Só discordo de um pequeno pormenor no post do Ludi. É que a filosofia não se ocupa apenas de fazer perguntas, mas também de teorizar hipoteticamente, quando a teorização científica ou matemática não é possível. Daí a piada filosófica:
Um filho diz ao pai: "Hoje vou sair com a miúda mais bonita da turma, mas eu fico sempre sem assunto! Como é que faço para não parecer um parvalhão?""Fácil", diz o pai. "Há sempre três assuntos que não falham: a família, a comida e a filosofia."O miúdo vai todo satisfeito e depois do cinema surge um daqueles momentos de embaraçoso silêncio. Então ele lembra-se do conselho do pai e pergunta à miúda com um sorriso bonito: "Tens irmãos?""Não".Raios, pensa ele. Lá se vai a primeira hipótese. Qual era o segundo assunto? Ah!"Gostas de pizza?""Não".Chiça, isto está a correr mal, pensa o miúdo. Bom, só resta falar de filosofia:"Se tivesses irmãos, achas que eles gostariam de pizza?"
32 comentários:
O Ludwig tem razão, mas há um problema conceptual em relação à realidade, que Ludwig não percebeu.
Vou pegar num exemplo: o que é mais real, a cor vermelha tal qual a vejo no dia a dia ou as ondas electromagnéticas descritas pelos físicos e que chocam comigo quando vejo um objecto vermelho?
O percepcionamento é uma relação epistémica entre aquele que percepciona por um lado e o objecto percepcionado por outro. Como os objectos que percepcionamos não estão nas nossas cabeças mas no ambiente do mundo, o pressuposto de que o percepcionamento tem lugar no nosso cérebro não faz sentido.
Na verdade, nós somos sensíveis a uma certa categoria de choques exteriores, mas estes choques nunca se nos apresentam como são. Assim, nós temos uma certa percepção das cores que outros animais não têm, mas o mundo do físico não tem cores, tem comprimentos de onda. A cor é uma qualidade que aparece com certas categorias de seres vivos, que não percebem vibrações luminosas enquanto tais, como vibrações electromagnéticas, mas percebem azul, vermelho, etc.
Portanto, a percepção da cor é sempre função de um contexto perceptual “objectivo e subjectivo”. Será que faz sentido aceitar a concepção dos físicos para definir o que é a realidade, ou fará mais sentido manter os critérios do senso comum e da experiência, directamente vivida, para definir a realidade? O que os físicos dizem, não será mais uma maneira de nós falarmos, abstracta e metafóricamente, para melhor explicarmos os fenómenos do mundo? Ou seja, para termos uma epistemologia mais racional e coerente? O que é mais real, a cor tal como a vemos, o sabor tal como o sentimos, ou o artifício epistemológico? Na realidade do dia-a-dia nós não vemos nem sentimos ondas nenhumas.
Em que ficamos então quanto ao que é a realidade?
Qualquer afirmação sobre o que é a ‘realidade’ não pode ser uma pretensão de ordem científica, porque não decorre de qualquer hipótese ou teoria científica e depois confirmável ou infirmável por investigações empíricas. Mas já pode ter uma pretensão filosófica (conceptual, lógica, metafísica), isto é, confirmável ou infirmável por invesigações filosóficas e argumentos ‘a priori’.
Caro F. Dias:
Não percebo muito bem os seus comentários, mas sobre a cor está totalmente enganado :)
A realidade é que espécies químicas diferentes absorvem radiação de comprimento de onda diferente. Quando a luz incide sobre um objecto, se este for opaco reflecte o que não absorve. Quando olhamos para um objecto vemos assim a luz que ele reflecte.
Nós chamamos vísivel à gama de radiação em que os humanos vêem, entre 400 e 700 nm sensivelmente, e que tem a ver com o facto de que no Homem existem três tipos de cones, com sensibilidade (máxima) aos comprimentos de onda 410 (azul), 531 (verde) nm e 558 (amarelo) nm, designados cones S, M, L.
Outras espécies animais têm diferentes rodopsinas e assim são sensíveis a outras gamas de comprimentos de onda. Por exemplo, os mamíferos são normalmente dicromáticos e muitas espécies nem sequer possuem visão de cor.
Mas isso não obsta a que, por exemplo, a clorofila absorva todo o espectro visível menos o verde. Ou seja, a realidade é que quando a luz branca incide numa folha, é reflectida radiação de comprimento onda com máximo à volta de 500nm.
Um daltónico com a anomalia do cientista que deu o nome à condição não vê verde mas a realidade, o especro de absorção da clorofila, não se altera por isso :)
Pode ver mais sobre visão no post as cores da água- visão
Tudoo que a Palmira disse é da linguagem científica e quanto a isso nada a dizer. A Palmira não percebe a linguagem 'fenomenológica' do ver vermelho, ou do sabor doce, etc? Refiro-me às qualidades em si dos fenómenos de 'facto'. Mas adiante...
A existência do ‘universo’ e a existência de um ‘começo’ é um aspecto relacional que decorre do encontro dos seres humanos com os objectos, e como tal é uma qustão de significação, ou seja, para ser inteligível esta questão tem de ser resolvida lógico-gramaticalmente ‘a priori’.
Se fizer algum sentido o que acabei de dizer, não é necessário recorrer à ciência para confirmar ou infirmar que não tem sentido imputar à existência de um ‘criador à nossa imagem e semelhança’ a causa da existência do ‘universo’. Assim como não teria sentido confirmar ou infirmar que afinal os ‘números’ são mais largos do que compridos.
Assim, também para tentar descobrir, por exemplo, que coisas é que têm a cor vermelha é metermo-nos em questões da contingência dos ‘factos’, a serem descobertas pela nossa experiência vivencial da visão das coisas do dia-a-dia, e não pela ciência.
Nem a Palmira aceitaria que eu lhe dissesse que estava enganada quando me dissesse que as rosas que tem na jarra são vermelhas, que o gelo que tem no frigorífico é frio, que o carvão é negro. Tudo isso não passariam de ilusões ou confusões da sua parte.
O que a Palmira fez com a brilhante explanação científica sobre as cores, foi aprisionar as suas cores a um vacilante mastro metafísico. O facto de só conseguirmos ver que as rosas da Palmira são vermelhas quando a luz se reflecte na sua superfície e depois na nossa retina, nãomostra que as suas rosas “em si e por si próprias” não sejam realmente vermelhas.
O ‘mastro metafísico’ do séc. XVII que vem de Descartes e de Locke tem implicações muito mais dramáticas do que realmente se pensa.
Aquilo que vemos não é o efeito de um objecto sobre nós, como Locke dizia, e portanto nós víamos as representações no cérebro (resumindo claro).
O efeito de um objecto no nosso sistema nervoso é a estimulação das células da retina, o efeito desta estimulação no nervo óptico, a consequente excitação das células nas hipercolunas do córtex estriado visual.
Mas nada disto é percepcionado quer pelo cérebro (que não pode percepcionar nada) nem pela pessoa a quem o cérebro pertence. Em vez disso, aquilo que vemos é uma consequência da acção dos objectos iluminados ou luminosos sobre o nosso sistema visual, e aquilo que vemos são esses objectos, cores e tudo o resto. O que assim vemos, vemos directamente.
Tudo o que venho pondo aqui hoje neste post do Desidério serve para exemplificar um pouquinho aquilo que eu no início chamava à atenção de Ludwig, e depois de Palmira, dos problemas de não perceber as implicações do tal mastro metafísico e de não perceber a linguagem fenomenológica.
O facto de que aquilo que é recebido pelos órgãos sensoriais (ondas luminosas e sonoras) que na linguagem científica não são coloridas nem ruidosas, esta não mostra que o percepcionado não é objectivamente colorido ou ruidoso.
Caro F. Dias:
Continuo sem perceber o que quer dizer.
Não percebo muito bem o que seja o mastro metafísico da cor de uma rosa vermelha. Uma rosa é vermelha devido à presença nos vacúolos de cianina (cianidina 3,5-diglucósido)
que tem o máximo de absorçao a 509 nm (enfim, pode apresentar um pequeno desvio para o vermelho na presença de copigmentos como outros flavonóides e polifenóis).
Mas não altera a realidade da rosa vermelha se a olhar, por exemplo, com luz azul (em que a vê azul), ou com luz verde (em que a vê preta). A realidade é a mesma, nem a rosa vermelha nem a cianina se alteraram.
O Desidério que me corrija, mas não creio que a metafísica seja chamada a explicar as nossas diferents percepções da mesma rosa vermelha iluminada com luzes de várias cores.
Palmira,
Uma coisa é a realidade de facto, outra coisa é a realidade qualitativa. Vermelho, verde, preto, são conceitos em circuito fechado. Tudo o que a Palmira disse em cima dum facto, foram conceitos de ralidade qualitativa. A Palmira tente perceber as armadilhas da linguagem. Isso só se faz através de aturada investigação conceptual, que é lógica. De lógica percebe o Desidério, mas também percebo por que é que ele não quer comprar esta guerra... que não é guerra claro. Foi uma matreirice da linguagem esta da guerra...
Sobre o gelo ser frio, isso levanta uma questão importante que falo sempre no princípio das aulas de termodinâmica e que tem exactamente a ver noção que nós temos de quente e frio.
Isto é, o quente e frio está muitas vezes mais associado a condutividade térmica do que a temperatura propriamente dita. Por exemplo, se colocar no mesmo frigorífico um pedaço de madeira seca, diria que o gelo está mais «frio» que o madeira embora se esperar o tempo suficiente para se atingir equilíbrio térmico ambos etejam à mesma temperatura :)
Vermelho, verde, preto, são conceitos em circuito fechado.
claro, somos nós que associamos o vermelho á cor que vemos quando olhamos para um composto que absorve a 500 nm :) Podiamos chamar-lhe qualquer outra coisa que a realidade não se alterava.
Aliás, a nossa tradução de cor em palavras é um pouco pobre, há culturas que distinguem cerca de 4000 cores diferentes. Mas o que quer que chamemos á cor que se obtem com uma solução 10-5 M em cianina, a realidade é que essa solução absorve uma determinada zona do espectro e a intensidade dessa absorção depende da concentração e do percurso óptico.
Em ciência tratamos da realidade objectiva e fenomenológica das cores. Se alguém quiser olhar para essa realidade com lentes cor-de-rosa estejam à vontade, agora não venham com histórias de que a realidade é a sua, a rosa e negro, e não a realidade dos «físicos». :)
eu não sou física, sou pintora, e garanto-lhe que o vermelho é menos "forte" que o azul, pelo que será mais envolvente.
Já uma roa é uma rosa é uma rosa, e o raio da rosa é mística e tudo, chama-lhe memórias das mais variadas fontes e significados, e para todos os efeitos: UMA ROSA NÃO É UMA FLOR.
(ou é? se calhar é)
Os doces são doces porque estruturam os nossos corpos.
As rosas são místicas porque metaforizamos com estas flores.
O vermelho é menos forte que o azul, por isso mais confortável.
Qual é o problema da explicação "não mundana?". Inveja?
1 - Até Descartes – pensava-se que para percepcionar uma qualidade perceptiva, pressupunha-se que esta tinha de ser transmitida do objecto percepcionado para o percepcionador.
2 - Depois de Decartes – passou-se a pensar que a qualidade perceptiva era causada em quem percepcionava, isto é, que o cérebro é que construía tal imagem do objecto.
O que pensa a Palmira quanto a isto? Qual dos dois está certo, ou nenhum?
Independentemente da resposta de Palmira eu digo que nós não ‘recebemos’ ondas electromagnéticas nem ondas de pressão. Os olhos e os tímpanos é que lhes são sensíveis. E embora se possa dizer que as ‘recebemos’, estes estímulos não são ‘dados’ no sentido em que os dados são dados, mas apenas no mesmo sentido em que apanhamos uma gripe. Mas o que nos é ‘dado’ são percepções de objectos.
- Agora entra a parte mais importante:
A cor vermelha não tem de nos ser transmitida para que a vejamos (como diziam os primeiros), mas também não tem de ser causada pelo nosso cérebro (como diziam os segundos).
O vermelho que vejo quando vejo um objecto vermelho, não está no objecto, mas também não está em mim. Não ‘está’ em nada. É um atributo fenomenológico do objecto e não da minha ‘percepção do objecto’.
Entre as muitas causas subjacentes às confusões conceptuais no âmbito desta discussão há uma que é frequente e que consiste em misturar explicações causais científicas com as descrições normais de senso comum das pessoas no seu dia-a-dia.
Há que distinguir erros factuais de erros conceptuais. Enquanto neste debate tenho estado virado para os erros conceptuais, Palmira tem argumentado praticamente como se só houvesse erros factuais, ou se só interessassem o erros factuais.
Ora, os erros factuais são aqueles susceptíveis de serem dirimidos empiricamente pela ciência. Os erros conceptuais são aqueles que são resolvidos pela articulação lógica do sentido, pela filosofia. É o que Desidério tem tentado fazer, embora nem sempre muito bem compreendido pelos cientistas.
A Palmira não pode ensinar, a uma criança que ainda não conheça as cores, o que é vermelho, sem apontar ostensivamente para uma coisa que seja vermelha. O conceito público e partilhado de vermelho decorre de uma definição ostensiva pública.
Como as condições normais de observação são precisamente as condições sob as quais as coisas coloridas parecem ter a cor que verdadeiramente têm. E como os observadores normais são aqueles a quem as coisas coloridas parecem ter a cor que têm sob cndições normais de observação – é por isso que nós nos podemos entender socialmente.
caro F. Dias:
voltei a não perceber; aliás acho que o problema é mesmo um erro conceptual porque me parece que todo o seu discurso está orientado para a atribuição do mesmo valor epistémico á explicação científica das coisas e à explicação de senso comum do zé da esquina. Ou seja, para o relativismo pós-moderno.
E vamos lá a ver, não tem nada a ver com o que a Rosa disse, tem a ver com o que o F. Dias disse logo no primeiro comentário:
o que é mais real, a cor vermelha tal qual a vejo no dia a dia ou as ondas electromagnéticas descritas pelos físicos e que chocam comigo quando vejo um objecto vermelho
o que eu lhe tentei explicar é que o exemplo da cor (assim como todos os outros) foi muito mal escolhido especialmente neste post. isto é, o F. dias tentou e tenta fazer umas passagens de nível completamente sem sentido.
Ora é precisamente aí que bate o ponto, sem quaisquer pré-conceitos de pós-moderno. O que é a realidade?
Há a realidade – um conceito de nível ontológico.
E há depois os caminhos para a conhecer – um conceito de nível epistemológico.
Concordo com o Ludwig quando diz : “a ciência é o conjunto de técnicas e teorias que nos permite avançar no conhecimento da realidade.”
Os problemas vêm depois na conceptualidade dos níveis. E o que muitas vezes se confunde implicitamente, e por isso é que nem sempre é fácil apresentar uma frase ostensiva da Palmira ou do Ludwig para exemplificar que confundem o nível ontológico com o nível epistemológico, e é também por isso que o Desidério se limita neste post a falar eufemisticamente em “passagens de nível” e de um “pequeno pormenor no post do Ludi” e até agora está calado como um peto, porque pensar é uma coisa que leva tempo. E um dia destes, quando já nihguém se lembra o que se discutiu aqui, lá posta ele mais um dos seus brilhantes textos, para pouca gente o perceber.
A realidade é complexa e os argumentos ramificam-se.
Concordo que toda a investigação científica só tem a ganhar em não se meter na ramificação das questões filosóficas da conceptualidade.
De qualquer modo esta concordãncia não é trivial, porque queira a Palmira ou não queira, o grosso dos cientistas modernos e contemporâneos (sem ofensa) contaminaram os seus trabalhos com uma concepção paradigmática da realidade que perdura desde o século XVII, e pretendem ter muitas certezas sobre o que é “objectivo” e “subjectivo”.
Ora, estas pretensões, queiramos ou não, afectaram profundamente até os nosos dias a forma como os cientistas concebem a realidade. Claro que falar de cientistas como se fossem todos gatos iguais no mesmo saco é redutor e não faz qualquer sentido. O que faz sentido é o que predomina, o que gasta os dinheiros dos contribuintes, dos cidadãos, etc.
Caro f. dias,
não compreendo a sua "obsessão pela ontologia do vermelho”. É certo que o terreno da percepção é propício à germinação de erros conceptuais mas não me parece que a sua proposta seja clarificadora até porque lhe encontro erros factuais: é um facto conhecido que a visão realiza a integração da cor (O RGB produz qualquer cor possível de ser percepcionada com apenas 3 comprimentos de onda) o que conduz a que a mesma percepção possa ter origem em realidades cromáticas diferentes.
A aparelhagem perceptiva dos humanos é muito estreita para lhe deixarmos a tarefa de catalogar a realidade.
Relacionado com deste tema sugiro-lhe este artigo interessante
Com,
Escolhi a cor por várias razões:
Por ter sido dos assuntos mais bem estudados pela ciência e por ter sido desde sempre estudado pelos filósofos.
Por ser apelativo e mais facilmente acessível à compreensão de todos, incluindo as crianças.
Para fugir de coisas mais abstractas e mais difíceis de agarrar.
Não pretendo transmitir nenhuma verdade, nem esgotar os problemas, que são imensos. Pretendo apenas fazer exercícios de pensamento, de perferência em parceria com pessoas que dão uma boa luta contraditória, mesmo que no geral se esteja em muitas coisas de acordo com elas. Que é o caso de Palmira. Assim, pode ser que se consiga ir mais longe, para se ficar sempre na mesma. Quem gostaria de ter sido Newton, mesmo sabendo que hoje todos os cientistas digam que errou muitas coisas porque no seu tempo não se sabiam as coisas que se sabem hoje. Daqui a cem anos vai continuar a dizer-se o mesmo dos melhores de hoje.
Talvez eu possa ajudar a esclarecer as coisas neste interessante debate. Há uma tendência para cair nas seguintes falácias, a que podemos chamar as falácias da representação:
1) Dado que uma pedra não está dentro da minha cabeça quando vejo uma pedra, mas apenas uma representação dela, então a natureza última da pedra é-me inacessível.
2) Dado que muitas vezes representamos as coisas de uma maneira que depois descobrimos estar errada, toda a representação é ficcional ou inventiva.
3) Dado que há muitas propriedades que parecem intrínsecas e depois descobrimos que afinal são relacionais, os objectos não têm realmente quaisquer propriedades excepto as que neles projectamos.
Estas três falácias são cometidas por alguns filósofos. Depois de Kant ter introduzido a sua teoria idealista ou projectivista da representação, vários outros filósofos desavisados tomaram tal teoria como óbvia, quando na verdade talvez nem seja coerente.
As coisas ficam mais claras se usarmos algum bom senso. Nós somos animais como os outros. Viemos à existência neste planeta e temos órgãos dos sentidos para captar a realidade. A representação da realidade não é a realidade, mas do facto de uma representação ser uma representação não significa que tem de ser mentirosa ou enganadora ou mera projecção ou que a verdadeira realidade é incognoscível ou está para lá do nosso pensamento. Muitas propriedades que nos parecem intrínsecas são de facto relacionais. A cor não é uma propriedade intrínseca dos objectos, mas meramente relacional: é o modo como alguns agentes cognitivos captam e representam certos comprimentos de onda. Faz tanto sentido tentar encontrar a propriedade da cor nos objectos apenas como tentar encontrar a propriedade de ser irmão numa pessoa apenas; a propriedade de ser irmão é algo que só duas pessoas, no mínimo, podem ter — é uma propriedade relacional e não intrínseca. Mas do facto de uma propriedade ser relacional não se segue que é menos objectiva, ou que é uma mera projecção. Seres vivos com certos aparatos visuais vêm certas cores quando expostos a certos comprimentos de onda e isso é um facto tão objectivo do mundo como pedras a cair. Só não nos parece tal coisa porque temos uma tendência terrível para nos representarmos a nós mesmos (e à nossa linguagem e pensamentos) como coisas do outro mundo, uma espécie de neblina que paira sobre a realidade. Nunca devemos esquecer que o que acontece na nossa cabeça, os nossos pensamentos e sentires, são coisas tão naturais como a chuva.
Finalmente: quanto à ideia do Dias de que a ciência não faz não sei o quê à realidade, isso só é defensável se tivermos uma visão positivista da ciência. Os positivistas eram fenomenistas: defendiam que a ciência apenas descreve os fenómenos e não a realidade em si, pois só podemos verificar fenómenos e não realidades. Só que não há qualquer razão para aceitar o positivismo. A ciência estuda a realidade, mas o que caracteriza o estudo científico da realidade não é a verificação empírica, mas sim a argumentação cuidadosa. A observação é apenas um tipo de argumentação quando estamos numa situação em que a observação é adequada para aceitarmos ou rejeitarmos uma dada teoria. Noutras circunstâncias não usamos a observação — como na matemática — mas nem por isso a matemática é menos “científica”. Noutras circunstâncias ainda tudo o que temos é raciocínios muitíssimo complexos a favor da existência de coisas que não podemos observar, como o Big Bang ou os quarks, a partir de outras coisas que podemos observar. O que faz da ciência ciência não é a observação. É a argumentação cuidada e rigorosa. Ou a justificação, que é outra maneira de usar aproximadamente o mesmo conceito.
Antes de se renderem à pirotecnia argumentativa do Ludwig Rrippahl convém conhecer os argumentos que o mesmo tem avançado na sua cruzada contra os criacionistas, acompanhados dos contra-argumentos criacionistas.
Com efeito, o Ludwig Krippahl:
1) Defendeu que a mitose e a meiose são modos de criação naturalística de DNA.
A isto, os criacionistas respondem que apenas se trata aí de processos de cópia da informação genética pré-existente no DNA quando da divisão das células. Por sinal, trata-se de uma cópia extremamente rigorosa, equivalente a 282 copistas copiarem sucessivamente toda a Bíblia e enganarem-se apenas numa letra.
De resto, o processo de meiose corrobora a verdade bíblica de que todas as criaturas se reproduzem de acordo com a sua espécies, tal como Génesis 1 ensina.
A mitose e a meiose não criam informação nova, capaz de criar estruturas e funções inovadoras. Ela limita-se a recombinar informação genética pré-existente.
A meiose e a mitose existem porque o DNA as torna possíveis. Por explicar fica a origem naturalística do DNA, enquanto sistema mais eficiente de armazenamento de informação que se conhece, e da informação codificada nele contida.
2) Defendeu a evolução comparando a hereditariedade das moscas (que se reproduzem de acordo com a sua espécie) com a hereditariedade da língua (cuja evolução é totalmente dependente da inteligência e da racionalidade.)
A isto os criacionistas respondem que em ambos os casos não se vê que é que isso possa ter que ver com a hipotética evolução de partículas para pessoas, já que em ambos os casos não se explica a origem de informação genética por processos naturalísticos.
3) Defendeu que todo o conhecimento científico é empírico.
A isto os criacionistas respondem que o Ludwig não apresenta qualquer experiência científica que lhe permitisse fundamentar essa afirmação.
Assim sendo, tal afirmação não se baseia no conhecimento, segundo os critérios definidos pelo próprio Ludwig, sendo, quando muito, uma profissão de fé.
Na verdade, não existe qualquer experiência ou observação científica que permita explicar a causa do hipotético Big Bang ou demonstrar a origem acidental da vida a partir de químicos inorgânicos. E no entanto, o Ludwig tem fé nesses hipotéticos eventos.
Ora, fé por fé, os criacionistas já têm a sua fé: na primazia da revelação de Deus.
Se o naturalismo se baseia na premissa de que todo o conhecimento é empírico e se essa premissa não consegue satisfazer o critério de validade que ela mesma estabelece para o conhecimento, vê-se bem que o naturalismo não se baseia no conhecimento, mas sim na ignorância.
4) Defendeu a incompetência do designer argumentando com o sistema digestivo das vacas e os seus excrementos.
A isto os criacionistass repondem que o Ludwig esquece que esse argumento, levado às últimas consequências, nos obrigaria a comparar o cérebro do Ludwig com o sistema digestivo das vacas e os pensamentos do Ludwig com os excrementos das vacas.
E poderíamos ter dúvidas sobre qual funciona melhor, já que para o Ludwig todos seriam um resultado de processos cegos e destituídos de inteligência.
Apesar de tudo os criacionistas têm uma visão mais benigna do cérebro do Ludwig e dos seus pensamentos. As premissas criacionistas partem do princípio de que o Ludwig é um ser racional porque foi criado à imagem e semelhança de um Deus racional.
As premissas criacionistas afirmam que a vida do Ludwig tem um valor inestimável, porque o Criador morreu na cruz para salvar o Ludwig do castigo do pecado.
Segundo a Bíblia, todos pecámos e estamos separados da glória de Deus, podendo obter vida eterna mediante um dom gratuito de Jesus Cristo.
5) Defendeu que a síntese de betalactamase, uma enzima que ataca a penicilina destruindo o anel de beta-lactam, é uma evidência de evolução.
Nesse caso, o antibiótico deixa de ser funcional, pelo que os microorganismos que sintetizam betalactamase passam a ser resistentes a todos os antibióticos.
A betalactamase é fabricada por um conjunto de genes chamados plasmidos R (resistência) que podem ser transmitidos a outras bactérias.
Em 1982 mais de 90% de todas as infecções clínicas de staphylococcus eram resistentes à penicilina, contra perto de 0% em 1952. Este aumento de resistência ficou-se a dever, em boa parte, à rápida transferência por conjugação do plasmido da betalactamase.
Como se pode ver, neste exemplo está-se perante síntese de uma enzima de banda larga com perda de especificidade e, consequentemente, com perda de informação. A rápida obtenção de resistência conseguiu-se por circulação de informação.
Em caso algum estamos perante a criação de informação genética nova, codificadora de novas estruturas e funções.
Na verdade, na generalidade dos casos conhecidos em que uma bactéria desenvolve resistência a antibióticos acontece uma de três coisas: 1) a resistência já existe nos genes e acaba por triunfar por selecção natural, embora não se crie informação genética nova; 2) a resistência é conseguida através de uma mutação que destrói a funcionalidade de um gene de controlo ou reduz a especificidade (e a informação) das enzimas ou proteínas; 3) a resistência é adquirida mediante a transferência de informação genética pré-existente entre bactérias, sem que se crie informação genética nova (o que sucedeu no exemplo do Ludwig). Nenhuma destas hipóteses corrobora a criação naturalista da informação codificada necessária à transformação de partículas em pessoas.
6) Defendeu que o código do DNA, afinal, não codifica nada.
Isto, apesar de o mesmo conter sequências precisas de nucleótidos com as instruções necessárias para a construção de aminoácidos, cujas sequências, por sua vez, conduzirão ao fabrico de cerca de 100 000 proteínas diferentes, com funções bem definidas para o fabrico, sobrevivência e reprodução dos diferentes seres vivos.
Existem 2000 aminoácidos diferentes e o DNA só codifica os 20 necessários à vida. O DNA contém um programa com informação passível de ser precisamente transcrita, traduzida, executada e copiada com sucesso para o fabrico de coisas totalmente diferentes dos nucleótidos e representadas através deles.
Curiosamente, já antes dos trabalhos de Crick e Watson, já Gamow, por sinal o mesmo cientista que fez previsões acerca da radiação cósmica de fundo, previu que o DNA continha informação codificada e armazenada. E acertou.
De resto, é universalmente reconhecido que o DNA contém informação codificada. O Ludwig, por ter percebido que não existe código sem inteligência, viu-se forçado a sustentar que o DNA não contém nenhum código, apesar de ser óbvio que contém. Para ele, tudo não passa de uma metáfora.
O problema para o argumento do Ludwig é que mesmo aqueles cientistas, citados no KTreta, que sustentam que só metaforicamente se pode falar em código a propósito do DNA, afirmam que melhor se faria em falar em cifra, isto, é, em linguagem cifrada e em decifração do DNA.
Só que, longe de refutar o argumento criacionista sobre a origem inteligente da informação, estes cientistas acabam por corroborá-lo inteiramente, na medida em que sustentam que se está aí diante de informação encriptada.
Refira-se que, em sentido não técnico, uma cifra é um verdadeiro código. Também aí tanto a informação, como a cifra (ou o código) usada para a sua transmissão, têm que ter uma origem inteligente. Recorde-se que o código Morse é, em sentido técnico, uma cifra, i.e., linguagem cifrada.
Ora, o código Morse e a informação que ele pode conter nunca poderiam existir sem inteligência. Como demonstra a teoria da informação, e como o Ludwig reconhece, não existe informação codificada ou cifrada (como se quiser) sem uma origem inteligente.
Daí que, tanto a origem acidental da vida, como a evolução de partículas para pessoas por processos meramente naturalísticos sejam uma impossibilidade científica. A abiogénese e a evolução nunca aconteceram.
Assim se compreende que a origem acidental da vida nunca tenha sido demonstrada (violando inclusivamente a lei científica da biogénese) e que mesmo os evolucionistas reconheçam que o registo fóssil não contém evidências de evolução gradual. Por outras palavras, a partir da linguagem codificada ou cifrada do DNA, as conclusões são óbvias: o Big Bang é impossível, na medida em que a matéria e a energia não criam informação codificada; a origem casual da vida e a evolução de espécies menos complexas para mais complexas são impossíveis, na medida em que dependem intensivamente de informação codificada ou cifrada e esta depende sempre de uma origem inteligente.
A esta luz, as mutações e a selecção natural diminuem a quantidade e a qualidade da informação genética pré-existente, pelo que nada têm que ver com a hipotética evolução de partículas para pessoas. Tudo isto pode ser empiricamente corroborado. Basta olhar para o mundo real do DNA, das mutações e da selecção natural.
7) Defendeu que a ciência evolui como os organismos vivos supostamente evoluem.
A isto os criacionistas respondem que a ciência evolui graças à inteligência dos cientistas e à informação por eles armazenada, sendo que nem aquela inteligência nem esta informação conseguem abarcar e compreender a quantidade e a qualidade de informação codificada contida nos organismos vivos, sendo que estes só podem existir e reproduzir-se se a informação necessária para os especificar existir antes deles e codificada dentro deles.
A ciência e a tecnologia são um domínio por excelência do design inteligente, onde as experiências e os mecanismos são desenvolvidos com um fim preciso em vista, por cientistas inteligentes e com base em informação acumulada ao longo de séculos.
Os cientistas não deixam os seus departamentos ao acaso, nem deixam que as experiências científicas sejam conduzidas por pessoas sem a mínima preparação. A produção de milhões de espécies altamente complexas e especificadas, funcionalmente integradas, num sistema solar e num universo sintonizados para o efeito, corrobora a presença de uma quantidade incompreensível de inteligência e poder.
No registo fóssil não existe nenhuma evidência de que as espécies realmente evoluíram gradualmente. Nem se vê como as mutações aleatórias poderiam criar quantidades inabarcáveis de informação codificada altamente complexa. Nunca tal foi observado nem explicado por ninguém.
8) Auto-definiu-se como "macaco tagarela".
A isto os criacionistas respondem que o Ludig é realmente tagarela, mas, por mais que lhe custe, não é um macaco.
Olhem lá, o post do Ludwig não dará um âmbito exagerado à ciência? Pergunto-me quem é que terá escondido as minhas chaves. Não se costuma chamar científica a uma pergunta destas. Pergunto-me o que é que quererá dizer bescheid em alemão. Também não é científica, pois não? Pergunto-me se devo ou não comer a fatia de bolo do meu irmão. Pergunto-me se devo condenar este tipo a 10 anos e meio ou a 11 anos de prisão. Pergunto-me se hei-de fazer daquele pires um cinzeiro... Eh, pá, não exagerem! Há muita pergunta razoável que não é científica!
M: É por causa disso que defendi no meu livro Pensar Outra Vez, meio a brincar, que a palavra “ciência” devia ser banida do nosso vocabulário. Eu concordo com a posição do Ludwig, mas não presto vassalagem à magia da palavra “ciência”. Concordo nisto: física, química e matemática nada são de especial excepto uma investigação razoável das coisas, igual a todas as outras investigações razoáveis das coisas, mas muito diferente das tolices da pseudociência em que em vez de se investigar as coisas se projecta na realidade o que gostaríamos de ver nela. Claro que se chamarmos ciência a esta maneira razoável de interrogar a realidade, as perguntas que fizeste são científicas, nesta acepção lata. Mas esta acepção lata só quer dizer “investigação razoável das coisas” ou “investigação genuína das coisas”.
É favor apagar o regougo de um moço qualquer que se esqueceu de ler o ponto 1 (Identifique-se com o seu verdadeiro nome) desta caixa de comentários...
Mas, caso o ilustre desconhecido (ou talvez não...) queira identificar-se, porque responde de uma vez por todas à minha crítica sobre o argumento mentiroso estalagmites que aqui colocou no passado em diversos comentários...?!?
Certíssimo, Desidério, obrigado. Também vendo aos meus cachopos o banimento da palavra «ciência». E de acordo também quanto ao resto. O único problema -- e que acho que podia ser corrigido -- é que vocês aqui no blogue às vezes se esticam um bocado com a palavra «ciência», aqui e ali até numa loazinha meio xenófoba às «ciências duras»... Se tudo fosse dito como disseste agora, estaríamos perfeitos no melhor dos mundos possíveis! ;-)
f. dias, o seu exemplo da relação entre a percepção de vermelho e o comprimento de onda de uma radiação é bom e vou juntar-lhe outro do qual as pessoas não têm muita consciência: também «tempo» é uma percepção do nosso cérebro que resulta de uma sequencia de acontecimentos - a relação entre «tempo e «sequencia de acontecimentos» é como a relação entre «vermelho» e «comprimento de onda da radiação».
ao Perspectiva eu digo: nem cientistas nem criacionistas sabem explicar a Vida - não admira, somos tão ignorantes, não é? Dizer que é fruto do Acaso ou de um Deus vai dar ao mesmo, são meras expressões da nossa ignorância. Mas cada um pode acreditar numa coisa ou noutra, o que não pode é sustentar que «sabe», que está certo aquilo em que acredita, e tentar impor isso aos outros.
E tanto uns como outros fazem o mesmo erro, para o qual aduzem raciocínios e «provas» obviamente irracionais.
A minha contribuição para a origem e evolução da vida, ao menos, sempre é um passo em frente, sem pretender ser a explicação final, muito longe disso.
(a ver se agora vai com menos gralhas...)
Caro M,
«Pergunto-me quem é que terá escondido as minhas chaves. Não se costuma chamar científica a uma pergunta destas.»
Não se costuma, mas não conseguimos baní-la da ciência sem tornar a ciência numa coisa muito diferente do que temos.
Imagine que a resposta é importante para resolver um caso de homicídio e usa-se uma análise ao ADN e impressões digitais para ver quem mexeu nas chaves. O processo é claramente científico, mesmo pelo que se costuma dizer. E não é razoável que a ciência só o seja se as técnicas usadas forem complicadas...
Quanto às questões "devo...", essas concordo que não podem ser respondidas só pela ciência (se bem que tentar respondê-las sem ciência é arriscar não ter o resultado que se queria...).
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