panorama que vigorava no velho estatuto sem o novo ter erradicado, como seria desejável, os aspectos negativos daquele, mormente no que respeita à formação dos professores e ao seu enquadramento nos ensinos básico e secundário. “Et pour cause”, em vez de trazer uma certa acalmia aos professores formados por honoráveis universidades, esta situação mais não veio que provocar uma onda de indignação geral que teve como resultado a, até então, impensável união de 14 sindicatos de professores (de diferentes conotações políticas e/ou de formação académica dos seus associados) numa frente comum, em manifestações ruidosas de rua, em que se regressou (mesmo antes de serem conhecidos em pormenor os articulados legais que configuravam as novidades ministeriais anunciadas) ao que Mário Soares, ainda que noutros contextos, denunciou como “a instrumentalização dos sindicatos como ‘correia de transmissão’ do PCP.” ( “Diário de Notícias”, 29/Janeiro/2008).
A actual ministra da Educação, por falta de coragem política ou daquilo a que Antero chamou de “soberaníssimo bom senso” – que, pelos vistos, continua arredado dos gabinetes da 5 de Outubro - em vez de melhorar o que estava mal no antigo estatuto manteve ou mesmo agravou uma prescrição errada num corpo legislativo sintomaticamente enfermo por igualar desiguais!
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3 comentários:
Matéria sensível e a merecer alguma reflexão, em especial a alguém que, como eu, tendo curso universitário se viu forçado a leccionar o 2º CEB e mesmo aí ultrapassado por muitos esianos.
Primeiro inunda-se o ensino de gente mal preparada. Depois expulsa-se a bem preparada: pela erosão da idade e das aposentações, pela sucessão dos vexames, e até, recentemente, pela aplicação dum processo de avaliação que penaliza os melhores. Por fim, baixam-se os salários do que ficam.
Eis uma política educativa.
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