O "Jornal das Letras" pediu-me uma autobiografia, que acaba de sair, com o título dado pelo jornal. Trancrevo-a aqui, não sem repetir o que lhes disse: que não se devia pedir uma biografia ao próprio, porque este nunca se conhece bem a si mesmo, sendo elevado o risco de não sair nada de jeito.
O próprio é a pessoa menos indicada para contar a sua história. Da primeira parte da minha história, talvez a mais importante, nem sequer me lembro bem. Não posso ser eu a contá-la, terão de ser os meus pais. Uma jornalista perguntou-me, para um inquérito, quando tinha sido o meu primeiro beijo e eu respondi que foi, logo à nascença, da minha mãe. Ela disse-me e eu vejo escrito no BI que nasci a 12 de Junho de 1956 na freguesia de São Sebastião da Pedreira, Lisboa. Nada de especial, portanto, é um sítio onde nasce muita gente: uma verdadeira fábrica de portugueses. Nascer em Lisboa na véspera de Santo António podia ter dado para me chamar António, mas não deu. Eu sou Carlos Manuel, embora não use o Manuel, que é comum aos meus dois irmãos.
Passei a infância num dos sítios mais bonitos de Lisboa: Belém. Terei aprendido a andar no Jardim do Ultramar, onde a minha mãe me levava. Desenhei o Tejo e a outra banda em papel vegetal no vidro da minha janela. Lembro-me de entrar, aos seis anos, para a Escola da Voz do Operário. Já sabia ler, pois tinha aprendido nos jornais, como “O Primeiro de Janeiro”, com o Príncipe Valente, e “O Século”, com o suplemento “Pim-Pam-Pum”. Ficou-me da infância o gosto pela leitura de jornais.
A 2ª classe já foi na Escola dos Olivais em Coimbra, pois entretanto os meus pais tinham-se mudado com armas e bagagens para a Lusa Atenas. Foi nessa escola que fiz o exame da 4ª classe. E foi no Liceu Normal de D. João III, hoje Escola Secundária José Falcão, que fiz o exame de admissão aos liceus. Conheci o que era um liceu no tempo de Salazar, com um reitor pequenino mas aguerrido (a quem chamavam devido ao seu tamanho “pulga escaramuça”) e a Mocidade Portuguesa, embora a finar-se. Tive muito bons professores, pois aquele liceu primava por isso mesmo. Nessa época frequentava a Biblioteca Municipal, por cima dos claustros de Santa Cruz, na Baixa, onde encontrei interessantes livros de divulgação da ciência, que se podiam trazer para casa e que, tanto ou mais que a escola, me despertaram para a ciência. As notas eram boas, nalguns casos muito boas. Só tive uma vez negativa, a Desenho, pois não me entendi com a geometria descritiva. Mas, curiosamente, tinha jeito para desenho e até pintava. Um dos meus quadros foi premiado num concurso artístico internacional promovido pela União Internacional de Caminhos de Ferro e até fui entrevistado pelo “Diário Popular”. Ainda no liceu fui chefe de redacção do jornal “O Estudante”, que então se fazia a “stencil”. Lembro-me de um dia ter “cravado” um subsísio para o jornal ao Ministro da Educação, Veiga Simão, de visita ao liceu. Fiquei surpreso, pois ele ajudou logo! Nessa altura comecei a colaborar nos jornais, coordenando uma página no “Correio de Coimbra”.
Havia exame de admissão à Universidade, mas dispensei dele no final do 7º ano de ciências. As minhas notas eram melhores a filosofia do que a física, mas escolhi a física – e desde cedo física teórica – devido ao interesse que as leituras me suscitaram pela física moderna. Entrei na Universidade de Coimbra em 1973, a tempo de assistir ao 25 de Abril de 1974, que veio interromper uma aula de Análise Matemática. O meu curso de Física na Universidade de Coimbra, que demorou cinco anos, não foi muito afectado pela revolução em curso, pois tinha excelentes mestres e arranjava tempo para tudo. Pratiquei espeleologia, tendo explorado quase todas as grutas da região, e joguei xadrez na Associação Académica. Fiz também uma revista dos estudantes da Faculdade, “O Mocho”, onde desenhava um cartune. Éramos quatro alunos no ramo científico de Física e estamos hoje, todos doutorados, dispersos pelo mundo. Este ano vamo-nos juntar, nos 30 anos do final de curso, sentados diante de um leitão.
Concluído o curso, não foi preciso procurar emprego, pois já era monitor e deram-me logo a assinar um contrato de assistente. Estive só um ano a dar aulas na Universidade, pois proporcionou-se a oportunidade de ir para a Alemanha (a de cá, pois nessa época havia duas) fazer o doutoramento. Em 1979, depois de um curso intensivo de língua, entrei como aluno de pós-graduação na Universidade Goethe em Frankfurt am Main, no coração da Alemanha. Os três anos do doutoramento, possíveis graças a uma bolsa da Fundação Gulbenkian, foram-me muito úteis. Não aprendi apenas física teórica (a minha tese foi sobre cisão nuclear), mas muito mais coisas da vida, no convívio com bons amigos, alguns deles emigrantes. Foi nas bibliotecas alemãs – a biblioteca geral da Universidade era também a da cidade – que pude ler muita literatura, mergulhando na cultura alemã. De Frankfurt, através da assinatura de “O Jornal”, assisti ao curso político de Portugal no início dos anos 80, quando caiu o avião de Sá Carneiro. Foi lá que comecei a receber, também por assinatura, o “Jornal das Letras”. Ainda guardo o primeiro número, mas devido a falta de espaço tive de me desfazer da colecção completa. Doutorei-me em 1982, tendo então regressado a Coimbra.
Com 26 anos, fechava-se um ciclo da minha vida. Demorei mais a contar esses 20 anos de formação inicial pois nada seria sem eles. Ainda hoje, nos momentos difíceis, lembro-me que tenho de estar preparado para tudo, pois passei todos esses anos na escola. A escola é uma das maiores invenções da humanidade! Sinto-me hoje, passados outros 26 anos (que passaram mais depressa), acima de tudo professor. Gosto de o ser, de fazer aos outros o que me fizeram a mim. Já tive muitos alunos que gostei de ter, incluindo vários de mestrado e doutoramento. A minha carreira de professor foi feita em Coimbra até chegar, no ano 2000, a catedrático, embora tenha dado aulas noutros lados do país e do mundo. Beneficiei de duas sabáticas numa das cidades mais interessantes que conheço, Nova Orleães, nos EUA. Mas sou também investigador, o que para mim é inseparável de ser professor. Da física nuclear passei para a física da matéria condensada, tendo-me dedicado ao estudo de nanosistemas com métodos computacionais. Ajudei a fundar em Coimbra o Centro de Física Computacional e a reunir aí meios informáticos. Temos agora o supercomputador “Milipeia”, com mais de 500 processadores, aberto à comunidade científica.
Gosto de comunicar e, por isso, escrevo livros de ciência. Tudo começou no feliz encontro que tive quando regressei da Alemanha com Guilherme Valente, o director da editora Gradiva, que então nascia. Depois de algumas traduções, aventurei-me a escrever em 1991 “Física Divertida” que, para meu espanto, foi um êxito, com mais de 20000 exemplares vendidos e edições no Brasil, Espanha e Itália. Esteve no topo do “top ten” de “O Jornal”. Orgulho-me de ter contribuído, com outros títulos, para essa editora (no ano passado saiu novo livro: “Nova Física Divertida”). E de ter promovido a colecção infantil “Ciência a Brincar”, na Bizâncio. E de ter uma série de manuais escolares na Texto Editores.
Desde há três anos estou à frente da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a segunda biblioteca do país, que inclui a Biblioteca Joanina. É um mundo maravilhoso o das bibliotecas, onde me perco a pesquisar história da ciência. Tenho em curso esforços para alargar o catálogo único de toda a Universidade e de digitalizar, colocando na Internet o que não tiver direitos de autor, em particular os notáveis fundos de livros antigos. Mas desta última parte ainda é cedo para contar a história.
Quando estava na Alemanha não havia Internet, mas acho, como Salvador Dali, que “não nos devemos preocupar em ser modernos, é a única coisa que não podemos evitar”. Não consegui evitar: criei um portal de ensino das ciências e difusão de cultura científica ( www.mocho.pt ) e agora tenho um blog, com bons amigos, que em menos de um ano já recebeu meio milhão de visitas ( dererummundi.blogspot.com ). Continuo a gostar de jornais, onde escrevo a pedido de várias famílias: neste momento, tenho crónicas quinzenais no “Público”, “Sol” e “O Primeiro de Janeiro”. Os próximos 26 anos? Ainda tenho muito que fazer.
O próprio é a pessoa menos indicada para contar a sua história. Da primeira parte da minha história, talvez a mais importante, nem sequer me lembro bem. Não posso ser eu a contá-la, terão de ser os meus pais. Uma jornalista perguntou-me, para um inquérito, quando tinha sido o meu primeiro beijo e eu respondi que foi, logo à nascença, da minha mãe. Ela disse-me e eu vejo escrito no BI que nasci a 12 de Junho de 1956 na freguesia de São Sebastião da Pedreira, Lisboa. Nada de especial, portanto, é um sítio onde nasce muita gente: uma verdadeira fábrica de portugueses. Nascer em Lisboa na véspera de Santo António podia ter dado para me chamar António, mas não deu. Eu sou Carlos Manuel, embora não use o Manuel, que é comum aos meus dois irmãos.
Passei a infância num dos sítios mais bonitos de Lisboa: Belém. Terei aprendido a andar no Jardim do Ultramar, onde a minha mãe me levava. Desenhei o Tejo e a outra banda em papel vegetal no vidro da minha janela. Lembro-me de entrar, aos seis anos, para a Escola da Voz do Operário. Já sabia ler, pois tinha aprendido nos jornais, como “O Primeiro de Janeiro”, com o Príncipe Valente, e “O Século”, com o suplemento “Pim-Pam-Pum”. Ficou-me da infância o gosto pela leitura de jornais.
A 2ª classe já foi na Escola dos Olivais em Coimbra, pois entretanto os meus pais tinham-se mudado com armas e bagagens para a Lusa Atenas. Foi nessa escola que fiz o exame da 4ª classe. E foi no Liceu Normal de D. João III, hoje Escola Secundária José Falcão, que fiz o exame de admissão aos liceus. Conheci o que era um liceu no tempo de Salazar, com um reitor pequenino mas aguerrido (a quem chamavam devido ao seu tamanho “pulga escaramuça”) e a Mocidade Portuguesa, embora a finar-se. Tive muito bons professores, pois aquele liceu primava por isso mesmo. Nessa época frequentava a Biblioteca Municipal, por cima dos claustros de Santa Cruz, na Baixa, onde encontrei interessantes livros de divulgação da ciência, que se podiam trazer para casa e que, tanto ou mais que a escola, me despertaram para a ciência. As notas eram boas, nalguns casos muito boas. Só tive uma vez negativa, a Desenho, pois não me entendi com a geometria descritiva. Mas, curiosamente, tinha jeito para desenho e até pintava. Um dos meus quadros foi premiado num concurso artístico internacional promovido pela União Internacional de Caminhos de Ferro e até fui entrevistado pelo “Diário Popular”. Ainda no liceu fui chefe de redacção do jornal “O Estudante”, que então se fazia a “stencil”. Lembro-me de um dia ter “cravado” um subsísio para o jornal ao Ministro da Educação, Veiga Simão, de visita ao liceu. Fiquei surpreso, pois ele ajudou logo! Nessa altura comecei a colaborar nos jornais, coordenando uma página no “Correio de Coimbra”.
Havia exame de admissão à Universidade, mas dispensei dele no final do 7º ano de ciências. As minhas notas eram melhores a filosofia do que a física, mas escolhi a física – e desde cedo física teórica – devido ao interesse que as leituras me suscitaram pela física moderna. Entrei na Universidade de Coimbra em 1973, a tempo de assistir ao 25 de Abril de 1974, que veio interromper uma aula de Análise Matemática. O meu curso de Física na Universidade de Coimbra, que demorou cinco anos, não foi muito afectado pela revolução em curso, pois tinha excelentes mestres e arranjava tempo para tudo. Pratiquei espeleologia, tendo explorado quase todas as grutas da região, e joguei xadrez na Associação Académica. Fiz também uma revista dos estudantes da Faculdade, “O Mocho”, onde desenhava um cartune. Éramos quatro alunos no ramo científico de Física e estamos hoje, todos doutorados, dispersos pelo mundo. Este ano vamo-nos juntar, nos 30 anos do final de curso, sentados diante de um leitão.
Concluído o curso, não foi preciso procurar emprego, pois já era monitor e deram-me logo a assinar um contrato de assistente. Estive só um ano a dar aulas na Universidade, pois proporcionou-se a oportunidade de ir para a Alemanha (a de cá, pois nessa época havia duas) fazer o doutoramento. Em 1979, depois de um curso intensivo de língua, entrei como aluno de pós-graduação na Universidade Goethe em Frankfurt am Main, no coração da Alemanha. Os três anos do doutoramento, possíveis graças a uma bolsa da Fundação Gulbenkian, foram-me muito úteis. Não aprendi apenas física teórica (a minha tese foi sobre cisão nuclear), mas muito mais coisas da vida, no convívio com bons amigos, alguns deles emigrantes. Foi nas bibliotecas alemãs – a biblioteca geral da Universidade era também a da cidade – que pude ler muita literatura, mergulhando na cultura alemã. De Frankfurt, através da assinatura de “O Jornal”, assisti ao curso político de Portugal no início dos anos 80, quando caiu o avião de Sá Carneiro. Foi lá que comecei a receber, também por assinatura, o “Jornal das Letras”. Ainda guardo o primeiro número, mas devido a falta de espaço tive de me desfazer da colecção completa. Doutorei-me em 1982, tendo então regressado a Coimbra.
Com 26 anos, fechava-se um ciclo da minha vida. Demorei mais a contar esses 20 anos de formação inicial pois nada seria sem eles. Ainda hoje, nos momentos difíceis, lembro-me que tenho de estar preparado para tudo, pois passei todos esses anos na escola. A escola é uma das maiores invenções da humanidade! Sinto-me hoje, passados outros 26 anos (que passaram mais depressa), acima de tudo professor. Gosto de o ser, de fazer aos outros o que me fizeram a mim. Já tive muitos alunos que gostei de ter, incluindo vários de mestrado e doutoramento. A minha carreira de professor foi feita em Coimbra até chegar, no ano 2000, a catedrático, embora tenha dado aulas noutros lados do país e do mundo. Beneficiei de duas sabáticas numa das cidades mais interessantes que conheço, Nova Orleães, nos EUA. Mas sou também investigador, o que para mim é inseparável de ser professor. Da física nuclear passei para a física da matéria condensada, tendo-me dedicado ao estudo de nanosistemas com métodos computacionais. Ajudei a fundar em Coimbra o Centro de Física Computacional e a reunir aí meios informáticos. Temos agora o supercomputador “Milipeia”, com mais de 500 processadores, aberto à comunidade científica.
Gosto de comunicar e, por isso, escrevo livros de ciência. Tudo começou no feliz encontro que tive quando regressei da Alemanha com Guilherme Valente, o director da editora Gradiva, que então nascia. Depois de algumas traduções, aventurei-me a escrever em 1991 “Física Divertida” que, para meu espanto, foi um êxito, com mais de 20000 exemplares vendidos e edições no Brasil, Espanha e Itália. Esteve no topo do “top ten” de “O Jornal”. Orgulho-me de ter contribuído, com outros títulos, para essa editora (no ano passado saiu novo livro: “Nova Física Divertida”). E de ter promovido a colecção infantil “Ciência a Brincar”, na Bizâncio. E de ter uma série de manuais escolares na Texto Editores.
Desde há três anos estou à frente da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a segunda biblioteca do país, que inclui a Biblioteca Joanina. É um mundo maravilhoso o das bibliotecas, onde me perco a pesquisar história da ciência. Tenho em curso esforços para alargar o catálogo único de toda a Universidade e de digitalizar, colocando na Internet o que não tiver direitos de autor, em particular os notáveis fundos de livros antigos. Mas desta última parte ainda é cedo para contar a história.
Quando estava na Alemanha não havia Internet, mas acho, como Salvador Dali, que “não nos devemos preocupar em ser modernos, é a única coisa que não podemos evitar”. Não consegui evitar: criei um portal de ensino das ciências e difusão de cultura científica ( www.mocho.pt ) e agora tenho um blog, com bons amigos, que em menos de um ano já recebeu meio milhão de visitas ( dererummundi.blogspot.com ). Continuo a gostar de jornais, onde escrevo a pedido de várias famílias: neste momento, tenho crónicas quinzenais no “Público”, “Sol” e “O Primeiro de Janeiro”. Os próximos 26 anos? Ainda tenho muito que fazer.
3 comentários:
Finalmente! O post que todos aguardavamos desde a criação deste blog: o post que informa dos jardins e escolas por onde andou o Carlos Fiolhais. Ah! Física para todos.
Por falar nisso, é legal este tipo de masturbação em público?
Olá, Carlos
Gostei muito de conhecer melhor o teu percurso, e também da redacção despretensiosa e divertida. Parabéns! Que os próximos 26 sejam igualmente produtivos!
Vanitas vanitatum et omnia vanitas
Os leitores do De Rerum Natura não só esperavam ansiosamente este como os anteriores posts destinados a mostrar a magnificência de Carlos Fiolhais!
Ele é entrevistas, press releases e agora uma autobiografia!!!!!!
Muito pouco epicurista e muito pouco fiel à natureza das cousas.
1 estrela porque não há zero!
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