Mas. antes dessa louvável “descoberta” da filosofia de Onésimo, JMB já tinha obra: tinha publicado o ensaio “O
pensamento insuportável de Émile Cioran. Um itinerário do desespero à lucidez”
(Campo das Letras, 2006), sobre as ideias do filósofo franco-romeno, a quem já
chamaram o “rei dos pessimistas” e “A importância da desconfiança” (Veja, 2010),
um livro que infelizmente me passou despercebido e que acabo de comprar para ficar com a
quase totalidade das obras do autor. Depois escreveu “O Negativo. A importância do conceito na
cultura e na história”, com prefácio de Manuel Curado (Theya, 2017), uma obra influenciada
pelos trabalhos de José Eduardo Franco sobre o negativo (um parênteses só para
dizer que a capa, com os Jerónimos invertidos, é um verdadeiro achado), e “O Mundo
às Avessas. O manicómio contemporâneo” (Opera Omnia, 2018), um ataque cerrado à
pós-modernidade, que eu já louvei num curto vídeo de recensão chamando a
atenção para alguns exemplos pitorescos. Logo os títulos de algumas secções dão
para perceber as intenções do autor: “Em todo o homem que come carne há um violador e um pedófilo”, “Os
direitos de autor dos macacos”, “A ecossexualidade e a salvação da Terra” e “O Pénis é uma construção social”. Ri-me
muito, apesar de se tratar de uma tragédia espalhada por aí.
JMB publicou agora, ou melhor há escassos meses, um
novo livro, “Os Democratas que destruíram a democracia” (Opera Omnia, 2019), para o qual gostaria de chamar a
atenção, uma vez que o acabo de ler. Não são muitas as recensões de livros
de filosofia entre nós e este é um pequeno contributo de um leitor leigo..
Quem é o autor? JMB, nascido
em Sines, é doutorado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e
investigador no CLEPU – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, da Universidade de
Lisboa. Foi discípulo do Prof. Fernando Gil, um filósofo sábio e rigoroso de quem
todos temos saudades.
JMB continua no seu
mais recente volume o combate do livro anterior contra um rol
de ideias pós-modernas, que se têm disseminado perigosamente, a ponto de nalguns
sítios se terem tornado pensamento único. Devo dizer que concordo na
maioria das vezes com as objecções que JMB levanta ao pensamento dominante e à
sua estapafúrdia linguagem. Concordo absolutamente quando ele diz que “a crença
de que tudo é possível e nada é verdadeiro, praticada pelos progressistas, é o
que nos resta quando já não acreditamos em mais nada.” (p. 9) O relativismo, isto é. a igualização por baixo de tudo, cultivado por esses soi disant “progressistas”, é a negação da pensamento cientifico:
não está tudo certo porque a ciência procura e descarta os erros, distinguindo
afirmações certas de afirmações erradas: Einstein emendou Newton, mantendo uma parte. E mesmo fora da ciência não são a mesma
coisa Shakespeare, que já cá está há três séculos, ou um escriba qualquer que
chegou agora ao mundo.
Apresento, para abrir a recensão, três excertos do livro, para o leitor perceber melhor do que trata. O primeiro é:
“O civilizado descobriu que a cultura ocidental
afinal era obsoleta e má, racista, machista, sexista, homofóbica, patriarcal,
heteronormativa e egofalocêntrica”. (… ) Descobrimos o fim da história, o fim
do homem, o fim da metafísica, que a ciência é ideologia, que não há verdade,
nem objetividade, nem realidade, que tudo é cultural, político e construção social”
(respeito o novo acordo ortográfico que ele usa, apesar de não o seguir) (p. 10).
O segundo:
“E este é o tempo do estatuto superior da opinião.
Aboliu-se o legado da religião, dos grande romances, dos tratados filosóficos,
dos intelectuais verdadeiros e temos o predomínio da opinião. Não é a opinião
de A ou B, mas a opinião que circula como conhecimento e esta é a substância da
ideologia progressista” (p. 77).
E o terceiro:
“A lengalenga do novo
mundo neoprogressivo diz-nos que não há verdade, mas apenas verdadezinhas,
tonalidades que refletem o que funciona, como pregam os neopragmáticos” (p.
171).
O leitor estará já a
perceber que JMB está a falar daquelas pessoas que vêem racismo e machismo em todo o lado, dos que trocam um facto comprovado por qualquer
opinião, dos que querem mandar a verdade
para o caixote do lixo, ao inventarem o conceito de "pós-verdade". Entre eles estão aqueles que querem
reescrever a história, por esta ter sido escrita por “homens brancos de meia
idade”. Em Portugal, incluem-se nesse grupo os que querem derrubar a estátua do
Padre António Vieira em Lisboa, poe ele ter sido esclavagista, ou que recusam um Museu das Descobertas por
acharem as descobertas uma violência.
JBM usa uma linguagem propositadamente forte para designar o mundo em que vivemos, onde certas vozes imperam, sendo tremendamente
amplificadas pelos mediam em particular pela Internet:
“Transformámos o mundo
numa fusão indistinta de casino, manicómio e supermercado. Nada de novo. Todos os
tempos têm os seus delírios e os seus prosélitos. A novidade reside na
capacidade tecnológica e científica inédita que transformou totalmente o nosso
modo de vida” (p. 10-11).
É uma imagem que eu não
usaria, mas que o autor tem todo o direito a usar. Insiste na imagem do manicómio, que
será, segundo ele, governado pelos próprios doentes: “A pós-modernidade é, em
muitos dos seus aspectos propagandeados, a visão de um conjunto de loucos sem profundidade
que exaltam as suas taras particulares. Novos radicalismos e fundamentalismos
com os seus messianismos e escatologias laicas bloqueiam totalmente a lucidez,
a razão e a sensatez” (p. 18).
JMB invoca, para se sustentar,
em Cioran, que ele bem conhece, e cujo “Breviário
da Decomposição” cita: “Escrevia Cioran que
lhe bastava ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, ouvi-lo dizer
´nós‘ com um tom de segurança, invocar os ‘outros’ e sentir-se seu intérprete,
para que o considerasse não só um perigo como um inimigo. É essa a matéria de
que são feitos os carrascos e os tiranos, que dividem a humanidade entre os puros
e os ímpios” (p. 23).
JMB arrasa o filósofo
norte-americano Richard Rorty, o qual, segundo ele, foi caminhando de filósofo
analítico para pensador pós-modernismo, por lhe terem estendido uma “passadeira
vermelha”: “transformou-se num culturalista relativista ignorante e cínico. Como
todos o são.” (p. 29) JMB tem, como se vê, um estilo
declaradamente provocador. Encontrei-me várias
vezes a concordar com o que ele diz, mas não com a maneira como ele o diz.
Não sei, por exemplo, se todos os relativistas são cínicos, quero acreditar que
alguns sejam ingénuos.
E também se mete com o
filósofo francês Bruno Latour, popular nos círculos pós-modernos, no meu entender muito a propósito. Quando historiadores chegaram
à conclusão de que o faraó Ramsés II, no Antigo Egipto, tinha morrido de tuberculose, Latour ripostou, uma vez que o bacilo da tuberculose (uma bactéria) só foi descoberto pelo alemão Robert Koch em 1882.
Antes dessa descoberta, não poderia existir a bactéria, porque a bactéria seria um conceito… Chama-se a este pensamento “construtivismo”. As coisas não existem, são inventadas.
Não há nenhuma realidade, mas sim e apenas construções mentais e sociais.
Os maniqueístas que
dividem o mundo entre esquerda e direita não deixarão de notar que JMB cita,
por vezes em tom simpático, pensadores conotados
com a direita como John Gray (um filósofo político inglês que eu gosto de ler,
apesar de não concordar com o seu ultra-pessimismo: ele tenta ultrapassar Cioran!),
Roger Scruton (um filósofo conservador inglês, falecido no início deste ano) e Jordan
Peterson (um psicólogo guru norte-americano, que ainda não li). Esses, tal outros
autores (alguns deles conotados com outras bandas do espectro político), têm, mesmo que nao se concorde com o que eles dizem, o
grande mérito de nos fazerem pensar.
Falo por mim: mesmo quando tenho alguma convicção, gosto de ouvir os argumentos
dos que têm convicções opostas.
De resto, a divisão
entre direita e esquerda é hoje questionável. Um eleitor pode ter algumas ideias
geralmente atribuídas à direita e outras geralmente atribuídas à esquerda. Concordo sem hesitação com JBM, quando ele diz : “É bom lembrar que as grandes questões do
século XXI não são entre a esquerda e a direita, o centro e os extremos, os
democratas e os fascistas, mas entre lucidez, razoabilidade e sensatez e ignorância ou mesmo
imbecilidade disfarçada de ilustração, irracionalidade e emotividade” (p. 47). A referida divisão não passa, muitas vezes, uma arma de arremesso. Cola-se um rótulo em vez de discutir seja o que seja.
O problema, por exemplo, com Trump e Bolsonaro não é serem de direita – ou “fascistas”, como alguns afirmam, esquecendo que essa categoria política surgiu num certo contexto histórico e que hoje é anacrónica, mas sim serem grandes ignorantes, fazendo contínuo e grande alarde da sua ignorância. Basta olhar para a sua atitude perante a epidemia que estamos a viver: os seus países estão no topo da lista das vítimas graças em boa parte devido à desvalorização que eles fizeram do vírus.
JMB desmonta o modo
como a linguagem do “politicamente correcto” é usado para o exercício do controlo
mental: “A novilíngua progressista é o novo idioma oficial” (p. 47). Ilustrando
este controlo o autor conta logo no início uma anedota verdadeira passada com
ele enquanto escrevia o livro. O corrector ortográfico da Microsoft emendou onde
ele tinha escrito “pessoas normais e comuns”, avisando que devia ser inclusivo,
isto é, pretendia que escrevesse “pessoas normais e anormais, comuns e não
comuns”. Mas por que raio o corrector da novilíngua quer coagir o autor e não referir “pessoas normais e comuns”? Será
ofensivo para alguém usar esses termos?
Uma das tácticas dos soi-disant
progressistas é a vitimização. O apoio à vítima está na moda, mesmo quando não há vítima. Escreve JMB: “Ser vítima é ser civilizado. É criminoso ou
suspeito quem não é vítima de qualquer opressão, presente ou passada. A leitura
caricatural da dialética do senhor e do escravo é a única chave para a compreensão
da história e vai repetindo diversos protagonistas em variáveis infinitas. Os
alunos são vítimas dos professores, as crianças dos adultos, os negros e os ciganos
dos brancos, os homos dos héteros, os democratas dos fascistas, os ateus dos crentes,
os vegans dos animalistas, etc.” (p. 178)
Mas JMB vai mais longe,
ao afirmar que as políticas identitárias, em geral ligadas a vitimização, estão
a destruir a democracia. Numa nota da p. 66 refere a existência de pós-graduações
em gestão só para gays na Universidade de Yale. Curiosamente o corrector deixou
passar uma gralha na palavra “universidade”; talvez o autor o tenha simplesmente
desligado. Gralhas como esta servem para mostrar que o autor é humano: o texto
não foi escrito por nenhum robô. Encontrei outra, mais adiante, no nome de Lysenko, o charlatão soviético cuja cegueira ideológica fez morrer à fome os seus compatriotas.
Lembrando as distopias
de Aldous Huxley, George Orwell e Michel Houellenbecq, JMB fala da opressão que
o pensamento dominante procura exercer através da linguagem, usando uma metáfora
que nos tempos de hoje se torna muito clara: “A ditadura do pensamento pós-moderno progressista
existe. É gente boa, culta, inteligente, reproduz uma mundividência e as suas
pragas como doentes contaminados por uma peste da qual não conseguem fugir” (p. 52).
Num mundo tolhido pela
ideologia e controlado pela linguagem, a democracia encontra-se, portanto, em risco. Segundo
o autor, que gosta de expressões retumbantes, ela foi “traída” (p. 78). Como anuncia o título do livro: “Sabemos que aquilo a que chamamos
democracia nos sistemas políticos ocidentais, e considerando a melhor aceção do
conceito, já pouco tem de democracia,
pois vivemos num simulacro perfeito desse ideal” (p. 99). E a “traição” foi
perpetrada pelos democratas, ou melhor pelos soi-disant “democratas”. Como
o autor lembra noutro passo, Sócrates, o filósofo grego, foi condenado à morte
pelos democratas. E, entre nós, houve outro Sócrates que ainda não foi condenado,
ou só o foi de um modo muito leve, por muitos democratas no poder.
Mas qual é a solução
para recompor um “mundo às avessas”? JMB indica-a. O que precisamos, agora e sempre?
Pensamento claro, pensamento livre. Este é o pensamento que, há séculos, foi reclamado pelo
holandês Bento Espinosa, invocado logo no início do livro (e também na contracapa). Disse Espinosa: “Num Estado Livre,
todos os homens podem pensar o que querem e dizer o que eu pensam” Não podemos
ter medo de pensar. Pensar não é “fascista”.
No parágrafo final encontra-se uma das mais fortes metáforas do livro, que o leitor pode sentir como um verdadeiro “murro no
estômago”: segundo JMB, tal como foi desmembrado um jornalista saudita num
consulado da Arábia Saudita em Istambul,
na Turquia, em 2018, “também a nossa
cultura vai sendo silenciada e desmembrada por uma estranha forma de democracia”
(p. 189).
João Maurício Brás é um
homem livre e tiro-lhe o chapéu por isso. Não há muitos homens livres por aí. Pensa
o que diz e diz o que pensa. Resiste a uma vaga que engoliu muita gente. Pois faz
muito bem e oxalá o continue a fazer.
4 comentários:
Para retrato, não está mau de todo. Foi usada a técnica do pontilhismo – umas manchas aqui, uns pontos de cor acolá, umas justaposições além... Um impressionista, portanto, que tenta representar a natureza caótica, louca, imprevisível, pela abstração do Homem, um esforço civilizadamente vitimado.
Pois, que tenho eu a dizer, nesta minha cadeira opinativa, cheia de relativas verdadezinhas? Já me custa resumir artrites.
O que é, então, a democracia? Na prática, um “baixo contínuo” da representação popular do poder. Geralmente, socialistas. Materialistas. Ateus, portanto, possuindo corpos de judeus, católicos e protestantes. O tal do pénis sistematicamente a reproduzir-se na construção social, exemplificativo na frase de Virchow “Já autopsiei muitos cadáveres e nunca encontrei uma alma.” Deus está morto, o céu vazio e a transferência para a anarquia sempre iminente. Cientificamente, positivistas: “Acredito no que meço e peso”. Naturalmente. O homem do Estado? Um circense charlatão. Espiritualmente? Como tornar material o que não existe materialmente? Estamos todos ligados? Tecnologicamente, fora isso, a “impenetrabilidade da conexão inessencial” (expressão descontextualizada de Shelling). E é isto, basicamente.
Ah! Ia-me esquecendo do Shakesqeare:
“O homem que não possui a música em si próprio.
Aquele que não expressa a harmonia suave dos sons.
Está amadurecido para a traição, o roubo, a perfídia.
Sua inteligência é morna como a noite,
Suas aspirações, sombrias como e Erebo.
Desconfia de um tal homem! Escuta a música.”
https://www.youtube.com/watch?v=-8QiHC2ibDk
Também conheci o João através do Onésimo. Dois grandes homens. Apenas destaco um livro do João não listado: "Da Filosofia Inútil" (Fonte da Palavra, 2011). Adorei a recensão.
Ainda nos falta um bocado de trabalho científico e filosófico, descontraído e desinteressado, isento e tranquilo, para começarmos a compreender o problema da linguagem, como parte das respostas e das perguntas sobre a realidade incluindo a dela própria. Mas estão a fazer-se progressos notáveis. A linguagem, segundo uma abordagem interessante que li, parece que funciona num esquema digital, descontínuo e a realidade, a vida, as emoções, funcionam analogicamente, sem descontinuidade. Esta hipótese, para mim, foi uma grande descoberta (andamos sempre a descobrir o que já foi descoberto?). O alcance desta conjectura, de que a linguagem comunica, ou pretende comunicar, a realidade mas que o faz representando-a digitalmente, envolve um conjunto de problemas interessantíssimos e que podem ser perigosos. Deixa o caminho aberto a todas as formas de comunicação e de mal-entendidos e de equívocos, voluntários ou não, sobre a realidade, que sempre será diferente da nossa representação dela e, inerentemente, da comunicação que dela se faz. A literatura, a poesia, o teatro e as artes...não obstante serem de algum modo jogos que "pervertem" e "subvertem" e "transgridem" a linguagem digital para tentarem ser analógicas, como a realidade, não deixam de ser linguagens... Não estou muito certo de estar suficientemente rigoroso na linguagem e não tenho mais do que a suspeita de que estou a pensar numa questão algo revolucionária, em termos de teoria do conhecimento.
Quanto à democracia, enquanto ideia, nunca será destruída por ninguém. Se existe um problema porque a democracia nunca existiu para além da ideia e quanto mais se deseja, mais parece estar longe da sua concretização, é preciso identificá-lo e resolvê-lo, mas não me parece que seja com jogos de palavras como "os democratas que destruíram a democracia".
Apostaria na expressão “os democratas que não construiram a democracia”.
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