quarta-feira, 27 de maio de 2020

MEU PREFÁCIO A "NEUROMITOS" DE ALEXANDRE CASTRO CALDAS E JOANA RATO

 

NEUROMITOS O CONFRONTO DA INTUIÇÃO COM A REALIDADE 

(prefácio a "Neuromitos. Ou o que realmente sabemos sobre como funciona o nosso cérebro", que acaba de sair na Contraponto)

  Vivemos num tempo de proliferação acelerada da informação, usando meios que a ciência e a tecnologia colocaram à disposição de todos: já havia a imprensa, a rádio, a televisão, e agora há também os computadores e a Internet, todos eles servidos por meios de comunicação extremamente rápida, que podem ser os cabos ópticos que atravessam os oceanos ou o próprio espaço vazio, quando se usam frequências de microondas e de rádio. O mundo é hoje uma aldeia global. 

 Tudo isto poderia ser uma possibilidade fantástica de enriquecimento da humanidade, diminuindo até as gritantes desigualdades entre povos e países não se desse o facto de que muita informação que circula não tem fundamento ou suficiente fundamento. Eu diria que é a maior parte. Vivemos na época das  notícias falsas (fake news), que por serem falsas nem sequer deviam merecer o nome de notícias, e da “verdade alternativa” (alternative truth),” um termo enganador pois a verdade não tem qualquer alternativa. Há quem diga que vivemos num tempo de pós-verdade (post-truth), um mundo tão estranho quanto perigoso em que a distinção entre a verdade e a mentira já não interessa. Não interessa, em particular, a alguns dirigentes políticos.

 Sempre houve informação errada a circular, usando meios técnicos primitivos.  Muitas vezes o erro devia-se a ignorância, como, por exemplo, no domínio das neurociências, pensar que a gaguez se deve a um susto. Mas o fenómeno comunicativo actualmente mais relevante, para além da escala enorme a que se dá a difusão informativa, é o facto de qualquer pessoa poder emitir qualquer tipo de mensagens. Qualquer um de nós diz o que quer para quem o queira ouvir, aqui ou noutro sítio, agora ou mais logo. Como bem mostram as redes sociais, que rapidamente ganharam um vulto inesperado, os intermediários deixaram de ser precisos. 

Acresce o facto – e os neurocientistas sabem bem isso – de o nosso cérebro ter uma avidez para o que é, ou parece ser, singular e maravilhoso, ou mesmo simplesmente curioso e engraçado. Uma coisa mirabolante tem muito mais procura do que uma coisa normal: neste livro os autores comparam o número de aparições na Internet do termo “unicórnio” – que designa um animal mitológico -  e ornitorrinco – um animal estranho mas real: acontece que a primeira é cerca de 20 vezes maior. Se alguém experimentar colocar uma notícia falsa – sei lá, que Madona teve um filho de um extraterrestre, o que é evidentemente falso, por não existirem extraterrestres – é fácil verificar que essa notícia se propaga mais rapidamente do que outra qualquer que seja verdadeira – como, por exemplo, que Madona teve um filho que marcou dois golos num jogo pelo Benfica, o que, por estranho que possa parecer, é absolutamente verdadeira. O algoritmo do Google ao colocar mais acima no ecrã e, portanto, mais apetecíveis ao olho sítios mais procurados favorece a difusão de erros.

Como o uso da Internet ilustra, se é certo que o nosso cérebro é um instrumento de racionalidade, não é menos certo que ele é capaz das maiores irracionalidades. Procuramos padrões reconhecíveis onde eles não estão. Como disse o filósofo escocês David Hume, vemos “caras na Lua e exércitos nas nuvens”. Construímos e divulgamos histórias e acreditamos sem discutir em histórias que nos são contadas. Desenvolvemos e interiorizamos mitos, histórias fabulosas, por vezes com requintes de magia. Os seres humanos têm uma clara propensão para a superstição e a magia.

A ciência é o mais bem sucedido empreendimento do cérebro humano, pois nos tem permitido desde a Revolução Científica, nos séculos XVI e XVII, viver mais e melhor. A ciência é bem mais do que um corpo de conhecimentos, pois este está em constante  mutação. É um método, que é uma fonte constante de conhecimentos. Funda-se na observação, na experimentação e no raciocínio lógico. É validado através da revisão pelos pares, isto é, a vigilância activa da comunidade científica.  O método permite ir para além das aparências, do senso comum. Permite superar mitos. Permite ir para além  da superstição e da magia.

No livro que o leitor tem entre mãos – cujo título Neuromitos é um curioso neologismo que o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa não contempla, mas que já se encontra profusamente na Internet -  Joana Rato e Alexandre Castro Caldas, respectivamente psicóloga educativa e professor de Neurologia na Universidade Católica Portuguesa que já tinham sido coautores de um livro com outro título curioso, Quando o cérebro do seu filho vai à escola (Verso de Capa, 2017), procuram desmontar algumas informações falsas sobre o cérebro humano que por aí circulam. A obra, escrita com a mestria de quem domina os assuntos e de quem tem notável habilidade para os comunicar, lê-se muito bem, podendo ser útil a todas as pessoas curiosas a respeito do funcionamento do nosso cérebro. Desnecessário será lembrar que, embora nem sempre o usemos bem, todos temos um. Nas últimas décadas, avanços extraordinários das Neurociências – uma área de ponta da ciência contemporânea, pois o cérebro é uma das “últimas fronteiras” – foi possível validar um corpo de conhecimentos que desmente muitas ideias feitas que grassam socialmente, que são em muitos casos histórias inventadas,  que com propriedade podem ser chamadas “mitos” (o referido Dicionário dá como um dos significados de mito  “formulação do espírito sem fundamento; o que apenas existe na imaginação = ficção, utopia”).

O nosso cérebro engana-se a respeito de várias coisas e também a respeito dele próprio. Há erros famosos da história da ciência, que são absolutamente normais  dados os recursos limitados de épocas recuadas– como os de Aristóteles, René Descartes, Leonardo da Vinci  e Franz Joseph Gall – e há outros com origem mais recente, que ganharam rapidamente raízes populares  - por exemplo, o “efeito Mozart”, segundo o qual a inteligência de um bebé melhora quando ele ouve música do famoso compositor austríaco. A credibilidade deste mito foi tal que um governador do estado americano da Geórgia propôs que se oferecesse um disco de música clássica a todas as grávidas georgianas. A proposta não passou no crivo do orçamento estadual que é feito pelo congresso local, mas o governador obrigou os legisladores ouvir uma peça de música, perguntando-lhes se não se sentiam mais inteligentes após aa audição… Este caso mostra como a demagogia e a retórica política podem invocar a ciência para enganar os cidadãos. Os políticos não perdem a ocasião para obter ganhos de popularidade.

 Se há mitos velhos e relhos sobre o funcionamento do cérebro como aquele que diz que “usamos apenas 10% do nosso cérebro” ou que o “canhotismo é um defeito”, não valendo a pena gastar muita tinta com eles, há outros mais sofisticados, por lhes ter sido atribuída uma densa fundamentação científica- como aquele a que os autores dedicam todo um capítulo – a tese do psicólogo cognitivo norte-americano Howard Gardner, autor entre outras obras de A Nova Ciência da Mente (Relógio d´Água, 2002), segundo a qual existem dez tipos de inteligência humana, que vão da inteligência linguística à inteligência existencial, seja lá o que isto for, passando pela inteligência lógico-matemática e pela inteligência espiritual, que também deve ser de difícil definição. Os dois autores nacionais discutem no livro que o autor tem entre mãos essa tese das inteligências múltiplas, que é transmitida em muitas das nossas escolas superiores e, pior do que isso, tem servido de base à formação de professores e a reformas educativas. De facto,revisões críticas recentes fundadas nas neurociências não têm dado a razão a Gardner, pelo que a sua teoria é considerada em círculos cada vez maiores uma “pseudo-ciência”, quer dizer, uma teoria que tem todo o aspecto de ser científica, mas que não resiste a testes empíricos bem conduzidos. No entanto, o autor norte-americano, laureado internacionalmente em diversas ocasiões, não reconhece os erros que lhe apontam, conforme assinalam Joana Rato me Alexandre Castro Caldas. Reclama, em particular, que uma coisa são as suas ideias e outra é a sua aplicação na Pedagogia. Quem procurar por “inteligências múltiplas” na Internet, encontra na Wikipedia  um resumo dessas críticas, nas várias línguas ocidentais, mas não na entrada em língua portuguesa. Na minha opinião, a pedagogia e a política de educação em Portugal – e também no Brasil - teriam muito a ganhar se passassem a basear-se em provas científicas mais sólidas, designadamente nos contributos das modernas neurociências. Recomenda-se este livro a todos os detentores de cérebros, não só pela apresentação  resumida e clara do exemplo da teoria das inteligências múltiplas de Gardner, mas também por outras relativas a muitos outros exemplos (como “jogos violentos não têm efeito sobre o comportamento”, “as pessoas podem aprender enquanto dormem”,  ou “os tumores cerebrais são consequência do uso excessivo do telemóvel”).  Recomendo, em particular, este livro a professores e, mais em geral, a educadores, que são todos os pais e encarregados de educação. E, já agora, embora sejam menos, a políticos, a ver se aprendem alguma coisa, passando a acreditar mais na ciência do que em mitos. É um livro de cultura científica – o único antídoto contra a ignorância e a mitologia - para todos.

Carlos Fiolhais

Professor de Física da Universidade de Coimbra e divulgador científico

3 comentários:

10% de cérebro disse...

Penso que ninguém, atualmente, coloca em questão a evidência científica e os seus avanços benéficos em prol da humanidade. Toda a ciência, no seu percurso de descoberta sofre de crises de disfonia, afonia ou gaguez, graças a Deus, com caráter reacional e passageiro. A neurose obsessiva da descoberta, a angústia da tentativa e erro, a estafa do caminho, muitas vezes solitário, apesar de, no fim, se ouvirem sempre as palmas de quem lá não esteve, cumprindo a tal validação dos pares e da comunidade científica, por vezes, leva a que se lute, de forma mágica, contra pesadelos e insónias. Não me importo do braço esticado, branquinho de dextralidade, mas não nego a subversão vermelha do canhotismo ou até o nada transparente do ambidextrismo que torna o mundo simétrico, perfeito e naif. Que seria de nós sem a magia desta santíssima trindade? Sem um Fernando Pessoa psicótico, em espasmos cerebrais com a caneta nas mãos a grafar os impulsos elétricos do seu patológico psiquismo... Sem a magia da pincelada ideativa do louco sempre vazio de tela e do sonho onírico da estátua imóvel e da angústia vital do coro que canta à frente, mas subjugado pela orquestra vagarosa e difícil de um qualquer “monodeísta”? E é magia olhar as estrelas numa subnutrição de alma, na saudade de não se sabe bem o quê, exibida em exuberância verbal de palavras que rimam omnipotentes de exotismo por fome e frio... E para alegria do professor Fiolhais, a coerência do delírio pode ser estudada cientificamente e cientificamente analisada como as lágrimas da preta ou o desenho esquizofrénico do gato de Louis Wain, ou a ronda dos prisioneiros de van Gogh que não aguentou a constatação de que a eternidade é não haver para onde ir... Quer seria de nós sem a magia, sem a neurose e sem a capacidade de acreditar para além da ciência?

Socorro, a minha mulher tem um blog disse...

10% de cérebro, toma lá mais 10%! ☺️

Carlos Ricardo Soares disse...

A neurose obsessiva da descoberta, a angústia da tentativa e erro, a estafa do caminho, muitas vezes solitário, apesar de, no fim, se ouvirem sempre as palmas de quem lá não esteve, cumprindo a tal validação dos pares e da comunidade científica, por vezes, leva a que se lute, de forma mágica, contra pesadelos e insónias.<\i>
Fiquei a pensar. E penso que todos "os prémios" presentes são envenenados. E venenos para quem os não recebendo os tome.

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