Saiu há dias em português, quase ao mesmo tempo que a edição original, o livro “Cosmos. Mundos possíveis”, de Ann Druyan (National Geographic e Gradiva, 2020), numa altura em que está a passar a série televisiva, com 13 episódios, com o mesmo título no National Geographic Channel. Druyan, viúva de Carl Sagan, tinha ajudado a escrever a série “Cosmos” original, transmitida na PBS – Public Braoadcasting Service também com 13 episódios, que teve no original o subtítulo “Uma viagem pessoal.” Também escreveu e produziu a sequela, “Cosmos. Uma Odisseia no Espaço-Tempo”, ainda com 13 episódios, em 2014 (34 anos depois da primeira série e 18 anos após a morte de Sagan!), que passou na Fox e na National Geographic, apresentada por Neil deGrasse Tyson, o director do Planetário Hayden no Museu de História Natural de Nova Iorque, que conheceu Sagan em adolescente. Não houve livro dessa vez. Na segunda sequela (40 anos depois da primeira série e 24 anos após a morte de Sagan!) “Cosmos. Mundos Possíveis” volta a ser apresentado por DeGrasse Tyson, mas, tal como no “Cosmos” original, há um livro que acompanha a série. E o livro é, todo ele, de Ann.
Ann Druyan (n. 1949), que casou com Carl Sagan (1934-1996 )
em 1981, um ano após a estreia de “Cosmos”, tem sido a figura de maior destaque na
salvaguarda da memória do grande astrofísico e divulgador de ciência
norte-americano. Os dois conheceram-se em 1974 em Nova Iorque no escritório de
uma produtora novaiorquina. Apaixonaram-se três anos depois, em 1977, quando trabalhavam
no projecto do disco a bordo das duas sondas Voyager, um disco que devia deixar
uma mensagem para eventuais extraterrestres. Ann já contou como foi: ela
tinha descoberto uma música chinesa antiga para incluir no disco, telefonou para
Carl que estava no Arizona para dar uma palestra e parece que se deu um coup
de foudre. Ali mesmo, à distância. Mesmo sem uma date tradicional, ter-se-ão nessa altura comprometido. Após o seu trabalho conjunto na série “Cosmos”, que alcançou um tremendo impacto mediático, não
demoraram a casar.
Sagan divorciou-se em 1981 da sua segunda mulher, Linda Salzman (n. 1940),
uma escritora e artista (foi, com Ann Druyan, coautora do livro “Murmurs of the Earth,” traduzido em português do Brasil, uma obra que apresenta os sons
do planeta Terra enviados para o espaço). A primeira mulher de Sagan tinha sido
uma cientista, Lynn Margulis (1938-2011), proponente do conceito de simbiose na
evolução e autora de livros publicados em português (“Microcosmos” e “As Origens do Sexo”, os dois nas Edições 70). Sagan teve teve dois filhos de Margulis, cujo nome de família era
Alexander (Margulis foi o nome do segundo marido): Dorion (que é escritor de
ciência, quem sai aos seus não degenera) e Jeremy. T eve um filho de Linda Salzman, de seu nome Nick (autor de livros de ficção científica; Sagan escreveu um livro, “Contacto,” desse género). E teve, finalmente, dois filhos de Druyan, Alexandra (“Sasha”, que já escreveu com a mãe um
livro contando histórias do pai) e Samuel (“Sam”, que sofreu uma hemorragia
cerebral, contada no cap. V de “Cosmos. Mundos possíveis”).
Desde a morte do seu marido, apanhado por um cancro raro, em
20 de Dezembro de 1996 (quando só tinha 62 anos), que Druyan tem feito tudo
para continuar a obra de Sagan. Natural de Nova Iorque, filha dos proprietários
de uma fábrica de lãs, Ann não terminou uma educação formal num college.
É, por isso, uma drop-out. Ela já
contou que, antes de conhecer Sagan, teve uma relação algo difícil com a
ciência, acreditando nalgumas coisas inacreditáveis (como a vinda de astronautas
extraterrestres à Terra). A vida conjunta com Sagan tornou-a uma comunicadora
de ciência profissional. Tyson que me desculpe, mas ela é talvez a melhor herdeira
de Sagan, apesar de não ter um background científico formal. Tem evidente
talento para a escrita, sabe contar muito bem histórias, sabe ligar as histórias com
imagens.
Em co-autoria com Sagan, Druyan escreveu vários livros “Cometa”
(bela edição ilustrada da Gradiva, 1986, julgo que está esgotado), “Sombras de
antepassados esquecidos: em busca do que somos” (Gradiva, 1996, está acessível)
e organizou “As variedades da experiência científica (Gradiva, 2007). Fez a introdução para a edição portuguesa de “Cosmos”
ilustrada (Gradiva, 2001) e também para
“As ligações cósmicas. Uma perspectiva extraterrestre” (Gradiva, 2001),
co-escreveu com Sagan quatro capítulos de “Um mundo infestado de demónios. A
ciência como uma vela na escuridão” (Gradiva, 1997) e escreveu o epílogo de “Biliões e Biliões. Pensamentos
sobre a vida e a morte no limiar do milénio,” (Gradiva, 1998) e um capítulo do
livro de homenagem “O Universo de Carl Sagan” (Gradiva, 1998). Portanto, ela como minguém conhece o
estilo inigualável de Sagan. O dela é uma boa aproximação: Second best,
na impossibilidade de the best. Em 2000 Druyan fundou os Estúdios Cosmos, cujo
nome é elucidativo sobre a intenção: continuar a série que deu fama global a Sagan.
Co-escreveu e coproduziu o filme “Contacto”, que teve como guião o romance de
ficção científica de Sagan, que ficou filho-único. O filme, com Jodie Foster no
principal papel, já não pôde ser visto por Sagan.
A história de amor entre Carl e Ann é muito intensa e julgo
que está a aguardar tratamento cinematográfico, na sequência aliás da história
de amor entre Stephen Hawking e a sua primeira
mulher Jane (“Teoria de tudo,” filme de 2014). O livro “Cosmos” é dedicado a Ann, com
uma formulação muito bonita: “na vastidão do espaço e na imensidade do tempo, é
minha alegria e privilégio partilhar um planeta e uma época com a Annie." Mas o símbolo maior (literalmente) do
amor dos dois é a designação de um par asteróides em honra de Carl (2708 Sagan, descoberto em 1982) e de Ann (4790
Druyan, descoberto em 1987), que estão em
órbitas “de anel de casamento,” na cintura
de asteroides, entre a Terra e Marte.
O
livro “Cosmos – Mundos possíveis” – tem uma bela execução gráfica que causa
forte impacto à vista logo que se folheia. Pude acompanhar a sua produção como revisor
científico (infelizmente, mea culpa, deixei passar, nem sei como, uma
gralha aborrecida no calendário cósmico inicial: Onde está “1 semana = 265
mil milhões de anos” deve ser “1 semana
= 265 milhões de anos” e onde está “1 dia = 37,86 mil milhões de anos” deve ser
“1 dia = 37,86 milhões de anos”).
O resto julgo estar bem: encontrei gralhas no original norte-americano, por exemplo
a temperatura das nuvens mais frias do sistema solar, que estão em Úrano, um “gigante
de gelo”: abaixo de 200 graus Celsius negativos. Se alguém souber de mais
gralhas que me diga, mas conto não receber mensagens.
O
prólogo começa com a Feira Mundial de
Nova Iorque de 1939 que Sagan visitou
quando era miúdo (tinha cinco anos) e em
cuja inauguração Einstein desempenhou papel proeminente ao fazer um discurso
laudatório da ciência. Para se ver a qualidade do pensamento de Ann e da sua
escrita leia-se este trecho do prólogo,
antes dos 13 capítulos, cada um associado a um episódio (p. 27):
“(…) A ciência ama a Natureza. Esta ausência de destino
final, uma verdade absoluta, é o que faz da ciência o método certo de uma busca
sagrada. É uma lição de humildade sem fim. A vastidão do Universo – e do amor,
aquilo que torna essa vastidão suportável - está fora do alcance dos
arrogantes. O cosmos só aceita de forma plena os que ouvem com atenção a voz
íntima que lhes sussurra que podem não ter razão. A realidade tem de importar
mais que aquilo em que queremos acreditar.”
A leitura é facilitada pela boa tradução de Isabel Pedrome,
cujo nome merece estar na capa.
O livro, com a
espessura de 420 páginas, tem um índice remissivo, ao contrário do que infelizmente
hoje é norma. Não está no índice remissivo,
mas Portugal aparece uma vez quando se fala dos judeus de Amesterdão, entre os
quais se inclui Espinosa. E há uma citação de Fernando Pessoa (de facto, devia
vir Alberto Caeiro, pois é Caeiro puro, oops outra gralha, mas não há
mais nenhuma), a abrir um dos capítulos,
o onze (“A graça efémera da zona habitável”), que não está no original:
“Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no
mundo.
Gostava agora de poder julgar que
a Primavera é gente
Para poder supor que ela
choraria,
Vendo que perdera o seu único
amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma
cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as
folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas
verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete,
porque tudo é real.”
Com Caeiro, o livro em português ainda ficou melhor do que o original.
Os capítulos do livro de Ann incluem novidades científicas que não estão porque não podiam estar no “Cosmos” original: por exemplo, a preocupação com as alterações climáticas, a descoberta das ondas gravitacionais originadas pela espectacular junção de dois buracos negros, os exoplanetas, alguns dos quais poderão albergar vida, os progressos das neurociências (no capítulo V, sobre o cérebro, aparece a história clínica do filho Sam; o médico colombiano que o tratou quando se apercebeu de quem era filho disse-lhe que tinha seguido uma carreira científica por causa do pai, um dos seus heróis de juventude!), etc. Não devo roubar o prazer da novidade na leitura. As histórias são atraentes, assim como as grandes metáforas, como a da comparação das navegações de povos primitivos no oceano Pacífico, fixando-se em ilhas longínquas, com as futuras viagens interestelares com que Ann sonha.
Os capítulos do livro de Ann incluem novidades científicas que não estão porque não podiam estar no “Cosmos” original: por exemplo, a preocupação com as alterações climáticas, a descoberta das ondas gravitacionais originadas pela espectacular junção de dois buracos negros, os exoplanetas, alguns dos quais poderão albergar vida, os progressos das neurociências (no capítulo V, sobre o cérebro, aparece a história clínica do filho Sam; o médico colombiano que o tratou quando se apercebeu de quem era filho disse-lhe que tinha seguido uma carreira científica por causa do pai, um dos seus heróis de juventude!), etc. Não devo roubar o prazer da novidade na leitura. As histórias são atraentes, assim como as grandes metáforas, como a da comparação das navegações de povos primitivos no oceano Pacífico, fixando-se em ilhas longínquas, com as futuras viagens interestelares com que Ann sonha.
A autora deixa algumas notas pessoais. Fala da sua adolescência, que classifica
como irresponsável. Comenta do seguinte modo o seu namoro
com Sagan (o livro exibe duas fotografias do casal, uma durante a produção de
Cosmos, antes do casamento, e outra mais tardia, quando Ann fez 40 anos):
“Quando nos apaixonámos para mim foi como descobrir um mundo
novo… Um mundo que eu tivera esperança de existir, mas nunca tivera
oportunidade de ver. Neste novo mundo, a
realidade excedia a fantasia em todos os
sentidos. Acima de tudo o que mais importava era o que era verdadeiro”. Acrescenta:
“Dediquei o resto da minha vida a continuar o trabalho que tínhamos feito
juntos”. Foi, entre os dois, um admirável “Contacto”.
Tenho uma história pessoal passada com Ann Druyan. Carl Sagan
desejava ter vindo a Portugal, onde as suas obras, graças não só ao autor mas também
ao editor Guilherme Valente, se venderam muito bem, mas a doença impediu-o.
Veio, depois da morte, Ann sua substituição. Depois da best, a second
best. Houve uma homenagem a Sagan na Universidade de Aveiro, onde eu disse
algumas palavras. No fim, como ela não sabia português, apressei-me a
traduzir-lhe o que tinha dito. Ela respondeu-me: “I got everything”. Não é que
ela tinha mesmo apanhado pelo tom de voz e pela linguagem gestual o que eu que eu
disse? É um dos feitos em comunicação de que hoje mais me posso orgulhar.
Ann conta alguns episódios da história da ciência de um modo
que seduz, mostrando que a ciência é humana, podendo nela haver tanto comédia
como tragédia. Uma das histórias que preenche todo um capítulo (o quarto) diz
respeito ao cientista agrário soviético Nikolai Vavilov, uma das muitas vítimas do regime
de Estaline, que morreu num campo de trabalhos forçados. No lugar de direcção
científica que devia ser dele alcandorou-se um dos maiores charlatães científicos
de todos os tempos – Trofim Lysenko, o
qual, ao recusar as ideias darwinistas, foi
o responsável pela morte de milhões de cidadãos da União Soviética. Tal como o
partido educava o povo, ele propunha “educar” as sementes, preparando-as para o
Inverno, através do arrefecimento prévio. Mas elas, encolhidas logo à partida, não
germinavam. E, por falta de colheitas, as pessoas não tinham pão para comer. A
recusa da ciência pode significar a morte.
Ann também escreve sobre
um tema infelizmente muito, os vírus. Uma imagem do vírus da raiva ocupa toda a p. 75. Escreve a autora: “Os micro-organismos
ligados as doenças são caçadores diabolicamente hábeis – capazes de derrotar os
seus hospedeiros depois de os terem explorado como transmissores da doença.” Apesar
do advérbio “diabolicamente,” não são uma obra do demónio, como se julgava
antigamente. São vírus, um parasita à
procura de abrigo para sobreviver, e apenas isso. E também neste caso dos vírus
a recusa da ciência pode significar a morte, como está a acontecer nos países
de Trump e Bolsonaro.
Tal como o “Cosmos” original, este “Cosmos. Mundos possíveis”
é o guião de uma série televisiva. E, tal como na série de Sagan, o livro e o filme
valiam por si, reforçando-se no seu conjunto, também agora o livro e o filme valem
por si, nenhum prejudicando o outro, antes pelo contrário. O leitor pode ler o livro
ou ver o filme, ou as duas coisas. Se viu o filme vai gostar de ler o livro e,
se leu o livro, vai gostar de ver o filme. Nestes tempos de crise do livro – o livro
saiu em Portugal em plena pandemia, com as livrarias fechadas - o impresso e o audiovisual
não têm que ser inimigos. Ann é não só porta-voz de Carl, mas uma voz ela
própria, no livro e no filme.
Consta que Ann Druyan já está a pensar na terceira sequela. Mesmo
que o consiga faltar-lhe-á ainda muito, nesta enorme obra de divulgação das
estrelas e dos filhos delas (não somos mais do que “poeira das estrelas”), para
chegar às nove sequelas de “A Guerra das Estrelas”, de George Lucas, que começou
em 1977, quando Ann e Carl se apaixonaram, e o episódio IX e último, que só chegou ao grande ecrã em
2019. Foram, no total, 42 anos de “Guerra das Estrelas”: eu vi o primeiro episódio
quando era estudante de Física e vi no ano passado o último. Eu li e vi o “Cosmos”
original quando era estudante de doutoramento em 1980, li e vi o “Cosmos“ de Ann agora e conto
estar cá, provavelmente já reformado, para ver a terceira continuação. Sagan,
graças a Ann, continua a brilhar. E ela própria brilha.
- Ann Druyan. “Cosmos. Mundos Possíveis”. Lisboa: National Geographic e Gradiva, 2020
2 comentários:
Não lhe liguem. Foi maltratado no jardim de infância.
Caro professor Carlos Fiolhais, estou agora a ler o último livro de Ann Druyan e estou encantado por através dele, viajar com ela, na companhia de Carlos Sagan na imensidão do Universo e dos Cosmos, a partir deste grãozinho de areia, aqui num cantinho da Via láctea, no Planeta Terra, a cerca de 8 minutos e tal de luz do Sol, mas muito distante da Estrela Mais Próxima a 4,4 anos-luz, Alpha Centauro e apesar de todo o saber e conhecimento conseguidos , a caminho da IA, nestas últimas milionésimas de segundo de fim de ano, considerado à escala cósmica, não passamos ainda de ignorantes militantes, já que nesta escala, só surgimos às 23H53 minutos, de Dezembro. como Homo Sapiens. Só recentemente, após 13 mil e 800 milhões de anos, foram criadas as condições para que pudéssemos pensar e criar alguma consciência, daquilo que parecemos ser......... abraço, grande professor Carlos Fiolhais, eu fui o amigo que enviei um texto, da minha autoria, sobre a Teoria da Relatividade de Einstein, que sempre me interessou e que mereceu a sua prestimosa atenção e correção. Apesar de eng. civil, gosto muito de física relacionada com o Universo e Teoria quântica.
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