Recebemos através da editora Gradiva informação sobre o livro. Ética no Quotidiano, da autoria de Dave Robinson (aqui). Nele surge uma reflexão sobre as decisões políticas em tempo de pandemia. As questões que abaixo se enunciam têm estado presentes no nosso quotidiano desde que ela se iniciou e hão-de continuar a persegui-nos nos próximos meses ou anos. Pensar nelas é, de resto, um exercício que nos servirá no futuro em situações análogas que, por certo, passaremos. Uma delas, mais grave do que esta, é, sem dúvida, a sustentabilidade do planeta, que tem estado suspensa, esquecida, negligenciada... mas lembremo-nos que ela não é adiável...
Jeremy Bentham inventou o utilitarismo como método para ajudar governos a enquadrar leis, tomar decisões e justificar as suas acções. Por isso, parece uma filosofia moral especialmente adequada aos problemas produzidos pelas pandemias.
Não há dúvida de que este vírus produziu enormes quantidades de infelicidade para muitas pessoas, e portanto a tarefa do governo é procurar evitar todo esse sofrimento ou erradicá‑lo completamente.
Os utilitaristas insistem que a sua filosofia é igualitária – todos nós somos dignos de igual consideração. Os governos, contudo, podem ter de levar a cabo a tarefa de eliminação de vírus por fases – ajudando os mais vulneráveis e os mais indispensáveis em primeiro lugar, como os idosos e doentes, bem como aqueles que são necessários para a tarefa: enfermeiros, médicos, motoristas que fazem entregas e assim por diante. Mas o objectivo final seria ajudar todos, e o mais rápido possível. Um problema mais complicado é o das decisões nas áreas médica e económica que um governo teria que tomar ao lidar com esta crise.
Pode parecer bastante simples. Contam‑se as mortes e faz‑se aquilo que reduz os números.
Mas governos utilitaristas têm de lidar com o sofrimento e a felicidade no futuro, o que é apenas mais ou menos previsível, a menos que, como agora percebemos tão bem, não seja de todo previsível. Os governos precisam de ser lembrados das incertezas da indução – trata de probabilidades, não de certezas. Dados actualizados e pandemias passadas provavelmente ajudam a fazer algumas previsões razoáveis, mas no caso da Covid‑19 muitas vezes estavam completamente erradas.
Este vírus provou ser deveras único com o seu longo período de incubação, a sua elevada letalidade, a sua enorme capacidade de contágio e assim por diante. Aconselhamento científico inicial chegou a recomendar que se espalhe na comunidade, de modo a criar uma «imunidade de grupo». Mas isso conseguir‑se‑ia à custa de milhares de mortes. Mesmo a distância social recomendada de dois metros é, na verdade, uma suposição.
Bentham tentou reduzir este tipo de incerteza, inventando um sistema de pontos único e complicado em que atribui pontos por coisas como a intensidade da dor (ou morte) prevista, a sua duração, certeza, expansão, o seu custo e assim por diante. O seu tipo de «cálculo da felicidade» também suscita muitos «problemas económicos e morais» – seria aceitável, por exemplo, arriscar as vidas de alguns cidadãos, a fim de facilitar uma recuperação económica mais rápida?
Actualmente, os economistas chamam esse tipo de cálculo «análise de custo-benefício». Existe porque nenhum governo tem recursos ilimitados para gastar com os seus cidadãos. É aqui que os bem‑intencionados objectivos da moralidade esbarram nas realidades sombrias da economia (...)
Se a crise continuar por um tempo considerável, a economia continuará a sofrer grandes danos; as empresas entrarão em colapso; empregos deixarão de existir; a pobreza aumentará. E o que sabemos é que quando a pobreza aumenta, mais pessoas morrem prematuramente.
Se reduzirmos a necessidade de isolamento social, a fim de ajudar a restaurar a economia, podemos causar mais algumas mortes pelo vírus; mas podemos salvar mais vidas, caso os mais pobres sejam capazes de trabalhar novamente.
Cálculos utilitaristas podem ser um negócio sombrio. Uma crise como esta também pode incentivar os governos a assumir demasiado poder sobre a saúde e a expectativa de vida de cidadãos individuais, não apenas agora, mas no futuro. Vivemos numa democracia liberal que desaprova demasiada interferência dos governos nas nossas vidas particulares.
Provavelmente é prudente ser céptico, se não mesmo cínico, sobre o que os governos fazem em nosso nome. É por isso que uma democracia precisa de um partido de oposição forte no Parlamento e de uma imprensa independente que revele o pensamento subjacente às decisões e acções do governo. Gostaríamos que elas fossem para o bem de todos nós e não apenas para os cidadãos mais poderosos e influentes.
Os governos têm o dever de eliminar a ameaça que este vírus constitui para os cidadãos? Um argumento central para o direito de os governos existirem, terem autoridade, terem poder e fazerem leis é que isso se deve a um contrato. Este contrato estabelece‑se entre todos os cidadãos e os governos. Os cidadãos concordam em ser governados porque os governos têm o dever de protegê‑los e esta é a principal razão para os governos existirem. É a primeira cláusula do acordo. É uma boa ideia, mas é ficção, claro. Eu nunca assinei um contrato e o leitor deste texto também não. Mas a maioria dos governos aceitaria que a protecção dos seus cidadãos de um vírus mortal é algo obrigatório.
Até onde podem ir para levar a cabo essa tarefa? Que direitos humanos pode um governo infringir, abolir, limitar para executar a tarefa de remover a ameaça que o vírus impõe? Pode um governo tornar a vacinação obrigatória para todos os seus cidadãos? Até que ponto os governos estão autorizados a levar adiante essa tarefa de eliminar o vírus? Isto é mais difícil de responder. Algum governo tem uma boa razão para impedir que as pessoas deixem as suas casas para irem trabalhar ou conviverem com outras pessoas (com vista a controlar os efeitos do vírus, é claro)? A maior parte das pessoas diria que sim, se desejarmos proteger não só a maioria das pessoas, mas também os mais vulneráveis. Mas o que fazer com aqueles que se recusam a obedecer? Deveríamos tentar proteger todos com alguma forma de assistência financeira limitada, proteger empregos e empresas, tanto quanto possível, e assim por diante. No entanto, isso é um inconveniente de curto prazo até que uma vacina seja encontrada e produzida em grandes quantidades. Mas o governo tem o direito de insistir na vacinação obrigatória para todos? Se a vacinação se tiver mostrado inofensiva e eficaz, então aqueles que a recusassem teriam um caso difícil de defender, especialmente se representassem uma séria ameaça aos seus concidadãos. Contudo, a ideia de injectar à força tais indivíduos, pareceria repugnante para a maioria de nós. Conferiria demasiado poder aos governos e estabeleceria um precedente perigoso.
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