“ L’escargot, a au moins cet avantage sur l’habitant des villes, c’est qu’il ne sort pas de sa coquille…,” Paul Gadenne, La rue profonde, 1948.
Confinados (vocábulo esquecido que
agora voltou ao nosso quotidiano, juntamente com outros, e muitos, neologismos),
temos mais tempo para pensar, mais tempo para dedicar a outras actividades,
mais disponibilidade... Estas são ideias que se ouvem e se lêem nestas últimas,
longas semanas. Mas será mesmo assim? Há o tempo real e o tempo psicológico, o tempo
do calendário e o tempo meteorológico, o tempo espiritual, o tempo da criação,
o tempo material... Que tempo é este
que estamos a viver?
Um ditado medieval dizia Tempora mutantur et nos mutamur in
illis, os tempos mudam e nós mudamos com eles, e, nada se afigura mais
verdadeiro.
No entanto, o isolamento, a fuga ao
bulício citadino, o recolhimento a uma vida interior mais autêntica pode, também,
ser ocasião propícia à reflexão, à
imaginação, à criação artística, e disso nos chegam, todos os dias, inúmeros
exemplos, através da comunicação social e das modernas tecnologias.
Indo mais longe no tempo, já Ovídio,
exilado por ordem de Augusto, para um local longínquo, bem afastado da sua
convivência social e literária em Roma, escreveu, nessa zona inóspita e rude (“vivo
em plena barbárie”) muitos dos seus mais
belos poemas. Camões, da sua passagem pelo Oriente distante, deixou-nos poemas
imorredoiros, lembrando a pátria ausente.
Também o escritor francês Paul
Gadenne (1907-1956) (aqui), citado por Pascale Seys na sua crónica semanal, é um bom exemplo de como o
isolamento é propício ao recolhimento interior e à criação.
Professor, homem de letras, especialista
em estudos da obra de Proust, Paul Gadenne viu a sua carreira docente
interrompida, em 1933, pela tuberculose, que o obrigou a longos períodos de
internamento em sanatórios. Nesse afastamento forçado da vida social e da actividade
profissional, dedicou-se à reflexão e à
escrita, produzindo uma vasta obra que vai do romance à novela, à poesia e ao
teatro, bem como ensaios e crónicas.
Já nesse tempo, observando a agitação
da vida moderna, ele critica a incapacidade que as pessoas manifestam em
escapar ao turbilhão da vida social, dizendo que “a maior parte dos homens não
suporta nem a imobilidade, nem a espera”. Deste modo, o homem perde a sua
aptidão para reflectir sobre si próprio, sobre a vida e o universo, perde a
possibilidade de recriar o mundo que recebeu e de construir a sua própria vida
de forma espontânea.
“ A maior parte dos homens não suporta a imobilidade nem a espera. Não sabem parar de modo nenhum. Vivem mobilizados: mobilizados para a acção, para a agitação, para o prazer, para as honrarias. E contudo é apenas nos instantes em que suspende o seu gesto ou a sua palavra, ou a sua marcha em frente que o homem se sente impelido a tomar consciência de si mesmo” Paul Gadenne, Une grandeur impossible, Finitude, 2004.
Num discurso feito, em 1936, no liceu
de Gap, onde foi professor, chama a atenção para estes factos, criticando,
igualmente, a loucura que o homem moderno revela pela rua, pela vida social,
pela agitação, e termina avisando: “car la vie, mês chers amis, cela ne se
ramasse pas sur le pavé”, a vida não se
recolhe na calçada...
Voltando a Pascale Seys e à sua crónica do dia 6 deste mês de Maio (aqui) que ela dedica à “vida interior”:
“Há o que se vê e há o que não se vê, há, por um lado, o que nós disfarçamos, e, por outro, o que nós aceitamos mostrar de nós mesmos, das nossas falhas e das nossas dificuldades de viver. Há, portanto, o exterior e o interior, o de fora e as suas representações visíveis, e o de dentro e o seu lugar de recolhimento invisível. “
E, por isso, o exterior,
nestes tempos de confinamento, mostra aquilo que procuramos esconder, o passar
do tempo, que se manifesta, nos cabelos brancos, nas rugas, nos pêlos que
crescem, aspectos que estes dias trouxeram à vista, fechados que estamos nas
nossas casas. E lembra outros confinamentos do passado e os conceitos de beleza
desde a Antiguidade:
“Do tempo de Péricles, quando causava destruição em Atenas a peste que o iria arrastar consigo, o excesso de pêlos ultrajava gravemente um modelo estético ao mesmo tempo que uma concepção da vida humana. É por isso que os cabeleireiros, os barbeiros e os depiladores, nesse tempo, pertenciam à classe das profissões essenciais. Porque a cultura grega queria ser rica em humanidade, porque ela entendia exprimir, para a fazer valer, uma ruptura e um afastamento em relação à animalidade, os homens, tal como as mulheres tinham, necessariamente, de ser imberbes, o que atestam, notoriamente o detalhe dos kouroi e das kourai sobre os frisos do Pártenon e em qualquer outro exemplar da estatuária grega. “
No entanto, não
devemos esquecer que:
“os cabelos, as barbas, as rugas e os pêlos são da ordem da aparência, que não pode alterar a vida invisível do “de dentro”. Alguns adeptos do “de dentro” escolheram, por outro lado, deliberadamente, uma vida interior. É o caso de Proust, sabe-se, que adoptou uma vida auto-confinada no seu quarto, Beethoven que estava enclausurado na sua surdez, Zelda Fitzgerald, Virginia Woolf, Rothko e Camille Claudel que estavam encerradas no seu desgosto ou na sua loucura, enquanto Héloïse e a Princesa de Clèves se retiraram voluntariamente para um convento para não terem de morrer de um amor louco. Daqui resulta que as grandes obras, que resistem ao tempo, são inseparáveis do risco assumido na escolha da interioridade. Na sua Carta ao General X, Saint Exupéry declarava, num lirismo desesperado, que era necessário “absolutamente falar aos homens. Era necessário, implorava ele, que o mundo devolvesse aos homens um “significado espiritual” e fizesse cair sobre eles alguma coisa, insistia ele, que se assemelhasse ao canto gregoriano.”
“É que o cuidado que dispensamos à vida interior pode ser a fonte de uma revolução, de grandes subversões, de focos de resistência que levam a compreender até que ponto somos livres.”
E, continua,
exemplificando:
“Em 11 de Julho de 1936, num discurso célebre, o escritor Paul Gadenne convidava, também ele, os homens a não perderem o sentido da interioridade, quando a maior parte de nós vivemos mobilizados, incapazes de interromper as nossos acções e sempre engolidos por uma agitação incessante.”“O mundo, ousava ele dizer, pertence àqueles que sabem manter-se imóveis.”E em apoio ao seu convite ao silêncio e à resistência interior, ele evocava a correspondência de Dostoiëvski que, lembrando os seus anos na prisão, tinha resumido numa frase magnífica dirigida ao seu irmão o que esses quatro anos de reclusão e de privação lhe tinham sugerido:“Irmão, há muitas almas nobres no mundo”
Mas, tempus fugit, e já o nosso velho
Horácio avisava:
Enquanto falamos, já invejoso terá fugido o tempo;colhe o dia, confiando o menos possível no amanhã.Horácio, Odes, I, 11 (trad. de Pedro Braga Falcão, ed. Cotovia)
Ou, nos versos do nosso Pessoa:
Perene flui a interminável horaQue nos confessa nulos. No mesmo haustoEm que vivemos, morreremos. ColheO dia, porque és ele.Ricardo Reis
Resta-nos, pois, aproveitar estes
tempos da melhor forma possível, em reflexão, mas também em atenção aos outros,
ao mundo e à sociedade que nos rodeia e lembrando a sabedoria dos provérbios
populares: com tempo e esperança tudo se alcança, mas sem esquecer que nada se faz sem tempo, que com tempo tudo se cura e nada melhor do
que o trabalho pois, para além do mais, o trabalho ajuda a passar o tempo... e, como
o tempo é o relógio da vida, demos valor ao nosso tempo, à forma como o
passamos para que a nossa vida tenha sentido e o relógio não deixe de dar-nos
sempre as horas certas.
3 comentários:
A arte, qualquer que seja, é incompatível com a pressa. Até a arte de relojoeiro. Encontrar o ritmo certo, o enleio perfeito do tempo, do corpo e da alma (sem concessões religiosas), talvez por ser um horizonte, nos apresse a chegar, mas esta resposta é contraproducente.
Os nossos tempos elegeram o maior inimigo das artes, a velocidade, como vector determinante, de tal modo que o que quer que seja que não seja veloz, passa ao lado, passe a expressão, não merece que se "perca" tempo.
É assim, mormente, desde que o tempo passou a significar, ou a ser considerado, e não apenas a valer, materialmente, dinheiro "Time is money".
E a velocidade, a adrenalina, a vertigem, viciaram o nosso sistema nervoso e deparamos com muitas pessoas a desabafar que não conseguem imaginar a vida sem elas, do mesmo jeito que ouvimos fumadores inveterados ou alcoólicos a queixarem-se da sua escravidão.
Até o pensamento, se não for rápido, que fosse.
Quem espera por um pensamento ou uma ideia?
Se observarmos, daremos conta de que um número significativo de pessoas estão contaminadas por uma pressa na forma de falar e de fazer as coisas, que também pode ser observada na forma como andam, ou estão sentadas, sem disso terem consciência, como se estivessem sempre atrasadas para algum evento obrigatório e não pudessem perder o transporte que acabou de passar, como se o presente e o lugar onde estão fossem uma espécie de transitório e não de objetivo e destino.
No fundo, receiam pensar, e mais ainda admitir, que não têm objectivos, nem destino (no sentido de lugar aonde desejam chegar).
Tantas pessoas em fuga. Sem saber para onde. A fuga é uma realidade. É um drama. E a fuga adopta imensas estratégias e variantes. Não é apenas um problema de ansiedade e de sobrevivência. É um modo de estar e de comunicar, de pensar e de sentir e, se não é um modo de viajar, quantas vezes viajar não é um modo de fuga?!
A pressa, a pressão, a velocidade, a vertigem, a adrenalina...
Mais do que um hábito, para muitos converteu-se numa disciplina, numa cultura de empresa e está institucionalizada no capitalismo, como se a nossa função natural fosse reciclar, como as minhocas, e o nosso papel social não passasse de uma sublimação que impede concluir facilmente que essa é uma realidade, que alguns acharão triste e outros, nem sequer pensam se é uma fatalidade, ou se o sentido da vida é esse, render-se-lhe.
Tudo tem de estar preparado e embalado. Pré-fabricado.
Com o "tempo dinheiro", também o espaço sofreu uma incrível contracção e tem o seu preço e é cada vez mais exclusivo e excludente. Até os espaços públicos, não são espaços onde se possa morar, como se fossem nossos, meu, teu...
De resto, tudo se agravou mais para as artes e as contemplações.
É muito difícil, para não dizer impossível, ser deus, mais humano e independente e livre do que um Deus, parar no centro dos furacões, não aceitar ordens de ninguém e, soberbamente, não dar ordens a ninguém.
Não trabalhar para quem não precisa.
As plantas, essas, que parece que não crescem e não podem voar, senão quando um vendaval as arranca e as transporta para algum chão em que voltem a criar raízes, que pensarão dos pássaros e do sol e da lua?...
Quem disse que uma vida não se mede em dias, meses ou anos, mas em quantidade de moeda equivalente ao tempo "gasto" para a sustentar, que é considerado "perdido" se não der retorno?
É assim, tanto com a vida dos bichos como com a vida das pessoas?
Criar riqueza hoje tem um significado muito retorcido. Um incendiário pode ser um criador de riqueza. E um consumidor de combustíveis também, assim como um vírus mortífero.
Mas, e o amor? De que riqueza é o amor?
O amor? Não ouviu dizer? É um problema químico. Uma espécie de adrenalina, de vertigem, como que uma estrutura molecular que liga dois hospedeiros de forma doentia e lhes provoca necroses. O menos nefasto é o fraterno, parental ou amizade mas, mesmo assim, tem as suas disfunções, torpores, afasias e epilepsias.
Tal com a Madre Teresa não gostava de pobres, mas da pobreza, o ser humano não gosta de amar, mas do amor. É pela riqueza do ideal que se desce à pobreza do real. Não há quem sobreviva a este tropeção no abismo.
Acredito no amor a um bicho: incondicional, limpo, inocente, apaixonado, recíproco. Perfeito. Nem tudo está perdido...
Boa reflexão.
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