On peut juger de la beauté d’un livre, à la vigueur des coups de poing qu’il vous a donnés et à la longueur de temps qu’on met ensuite à en revenir (Gustave Flaubert)
Distribuído no mercado livreiro, em Fevereiro de 1936, embora com a indicação de ser a data de edição de 1935, As Encruzilhadas de Deus foi o terceiro livro de poesia a ser publicado por José Régio. Incluindo no seu corpus o longo poema em oitavas, “Sarça Ardente”, As Encruzilhadas de Deus é um dos mais altos livros de poesia do escritor de Vila do Conde e um dos grandes livros da poesia portuguesa de todos os tempos. Saudado, enfaticamente, por espíritos tão díspares como Rodrigues Lapa, Agostinho da Silva e, of all people, Álvaro Cunhal, o livro, que levou bons dez anos de gestação, logo se impôs, nas palavras do “sage” Agostinho da Silva, pela “vigorosa audácia, o alto fogo interno, a nitidez e a sobriedade da linguagem, a amplidão das imagens, a contida paixão que anima todo o livro, o equilibrado senso crítico que acompanha a força criadora do poeta [e que nos] dão direito a colocá-lo no plano dos clássicos, sem receio de que o futuro o julgue de outro modo.” Hélas!, o “futuro” imediato e a crítica, ainda em vida do poeta, julgá-lo-iam, com alguma frequência, “de outro modo”. Já agora, de passagem, e uma vez que Luiz Pacheco se tornou numa espécie de “coqueluche” da gente mais nova, que hoje pontifica, na nossa praça literária, aqui deixo, para exemplo e proveito, o testemunho do autor de Crítica de Circunstância: “José Régio, de longe uma das grandes figuras da nossa literatura contemporânea, grande poeta, grande romancista, grande crítico, grande dramaturgo […] ainda à espera do crítico novo que estude a sua obra.” Talvez isto ajude a dissolver algum tanto o renitente preconceito e uma espécie de desconfiança, que têm estado na origem de bicadas envenenadas endereçadas ao bardo, bem como – e sobretudo – de feias e sensacionais “omissões”.
As Encruzilhadas de Deus apresenta-se, ostensivamente, como um “Poema”, mas é, na realidade, constituído por 4 “livros”, num total de 31 poemas: 8 no primeiro, 11 no segundo, 11 no terceiro e 1 – 38 esplendorosas oitavas – no quarto (“Sarça Ardente”). Obra de toada dramática e eloquente, apaixonada e vibrante, em registo de música sinfónica de orquestração ruidosa, ela antecede, de nove anos, a publicação de Mas Deus É Grande, que se aproxima, esta, mais de uma contida e austera música de câmara.
Tem sido, talvez, este aspecto de música de grande formato wagneriano que tanto tem atormentado alguns críticos linfaticamente apavorados com tanta “retórica” exuberante. O brilho orquestral de alguma poesia de Régio (não toda) tem apoquentado sobremaneira os depenados e os rarefeitos cultores de uma poesia mais descascada… “depurada”, gostam estas vestais de dizer. Ora cada uma destas espécies de poesia, como parece ser óbvio, é inteiramente legítima, na sua diferença em relação à outra. A poesia dita “depurada” e de música de raros decibéis não tem nem mais nem menos direito de cidade do que os poemas sumptuariamente sinfónicos do poeta de Biografia. Há nos céus, dizem, várias moradas, para os vários que a ele ascendem; o mesmo acontece no variado céu da poesia, em cujas diferentes moradas se acomodam tanto os pletóricos como os mais esganiçados: há lugar para todos, naquela imensidão acolhedora – cabem lá, repito, os vocalmente mais circunspectos e de menos penugem, mas também os mais decibelicamente discursivos ou indiscretamente eloquentes… ou de grande plumagem. Resumindo: se lugares há muitos, variedades poéticas também não escasseiam. Pretender estabelecer normas rígidas e redutoras, em matéria tão vasta, tão diversa e tão fluida é o mesmo que querer tapar o sol com uma peneira. A palavra “retórica” tornou-se, para alguns bizantinos exegetas da poesia, um estranho tabu. Resultado lisinho, como é de regra, de pura ignorância. Foi mesmo José Régio, com a inteligência crítica que sempre se lhe reconheceu, quem, a propósito da poesia de Junqueiro, demoliu o estranho tabu: “Nenhum significado depreciativo”, observou Régio, num artigo – “Junqueiro e a retórica” – publicado em O Comércio do Porto, de 23 de Agosto de 1955, “ [nenhum significado depreciativo] implica em si o termo retórica. Retóricos são todos os literatos, pois é de sua arte sê-lo. Grandes retóricos são todos os grandes poetas: Camões ou Bocage, por exemplo, Teixeira de Pascoaes ou Fernando Pessoa.” E acrescentava, judiciosamente: “O que sucede é variarem muito as suas formas de retórica. E, ao passo que em certos poetas assume a retórica uma tonalidade oratória ou declamatória, noutros se manifesta sob formas antes gongorizantes. Num mesmo poeta, “exemplifica Régio, “ – como, por exemplo, Fernando Pessoa – se nos evidenciam, por vezes, as duas modalidades retóricas: pois a retórica das Odes de Ricardo Reis é gongorizante e a das Odes de Álvaro de Campos declamatória.” (Seja dito, de passagem, que tenho alguma dificuldade em compreender como os mesmos que rejeitam a sumptuosidade declamatória dos versos de Régio, aplaudem, sem reservas, o estardalhaço retórico das odes do engenheiro naval…)
Portanto, ao acusar-se de “retórica” a poesia de Régio está-se simplesmente a perpetrar ou um contra-senso ou um pleonasmo. Seria ridículo pedir, para a cólera de Aquiles, na Ilíada, ou para a batalha de Aljubarrota, nos Lusíadas, a retórica contida e gongorizante, que mais se adapta à lírica dos mais belos sonetos camonianos: a fúria do guerreiro grego e o tinir de espadas do combate com o castelhano antes convocam uma retórica mais turbulenta, isto é, com mais “barulho e fúria”. O que se pode é acusar “certa” poesia de uma desproporção inaceitável entre o excesso dos meios retóricos (a técnica, a forma) e a escassez do conteúdo, o que não é, nem por sombras, o caso da poesia de Régio, em que a abundância, a intensidade e a densidade do conteúdo são patentes – e representam e representarão, por muito tempo, para o leitor sensível e inteligente, os tais “coups de poing” de que falava Flaubert. No citado artigo sobre Junqueiro, Régio alude, com lucidez, a este perigo do desequilíbrio entre “retórica” e “conteúdo”: “De certo”, observa o autor de A Chaga do Lado, “se poderá sustentar ser este o princípio de todo o academicismo, no significado desvalorativo que também este termo acabou por tomar: excesso de preocupação técnica; substituição do fim pelo meio; esquecimento da coisa a exprimir pelo cuidado e pormenorização da expressão. Sem dúvida”, conclui Régio, “no sentido depreciativo tão vulgarmente assumido pelos dois termos, há, ou pode haver, íntimas relações entre os dois termos.” Por fim, resume, deixando, muito à sua maneira, não um acervo de respostas, mas, antes, uma colheita de perguntas: ”Não irá sendo tempo de atendermos aos vários significados do termo [retórica]? às íntimas, perpétuas relações entre retórica e expressão literária? à importância das modas ou particularidades epocais sobre a aceitação desta ou aquela retórica?” A pergunta pode, pois, ser: haverá menos retórica em Pessanha e Eugénio de Andrade do que em Régio e Junqueiro? A resposta é, lisinhamente: não, há apenas duas retóricas diferentes e seria pura estultícia pretender que uma é melhor do que a outra.
As Encruzilhadas de Deus, editada, como disse, em 1935 e distribuída em 1936, foi inicialmente congeminada como uns Novos Poemas de Deus e do Diabo, tendo o poeta, depois, em 1932, pensado ainda numa segunda estrutura e com um segundo título: Poema Integral. Só à terceira vez se fixou no título e na obra tal como agora a conhecemos. Houve, até hoje, oito edições deste livro: 1ª edição, com capa e sete gravuras de Júlio, 1935/1936; 2.ª edição, 1946; 3ª edição, s/d, [1956]; 4ª edição, com desenhos de Manuel Ribeiro de Pavia e capa de João da Câmara Leme, 1960; 5.ª edição, «Obras Completas», 1966; 6ª edição, na mesma série, 1970; 7.ª edição, na mesma série. 1981; 8.ª edição, «Obra Completa», Poesia – I, 2001.
Disse-o já – Biblos, vol. 2, p. 275 – e transcrevo-o, para não andar a fabricar paráfrases mais ou menos disfarçadas, que As Encruzilhadas de Deus “retomam, aprofundam e dramatizam , com maior ênfase, temas anteriores (…) dos seus livros: auto-análise e desespero, eu e os outros, o céu e o inferno, a tentação da morte e do absoluto, «o fértil desespero», a confissão e a máscara, cansaço de viver e heroísmo de viver, lucidez e emoção, necessidade de amor e impossibilidade de amor, amizade e traição, (…) verdade, mentira e ironia, etc.” Falando frequentemente, com musical majestade, de coisas muito grandes e de coisas muito pequenas, como dizia Chesterton que fazem todos os grandes poetas, Régio, ao publicar, há oitenta anos, As Encruzilhadas de Deus, entregou-nos, como quem se desobriga, um dos mais altos testemunhos líricos da língua portuguesa.
Eugénio Lisboa
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