segunda-feira, 25 de maio de 2020

In Memoriam José Cutileiro (1934-2020)



No pretérito sábado foi a primeira vez desde há um bom rol de anos que não li o “In Memoriam” do Expresso, escrito por José Cutileiro. Numa prosa escorreita, e como é uso e costume nos grandes jornais do mundo, José Cutileiro, antropólogo de formação, embaixador de profissão e escritor de vocação, descrevia um duas ou três pinceladas vidas bem vividas. Não conheci José Cutileiro senão através dos seus tão inteligentes escritos, nos jornais e em livro, e  da sua voz lúcida no programa “Estado de sítio” na TSF. E, no entanto, tenho a pretensão de o ter conhecido, pelo menos tanto quanto se pode conhecer alguém através dos referidos meios de intermediação.

Admiro-o muito. Nascido em Évora, foi um moderno estrangeirado, com a inteligência e lucidez que poucos exibiram nos nossos tempos. Tenho-me interessado pelos estrangeirados, quer os dos século XVIII quer os dos tempos mais recentes, porque eles costumam ter uma noção muito mais nítida do seu país de origem do que que domina entre nós. Eu quando me estrangeirei, embora não em demasia (vivi no total seis anos fora do país, a maior parte na Alemanha mas também na Dinamarca, na Espanha ou melhor no País Basco, e nos Estados Unidos), julgo ter ficado a conhecer melhor Portugal, uma vez que só na cotação com outras se pode conhecer uma cultura nacional. Já um dia disse que Portugal desafia as leis da óptica: vê-se melhor à distância.

Logo em adolescente Cutileiro estava a ir para Cabul, Afeganistão, acompanhando o pai, José como ele, que era médico, destacado no Afeganistão pela Organização Mundial de Saúde, após afastameento do país natal por questões políticas. Não é qualquer um que começa a conhecer o mundo, saído directamente do Alentejo para o Afeganistão. Regressado depois e com uma experiência académica doméstica em que saltitou entre a arquitectura e a medicina sem completar qualquer delas, licenciou-se e doutorou-se em Oxford com uma tese que no original se intitulava anodinamente “A Portuguese rural society” (Oxford University Press, 1971) e em português tinha um título bem mais apelativo: “Ricos e pobres no Alentejo” (Sá da Costa, 1977). Li-a na Alemanha, nos idos dos anos 80, pois, pelo meu distanciamento social relativamente à pátria, senti curiosidade por conhecer melhor a sociologia do país (e, além disso, tinha-se tempo: tem-se um tempo imenso se se está a estudar teoricamente a cisão do urânio). O autor, trabalhando numa escola com pergaminhos, fez um retrato, a partir de material autêntico, sobre o que era o Sul de Portugal no tempos de Salazar, um Portugal muito desigual. Esteve uns anos como lecturer na London School of Economics, mas a vida a académica não o atraía (acho que o consigo perceber…).

Pela mão de Mário Soares, no rescaldo da Revolução de 1974, entrou na carreira diplomática pelo posto de conselheiro cultural em Londres. Apesar da desconfiança dos diplomatas encartados, haveria de singrar nos Negócios Estrangeiros, revelando-se um dos melhores: teve postos em Moçambique, na África do Sul e na União Europeia. Desempenhou um papel relevante nas negociações desencadeadas pela guerra na Jugoslávia e assumiu um cargo dirigente na União da Europa Ocidental, um dos projectos falhados do Velho Continente (finou-se após o Tratado de Lisboa de 2000). Europeu, Cutileiro era um céptico, cético também sobre a Europa. Gostava de citar o General De Gaulle, quando este disse que as nações europeias eram ovos cozidos e com ovos cozidos não se faz uma omelete.

Voltou à Academia nos início do século XXI, ensinando no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, onde Einstein  e Dyson tinham sido professores. Ele tinha um certo orgulho por ter respirado o ar que estes físicos também respiraram. Tornou-se cada vez mais um céptico (como céptico deve ser qualquer pessoa minimamente inteligente), mas, mais do que um céptico, após Trump e o Brexit, tornou-se um pessimista (nessa fileira já não o acompanho, por achar que a esperança deve ser, como diz o povo, "a última a morrer"). Pela rádio, ouvia-o, no seu timbre roufenho, falar com desencanto do mundo actual, em particular quando referia Trump ou Bolsonaro. Não falta por aí quem os defenda, quanto mais não seja por terem ganho eleições, mas para ele não era difícil reconhecer um burro quando era mesmo um burro. Aliás, basta hoje olhar para as trágicas estatísticas da pandemia.  Cidadão europeu e do mundo, residia em Bruxelas, onde, como ele dizia, "há de tudo". Com uma ironia fina afirmou numa entrevista ao “Sol”:  Não tenho taras especiais, mas presumo que se gostasse de sodomizar pavões arranjaria um senhor que trataria disso”. Sonhava com uma casa em Cascais, com vista para o mar. No coração da Europa, faltava-lhe o mar.

Nas entrevistas não tinha papas na língua. Aos diplomatas recomenda-se tacto, mas ele era um diplomata reformado. Em entrevista recente ao Observador, apontou o costume português de favorecer a família e os amigos, usando o esquema e a mentira, se preciso for em tribunal. Sobre um alfaiate lisboeta, o senhor Gueifão, que se gabou, ainda ele era rapaz, de cometer perjúrio em tribunal, Cutileiro disse sem rodeios: 

Em todos os países que tiveram a Reforma, que foram luteranos ou calvinistas, uma pessoa não se pode gabar de perjurar num tribunal. O tipo gabava-se disto num desses sítios e levava um pontapé no cu e ia para a rua. E talvez o pudessem denunciar. E esta espécie de indiferença pela verdade e a mentira em relação ao Estado é uma grande falha nacional. E isto continua a ser assim.”

Na sua juventude conviveu com grandes nomes da cultura portuguesa de quem foi amigo e que ele gastava de citar, como o José Cardoso Pires, o Luís de Sttau Monteiro, o Alexandre  O’Neill e o Vasco Pulido Valente.  Fez com alguns deles a revista “Almanaque”, que deve ter sido um gozo pegado. Tinha, desde o tempo de infante, o gosto da escrita. Publicou dois livros de versos, mas não deviam ser grande coisa , pois o próprio não insistiu, pelo menos publicamente, na afirmação da veia lírica. Como ele próprio dizia, e o povo também diz, “as coisas são como são". Uma verdade filosófica profunda!

A sua obra magnum são os “Bilhetes de Colares”. Há uma recolha feita pelo jornal Independente, publicada em 2004 (se virem num alfarrabista, comprem; tem uma caricatura de Cutileiro na capa feita pelo André Carrilho), em que o seu nome está anteposto ao título “Bilhetes de Colares de A.B. Kotter (1993-98)”. Cutileiro assina uma nota introdutória, intitulada “lembrança da Beldroega”. E há uma recolha maior, de 2007, impressa pela Assírio e Alvim, dos textos de A. B. Cotter (incluindo, no final, um “in memoriam” de  Cutileiro; este dá Cotter como falecido, com um testamento que beneficiava os Bombeiros Voluntários de Colares), com tradução de J. Fonseca e organização e posfácio de Fernando Venâncio (que me ofereceu o livro com uma dedicatória muito simpática, que agora reli). Este livro, grande Prémio de Crónica da Associação Portuguesa de Escritores de 2009, está à venda na Wook. Kotter é um pseudónimo de Cutileiro, um alter ego – o próprio  sempre o reconheceu de uma maneira elegante: nunca guardou dele a distância. Criou um personagem de um ex-espião britânico, aristocrata, estabelecido em Colares, na Quinta da Beldroega, que escreve sobre Portugal e os portugueses, a partir do quer se vai passando à sua volta. O pretenso tradutor Fonseca, dado como ex-comando, é o seu fiel secretário, para não dizer "criado", uma palavra que deixou de ter uso. Acontece que Kotter gosta de Portugal, pelo menos tanto como Cutileiro. E, por gostar dele, lamenta os seus defeitos. As manhas e artimanhas dos portugueses estão bem nítidas nessas notas, escritas num português de lei que faz lembrar Eça de Queirós. O par Kotter - Fonseca evoca Jacinto e Zé Fernandes de  “A Cidade e as Serras”. Dá gosto ler Kotter - Fonseca, isto é, Cutileiro – Cutileiro, o estrangeiro e o português. Tenho os dois livros de Kotter como peças únicas na minha bem nutrida estante sobre Portugal e os portugueses, bastante perto do “Ricos e Pobres no Alentejo,” porque Colares não fica muito longe do Alentejo.

Para dar um cheirinho de Kotter respigo a nota “Jornais” inserta nos “Bilhetes de Colares” (p. 166).
“A Quinta da Beldroega tem endereço postal e número de telefone portugueses, mas, sem jornais locais, sem televisão, com a telefonia trancada no BBC World Service, não é bem aqui que eu vivo. O Carlinhos disse-me uma vez que a Beldroega era um enclave e talvez tivesse razão. 'Um salpico de Europa no meio da moirama’, acrescentou o consumidor principal dos meus álcoois brancos, para aplauso da Mãe, que acrescenta pelo seu punho 'Marrocos de Cima' ao timbre do seu papel sempre que nele escreve as suas cartas.”

Mais adiante, queixa-se que faltam nos jornais portugueses “as duas secções principais de qualquer jornal inglês sério: o obituário e a correspondência dos leitores. A primeira informa-nos com quem deixámos de poder contar: a segunda de com quem ainda temos de nos haver”.

Na referida entrevista ao Observador, Cutileiro diz que uma das coisas que mais o impressionou quando voltou com o pai de Cabul, passando por Madrid, é que os nossos “jornais eram muito mal escritos”. É o que pode acontecer a quem anda a ler os clássicos portugueses na estranja, nesse tempo em que a Internet era um futuro distante.

Não li “Abril outras transições”  de José Cutileiro (Dom Quixote, 2017), mas acabo de ler o “Inventário” (Dom Quixote, 2020), que foi a sua última obra. Muito bem escrita. Com o subtítulo “Desabafos e divagações de um céptico”,  agora não é Kotter que fala, mas o próprio. Belo volume, a começar pela qualidade da edição de capa dura e a acabar nas poucas estampas seleccionadas pela sua amiga Vera Futscher Pereira, em cujo blogue (“Retrovisor”) viram a luz do dia estas notas (textos curtos, parte de um “Bloco-notas”).

Nestas notas nota-se a inteligência do escriba. Algumas histórias são pitorescas e algumas frases são lapidares.  Na sua crónica “Descoberta de Portugal”, na p. 236, a propósito dos “brandos costumes,” Cutileiro lembra que no tempo de Salazar Cunhal fez os exames finais de Direito, em 1940, numa altura em que estava preso indo dormir à cadeia e acrescenta, com graça e até parece que a despropósito, que uma amiga brasileira lhe confidenciara que: “No Brasil, se eu vou jantar com um homem, tinha de dormir com ele, e em Portugal não.” Enfim, portugalidades. O país é simplesmente diferente dos outros. Nos anos 40, quando o pai foi fazer exame de Obstetrícia, o respectivo catedrático (o “Moreirinha”, os portugueses são especialistas em diminutivos, como várias vezes assinalou Cutileiro) perguntou-lhe: “O senhor não tem vergonha de vir fazer exame sem uma recomendaçãozinha?” (outra vez o diminutivo, o nome vulgar é “cunha”). E a crónica termina de um modo queirosianamente genial:

 “Entre compadres cuja ajuda falha e computadores que não dominam bem, portuguesas e portugueses sofrem – e cogitam, à portuguesa, que não há-de ser nada” 

(é o que o governo no meio de uma pandemia agora  diz - não há-de ser nada - e não é que todos acreditam?). As últimas linhas do livro, datadas de 2 de Outubro de 2019, são de um cepticismo extremo, mas também de uma lucidez impressionante: “E agora? A cambada de Tancos? Pátria, verdade, honra, serviço, que valor têm? Como se metem na ordem heróis do mar e nobre povo assim?”

Na nota "Vergonha na cara" de 10 de Agosto de 2016,  que não está no livro, mas está na Internet, escreve: "O país mais parecido com Portugal depois do 25 de Abril é o Portugal antes do 25 de Abril".

Homem de letras – fluentíssimo não só em português como em inglês e francês – Cutileiro, conhecia do seu percurso antropológico o método científico. Pouca gente sabe (mas sabe o António Araújo, que sabe tudo) que ele traduziu do inglês para português dois livros de bolso de divulgação científica que saíram na saudosa colecção Pelicano da Ulisseia: um, da autoria de um geólogo inglês que academicamente vingou na América, Frank H. T. Rhodes, é “A Evolução da Vida” e o outro,  de um psiquiatra escocês, Ian D. Sutie, é  “As origens do amor e do ódio”.

Além disso, Cutileiro foi tradutor literário: traduziu dois romances de um francês de origem russa e campeão da Segunda Grande Guerra, Romain Gary, que foi o único a ganhar dois prémios Goncourt (o regulamento impede-o, mas ele escreveu o segundo livro sob pseudónimo e guardou o segredo até à hora da morte, por ele escolhida já que se suicidou). Comprei outro dia, olhando apenas ao preço, numa  banca de alfarrabista o livro “Lady L” de Gary (Bertrand, 1966) e, sabendo agora da qualidade da tradução, vou lê-lo. Também escreveu poesia, mas deve-se ter arrependido, pois só publicou, em   jovem, dois livros. No entanto, o "Inventário" abre com um poema sobre a revolução de Abril, datado de 1977.

Cutileiro era um literato, mas conhecia e respeitava a ciência. Veja-se por exemplo o “In memoriam” que escreveu no expresso sobre Stephen Hawking. Fiquei contente por ele  me ter citado, era sinal que alguns dos escritos do rectângulo eram lidos em Bruxelas. Em 21 de Março de 2018, uma semana depois da morte de Hawking, Cutileiro escreveu no “Retrovisor” um texto que não está recolhido no “Inventário”. Mas está à mão de semear na Internet. O texto resume em poucas linhas a vastidão cósmica e a nossa pequenez nela. Quando fala do Big bang, o  tremendo clarão de há 14 mil milhões de anos, Cutileiro comenta: “Faz espécie que assim seja - mas faz ainda mais espécie que se saiba que assim é.” Faz lembrar Einstein: “A coisa mais incompreensível do universo é que ele seja compreensível”. Leia-se na Internet  o final desse texto, “Escala nossa”, para se perceber o que são os anos humanos (no spoilers).

Noutro texto cronologicamente anterior, com um título filosófico, “As coisas são o que são são. O que é ser? O que são coisas?” (p. 151-152 do “Inventário”, datada de 22 de Março de 2017), Cutileiro fala de uma questão de alcance cosmológico que colocou em Monsaraz (encoberta sob o nome de “Vila Velha”, para a distinguir de Reguengos, “Vila Nova”), onde fazia o trabalho de campo para a sua tese, a um velho alentejano:

“Quando perguntei ao tio Zé Peidinho, pastor reformado (de gado, não de almas) como é que acabava que o mundo tinha começado, analfabeto com melhor cabeça que muitos doutores que eu conheci  (…) respondeu: ‘Há-de ter começado como tudo: de pequenino.’ “

A singela mas expressiva expressão “há-de ter” revela uma sabedoria imensa para um pastor analfabeto de 82 anos (“era muita idade nesse tempo,” comenta José, que na época tinha 32). Depois de ouvir a gravação o ancião exclamou: “Olha que mánicazinha tã esperta!” Comenta o agora idoso Cutileiro: “Concordei, os dois embevecidos com aquela maravilha do progresso”. O trecho faz lembrar  “ACidade e as Serras”, em que a grafonola não para de grasnar: ”Quem não admirará os progressos deste século?”

A ideia científica de Big Bang, da criação a partir de um ponto, pode parecer ainda hoje fantástica. Mas não o era nos anos 60 para o compadre Peidinho (o corrector ortográfico quer que eu lhe chame Pedrinho, assim como não quer aceitar o “mánicazinha,” não percebe nada de alentejano).

Não sei se Cutileiro sabia (o António Araújo sabe, porque sabe tudo) que em Reguengos de Monsaraz nasceu, nos alvores do século XX, um físico, de seu nome António Gião, que se haveria de corresponder em 1946 com Einstein. Um estava em Reguengos e outro estava em Princeton, do outro lado do Atlântico, e, através do correio, se entenderam. Reguengos  não está tão afastado de Princeton como pode à primeira vista parecer.

Pois, neste universo muito antigo, a vida humana é efémera, pesem embora todos os progressos e todas as "mánicazinhas". Não acreditando em Deus (como seria de esperar de um alentejano de cepa). Cutileiro não tinha pejo em polvilhar as suas prosas com a palavra “Deus”. Também Einstein, que não acreditava num Deus pessoal, achava que Deus era uma excelente metáfora. “Deus o tenha em bom descanso”, disse José Cutileiro de amigos seus, incluindo Cotter, esse um amigo íntimo. Agora Cutileiro foi para a companhia de Cotter e dos outros infelizmente já finados. Se existir outra vida, José Cardoso Pires e companhia, devem lá estar muito divertidos a conversar, a beber e a escrever, tendo agora ganho companhia. Pois eu, que gosto de imitar os mestres, também digo: “que Deus o tenha em bom descanso.”

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