segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Filosofia e história da Ciência em Portugal no século XX

Recensão do livro “Filosofia e História da Ciência em Portugal no Século XX” por António José F. Leonardo:

A obra “Filosofia e História da Ciência em Portugal no Século XX”, de Augusto Fitas, Marcial Rodrigues e Maria de Fátima Nunes, é, de facto, “uma análise serena e rigorosa” que fornece ao leitor “as ferramentas necessárias a um percurso crítico e esclarecido, através das posições assumidas pelos pensadores e cientistas portugueses do século XX, em face dos grandes debates europeus.” É com estas palavras que Pedro Calafate, do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, caracteriza a obra no seu prefácio.

Da autoria de uma equipa que inclui uma historiadora, um filósofo e um físico, esta reunião de competências, metodologias e saberes confere à visão, que é partilhada com o leitor, um carácter abrangente das principais ideias, polémicas e discussões que sustentaram a evolução da ciência e da epistemologia no nosso país no século passado.

Trata-se de uma segunda edição, revista e modificada, de “A Filosofia da Ciência em Portugal no século XX”, que integrou a colecção “História do Pensamento Filosófico Português” (Vol. 5, tomo 2), publicada em 2006 precisamente sob a direcção de Pedro Calafate.

Os primeiros cinco capítulos, da autoria de Augusto J. S. Fitas, doutor em Física com agregação em História da Física na Universidade de Évora, descrevem o impacto nacional que foram tendo as diversas correntes da Filosofia da Ciência, desenvolvidas no contexto europeu. Assim, Augusto Fitas inicia o primeiro capítulo por um bosquejo do panorama científico internacional, na transição do século XIX para o século XX, que assistiu ao surgimento de novas correntes epistemológicas, herdeiras do “positivismo oitocentista”, cujos principais mentores foram Ernst Mach, Henri Poincaré e Pierre Duhem. No panorama nacional do primeiro quartel do século XX, tratado no segundo capítulo, são evidenciadas as reflexões epistemológicas de Leonardo Coimbra, que demonstrou “uma interpenetração muito forte do seu discurso filosófico por reflexões sobre o significado e o valor do conhecimento científico.” É também referenciada a acção deste matemático como colaborador da revista "Águia", “primeira revista cultural com larga difusão nacional a preocupar-se em dar a conhecer os temas da ciência moderna e de índole científico-filosófica.” As influências do positivismo lógico em Portugal são retratadas no terceiro capítulo, com destaque para a figura de Abel Salazar, o grande divulgador do empirismo lógico e cujo grande entusiasmo originou polémicas com outros pensadores, com os quais esgrimiu argumentos nas páginas de revistas da época como o "Sol Nascente", a "Seara Nova" e "O Diabo". Neste capítulo são também mencionadas as contribuições na literatura científico- filosófica dos cientistas Bento de Jesus Caraça, Rui Luís Gomes e Mário Silva, bem assim como dos filósofos Delfim Santos e Vitorino de Magalhães Godinho. Segundo Augusto Fitas, é no início da década de 40 que surgem no nosso país as ideias do materialismo dialéctico, veiculadas por Vasco de Magalhães Vilhena. A revista "Vértice", fundada em Coimbra em 1942, foi um espaço privilegiado para dar a conhecer o novo “pensar filosófico (…) influenciado pela revolução operada na física moderna.” O autor traz também à colação, neste 4º capítulo, as ideias da nova corrente de pensamento que sobressaem dos textos publicados na "Vértice", em particular os de Egídio Namorado, crítico do neopositivismo da Escola de Viena, e de Rodrigues Martins, defensor “da importância da história e filosofia da ciência no acto de fazer e pensar a própria ciência.” O 5º capítulo é dedicado a uma personalidade que “atravessa todos os períodos”: trata-se de António Sérgio cuja actividade se estendeu da “história e cultura à religião, passando pela política, filosofia e ciência”.

Os dois capítulos seguintes são da autoria de Marcial Rodrigues, professor de Filosofia na Escola Secundária André de Gouveia, em Évora, e investigador do Centro de Estudos da História e da Filosofia da Ciência, em Évora. No primeiro (Cap. 6) é analisada a filosofia da ciência no pensamento de inspiração católica, até meados da década de 70, com incidência em artigos publicados na "Brotéria – Revista de Sciencias Naturaes" e na "Revista Portuguesa de Filosofia". Neles é abordada a teoria da relatividade, conotada com o neopositivismo, entre outros temas no âmbito da física moderna e biologia, e as suas repercussões epistemológicas. Marcial Rodrigues inicia o sétimo capítulo com uma resenha das novas concepções ao nível da filosofia da ciência, em particular as concepções de Bachelard, Popper e Kuhn, e os seus reflexos na filosofia da ciência em Portugal no último quartel do século XX. Estas são alvo de análise, sendo destacado o papel desempenhado por Fernando Gil e pelo Grupo de Investigação de Filosofia e Epistemologia.

O último capítulo é dedicado à história da ciência em Portugal, como área de investigação científica. Maria de Fátima Nunes, professora de história agregada da Universidade de Évora e investigadora do referido Centro, dá a conhecer ao leitor a actividade do grupo português de história das ciências, denominado "Petrus Nonius", cujo director mantinha contactos próximos com Aldo Mieli, director da revista "Archeion – Archivio di Storia della Scienzia", de Roma. Maria de Fátima Nunes descreve os vários congressos internacionais de história da ciência realizados no nosso país, em especial o III Congresso Internacional de História das Ciências, em 1934. As últimas páginas deste capítulo, que conclui o livro, são dedicadas aos três nomes que mais se destacaram na história da ciência em Portugal no século XX: Joaquim de Carvalho, Luís de Albuquerque e Rómulo de Carvalho.

Este livro é uma obra de inegável relevância no panorama cultural e científico português. O seu valor não se esgota no âmbito da história da ciência ou da filosofia, sendo capaz de despertar a curiosidade de todos os que se interessam pela ciência e/ou pela história de Portugal. Poderá apenas faltar uma conclusão, de autoria conjunta, que integrasse as principais ideias numa síntese final, com as perspectivas do cientista, do filósofo e do historiador. Espera-se que esta obra venha a suscitar outros estudos naquela que é uma “das áreas menos conhecidas da cultura portuguesa do século XX”, segundo as palavras de Pedro Calafate.

- Augusto Fitas, Marcial Rodrigues e Maria de Fátima Nunes, “Filosofia e História da Ciência em Portugal no Século XX”, de Augusto Fitas, Marcial Rodrigues e Maria de Fátima Nunes. Caleidoscópio, 2008.

António José Leonardo

Sem comentários:

DUZENTOS ANOS DE AMOR

Um dia de manhã, cheguei à porta da casa da Senhora de Rênal. Temeroso e de alma semimorta, deparei com seu rosto angelical. O seu modo...