sexta-feira, 22 de maio de 2020

AS EPIDEMIAS NA LITERATURA


Meu artigo no último As Artes entre as Letras (na figura uma edição do Decameron de 1602):

É longa e frutuosa a relação entre a literatura e as epidemias que nos têm assolado. Para ilustrar essa rica relação, pode-se começar pelo “Decameron”, um conjunto de contos do século XIV do italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375), amigo de Petrarca. Um grupo de dez jovens, sete raparigas e três rapazes, abrigados da peste negra ou grande peste, nos arredores de Florença, em 1348, contam cem histórias durante dez dias. O livro foi escrito pouco depois, quando ainda não existia imprensa. Li-o adolescente, requisitado numa biblioteca municipal, e, apesar da antiguidade da narrativa, devo confessar que fiquei fascinado pelos relatos pícaros e eróticos. Os relatos da peste, que causou, na Europa e na Ásia, mais de 100 milhões de mortos e em Florença cerca de cem mil, são vivos e dão-nos conta da época: as pessoas dividem-se entre as que se refugiam na religiosidade e as que se refugiam no hedonismo. A obra haveria de ter duradoura influência na literatura ocidental, inspirando autores como Shakespeare, Molière e Voltaire. Há várias traduções em português (a que li, em versão reduzida, era da Inova), destaco a mais recente, da Relógio de Água, em dois volumes, com tradução e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues (saiu num só volume, há anos, no Círculo de Leitore).

Dando um enorme salto no tempo, mas continuando na língua italiana, destaco o romance “Os Noivos” do escritor romântico italiano Alessandro Manzoni (1785-1873), publicado no original em 1827, mas cuja acção se situa em 1628. Relata, no cenário da praga que atacou Milão por essa altura (a peste bubónica de 1629-1631, que matou um milhão de pessoas), o noivado de dois jovens, que acaba com o casamento e o reinício de vida em Bérgamo (curioso que também tenha sido nesta cidade a norte de Milão que a Covid-19 teve agora um surto maior). Tal como o “Decameron”, embora aqui o registo seja mais moral e piedoso, também esta é uma obra maior da literatura italiana. Há até quem diga que foi a mais lida em língua italiana, mas tenho de admitir que ainda não li. Acabo de a encomendar, numa tradução recente para português de José Colaço Barreiros, saída nas edições Paulinas, numa colecção dirigida por Tolentino de Mendonça. Tal como o “Decameron” também “Os Noivos” chegaram à ópera e ao cinema.

Na língua inglesa, forçoso é destacar o “Diário da peste de Londres” do inglês Daniel Defoe (1659-1731), o famoso autor do best-seller “Robinson Crusoe.” É uma novela, mas também uma crónica não ficcional que dá conta, com realismo, dos dias da grande praga de Londres de 1665, o último ataque da peste bubónica em Inglaterra, que matou cerca de cem mil pessoas (em Portugal atacaria no Porto em 1899, obrigando à transferência de Ricardo Jorge para Lisboa e vitimando Câmara Pestana). A publicação original é de 1722. A mais recente edição portuguesa, com tradução de João Gaspar Simões, foi publicada pela Bonecos Rebeldes, mas julgo estar esgotada, tal como outras edições anteriores.

Já no século XX, e em língua francesa, um clássico moderno é “A Peste” do francês Albert Camus (1913-1960), Prémio Nobel da Literatura em 1957, para alguns a obra maior do autor e um romance que tem sido muito procurado nestes tempos de pandemia. A primeira edição é de 1947. A tragédia da peste bubónica é situada no ano de 1940 na cidade de Oran, na Argélia, que Camus conhecia bem (lembro que o escritor nasceu na Argélia), mas o evento real inspirador do livro foi a epidemia de cólera que aí grassou em 1899. Os temas têm alcance universal, embora a abordagem e o estilo de Camus sejam muito próprios: a condição humana, a força do destino, o absurdo. A generosidade e a maldade, o heroísmo e a cobardia, a afirmação e a negação de Deus são abordados num livro, que chegou ao teatro e ao cinema. Há uma edição no mercado da Livros do Brasil, com tradução de Ersílio Cardoso.

Sobre a cólera, mas passando para a língua castelhana, não pode passar despercebido “O Amor nos tempos de cólera” do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), Prémio Nobel da Literatura em 1982 e mestre do realismo mágico sul-americano. O livro, publicado em 1985, pouco após a recepção do Nobel, conta uma história de amor, inspirada em recordações dos seus pais que ele próprio recolheu. O enredo passa-se no final do século XIX e início do século XX na Colômbia e o título resume bem o conteúdo: Uma história de amor num tempo atravessado não só pela violência dos homens como pela violência natural de uma epidemia de cólera. Não sendo o tema central, a doença está em pano de fundo. Há uma edição portuguesa da Dom Quixote, com tradução de Margarida Santiago. Foi feita um filme baseado a trama do livro, que inclui canções da colombiana Shakira.

Por último, em português, é inevitável referir o “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago (1922-2010), também Nobel da Literatura, em 1998, na esteira de Camus e García Márquez. Este “Ensaio”, publicado originalmente em 1995, é uma obra inteiramente ficcional: Saramago efabula uma epidemia que causa a falta de visão, com a notável excepção de uma mulher, a mulher de um médico oftalmologista, que também cegou. Um pouco na linha de Camus, o autor fala, ao narrar os esforços de sobrevivência de um grupo onde está a mulher, da existência humana num tom eivado de pessimismo. A impotência, o medo, o desespero são as marcas da tragédia que aqui é retratada. Encontra-se nas livrarias uma edição da editora Caminho. Tal como algumas das obras atrás referidas, este livro foi adaptado para o teatro e para a ópera. Além disso, o realizador brasileiro Fernando Meireles fez, em 2008, com base nele um filme que agradou ao autor.

Várias outras obras poderiam ser acrescentadas – por exemplo, “O Último Homem,” de Mary Shelley (não traduzido entre nós), a autora de “Frankenstein”, sobre uma imaginada peste apocalíptica, “Némesis,” de Philip Roth (Dom Quixote), sobre o surto de poliomielite que ocorreu em Newark em 1944, e “O Ano do Dilúvio” de Margaret Atwood (Bertrand), sobre uma distópica praga artificial. E espera-se por “Noites da Peste”, o novo romance do escritor turco Orhan Pamuk, Nobel de 2006, sobre a peste que assolou a Ásia em 1901, conforme ele próprio anunciou em artigo publicado há poucos dias originalmente no New York Times e depois em vários jornais de todo o mundo. As epidemias são uma fonte fértil de boa literatura

3 comentários:

Sapientia disse...

https://www.youtube.com/watch?v=szFw6Adk1hk&feature=share

Voz: Teresa Salgueiro

Sapientia vero ubi invenitur?
Et quis est locus intellegentiae?
Nescit homo pretium eius,
Nec invenitur in terra suaviter viventium.
Abyssus dicit:
“Non est in me”.
“Non est mecum”.

Unde ergo sapientia venit,
Et quis est locus intellegentiae?
Perditio et mors dixerunt:
“Auribus nostris audivimus famam eius”.

Sapientia vero ubi invenitur?
Et quis est locus intellegentiae?
Abyssus dicit:
“Non est in me”.
“Non est mecum”.

Anónimo disse...

O tempora! O mores!

Latim clássico disse...

Frase de Cícero? Mestre na arte de argumentar, advogado. Bom filósofo, pagão... Morreu assassinado pelo centurião Herênio sob as ordens de Marco António, com 63 anos, a idade do professor Fiolhais.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...