quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Hermann Minkowski e o nascimento do Espaço-Tempo


Estão quase a comemorar-se os cem anos do "nascimento" do espaço-tempo. E a Universidade do Porto está a organizar um colóquio comemorativo (ver aqui). Temos o maior gosto em publicar um "post" convidado de José Carlos Santos, matemático da Universidade do Porto, sobre esse conceito e o seu criador, o alemão Hermann Minkowski:

A 21 de Setembro de 1908 decorria em Colónia, na Alemanha, o 80º encontro da Associação Alemã de Cientistas e Médicos. Uma das conferências apresentadas nesse dia foi de um matemático, Hermann Minkowski, professor há vários anos naquele que era provavelmente o mais prestigiado departamento de Matemática do mundo: o da Universidade de Göttingen. Pouco havia na sua carreira que levasse a esperar que a palestra atraísse grande interesse por parte de não matemáticos, pois os seus trabalhos científicos eram quase todos da área da Teoria dos Números, o ramo da Matemática que se ocupa das propriedades dos números inteiros. O único trabalho científico dele ligado às ciências experimentais (excepto um artigo escrito para uma enciclopédia) era sobre Física teórica e tinha sido publicado meses antes numa revista da sua Universidade. A palestra tinha, no entanto,um título intrigante e apelativo: “Espaço e Tempo”. Abria com palavras que se tornaram famosas:

“Cavalheiros! Os conceitos de espaço e tempo que gostaria de desenvolver perante vós erguem-se do solo da Física experimental. Aí reside a sua força. As suas tendências são radicais. Doravante, o espaço só por si e o tempo só por si irão mergulhar totalmente na sombra e somente uma espécie de união entre os dois continuará a ser real.»

Minkowski acabara de anunciar o nascimento do espaço-tempo. Mas o que é o espaço-tempo?

Qualquer evento que tenha lugar à nossa volta ocorre num determinado lugar e num determinado instante. O lugar pode ser descrito, por exemplo, por coordenadas geográficas, caso se trate de um ponto da superfície da Terra, enquanto o instante pode ser descrito pelo dia e pela hora a que ocorreu. Temos então para cada evento duas informações distintas, uma espacial (o local onde ocorreu) e outra temporal (o momento em que ocorreu). E tudo à nossa volta parece indicar que estas informações são independentes. Pode-se dizer que um acontecimento vai ter lugar em Paris, por exemplo, sem se dizer quando. Ou fazer referência à data 20 de Fevereiro de 2002 sem mencionar um local em particular. Além disso, a nossa intuição diz-nos que o espaço e o tempo são os mesmos para todos os observadores, ou seja, que a distância entre dois objectos não depende de quem a mede e que o tempo que dura um evento também não. Esta ideia intuitiva foi formalizada por Isaac Newton no século XVII na sua obra mais importante, os “Principia”. Para frisar este aspecto do espaço e do tempo, Newton falou de espaço absoluto e de tempo absoluto.

Mas a intuição pode enganar-nos. Na passagem do século XIX para o século XX, alguns físicos e matemáticos (Joseph Larmor no Reino Unido, Hendrik Lorentz na Holanda e Henri Poincaré em França) começaram a pôr em causa aquelas ideias. A conclusão a que chegaram foi que, em certas circunstâncias, se dois observadores, Alice e Bernardo, medirem as coordenadas de um mesmo evento ou o momento em que ocorreu, poderão obter resultados diferentes, mesmo que façam as respectivas medições com toda a precisão possível. Aqueles autores também conseguiram obter uma fórmula (chamada «transformada de Lorentz») que permite deduzir os resultados que Bernardo obtém sabendo os de Alice e vice-versa. É aqui que entra o espaço-tempo, pois, para se calcular as coordenadas espaciais obtidas por Bernardo, não basta saber as coordenadas espaciais que Alice mediu; é preciso também saber o momento em que, segundo Alice, o evento teve lugar. E, analogamente, para calcular o momento em que o evento teve lugar quando medido por Bernardo, é preciso saber não só quando é que ele teve lugar do ponto de vista de Alice, mas também onde, segundo ela, teve lugar. O espaço e o tempo são então interligados.

Minkowski nasceu em 1864 de pais alemães, em Aleksotas, que pertence hoje à Lituânia mas que, precisamente no ano em que Minkowski nasceu, deixou de ser uma cidade prussiana para ser integrada no império russo. Ainda no liceu revelou um grande talento para a Matemática e entrou para a Universidade de Königsberg (actualmente Kalinegrado, na Rússia, mas então uma cidade alemã), onde foi colega e amigo de David Hilbert, hoje considerado, juntamente com Henri Poincaré, o último matemático a dominar todas as áreas da sua disciplina. Com apenas 18 anos, Minkowski ganhou ex-aequo um prémio atribuído pela Academia de Ciências de Paris a quem conseguisse resolver um determinado problema em Teoria dos Números e doutorou-se com 21 anos.

Após ter sido dado aulas em várias universidades alemãs, tornou-se, em 1896, professor no Instituto Politécnico de Zurique, na Suíça. Deu aí aulas de Matemática aos estudantes de Física e teve, em particular, um aluno com o qual tinha várias afinidades: para além da paixão que partilhavam pela ciência: ambos eram judeus alemães a viver na Suíça e filhos de homens de negócios. Chamava-se Albert Einstein.

O encontro entre Minkowski e Einstein estimula a imaginação. Poder-se-ia especular que Einstein declarou que foi Minkowski quem lhe abriu os olhos para o poder da Matemática ou então que Minkowski teve finalmente em Einstein um aluno com quem podia falar de igual para igual.

Mas não foi assim que as coisas se passaram. Einstein gostou efectivamente de ter Minkowski como professor de Matemática, mas, depois de se licenciar, perdeu totalmente o interesse pela maneira como ele aplicava a Matemática à Física. Quanto a Minkowski, descreveria mais tarde Einstein como um «cão preguiçoso», pois raramente ia às suas aulas, preferindo estudar a partir dos apontamentos de um colega. O que Minkowski provavelmente nunca veio a saber foi que o «cão preguiçoso» fazia isso para ter mais tempo para estudar Física nos livros, pois estava insatisfeito com a maneira com esta era ensinada no Instituto. O descontentamento mostrado por Minkowski relativamente a Einstein era também o dos outros seus professores, o que fez com que, quando se licenciou, em 1900, três dos seus colegas licenciados no mesmo ano se tenham tornado assistentes no Instituto, enquanto Einstein não obteve nenhum lugar, nem nessa escola nem em qualquer outra do ensino superior.

O ano de 1902 foi importante tanto para Minkowski como para Einstein. Nesse ano, David Hilbert, então professor na Universidade de Göttingen, recebeu um convite da Universidade de Berlim. Um dos seus colegas em Göttingen, Felix Klein (que fora quem convidara Hilbert), fez uma proposta às autoridades competentes: que permitissem a criação de um novo lugar de professor de Matemática em Göttingen, para o qual se convidaria Minkowski. Se este pedido fosse deferido, Hilbert rejeitaria o convite de Berlim. Esta proposta foi aceite e Minkowski mudou-se então de Zurique para Göttingen. Também nesse ano, Einstein teve o seu primeiro emprego estável, como perito de 3ª classe no departamento de registo de patentes de Berna, na Suíça.

No primeiro semestre de 1905 Hilbert e Minkowski orientaram uma série de palestras sobre Física-Matemática, onde foram estudados textos de Larmor, Lorentz e Poincaré. Em Setembro desse ano, uma revista alemã de Física publicou um artigo de Einstein, no qual era exposta pela primeira vez a Teoria da Relatividade. Aí, Einstein obteve as mesmas fórmulas que Larmor e Lorentz sem, aparentemente, ter conhecimento dos textos publicados anteriormente sobre esse assunto. Naquele artigo também apresentou novos resultados num contexto mais geral, com muito menos hipóteses e dando-lhes uma interpretação radicalmente nova.

Nos dois anos seguintes, à medida que Einstein ia desenvolvendo a Teoria de Relatividade (e outras áreas da Física), Minkowski desinteressou-se do tópico, mas regressou a ele em 1907. Tomou então conhecimento do facto de que um tal Einstein tivera ideias muito interessantes sobre o assunto e ficou surpreendido ao descobrir que se tratava do mesmo que fora seu aluno anos antes. Parece que terá então dito:

«Aquele Einstein que estava sempre a faltar às aulas? Nunca pensei que fosse capaz de uma coisa dessas!»

Minkowski escreveu-lhe então a pedir um exemplar do seu primeiro artigo sobre a Relatividade.

Nos meses seguintes, Minkowski dedicou-se totalmente à Relatividade, tendo publicado um artigo sobre ela em Abril de 1908. Isto fez dele o segundo matemático a abordar este tópico (o primeiro fora Poincaré). O artigo em questão era bastante mais sofisticado do que qualquer outro publicado até então sobre o assunto. Uma ideia aí desenvolvida é a de que, ao estudar-se a Teoria da Relatividade, convém encarar o tempo em pé de igualdade com as coordenadas temporais. Einstein precisara até então somente de Matemática bastante elementar nos seus trabalhos e reagiu negativamente ao artigo de Minkowski. Em dois artigos escritos ainda em 1908 por Einstein juntamente com um outro antigo aluno de Minkowski, Jakob Laub, é dito que o artigo de Minkowski era de difícil leitura para um físico. Os dois artigos destinavam-se a explicar como chegar às mesmas conclusões que Minkowski partindo de uma base matemática mais simples e acessível aos físicos. Einstein também afirmou, na mesma época, que «agora que os matemáticos se dedicaram à Relatividade, nem eu a percebo» e admitiu anos mais tarde que encarou as ideias de Minkowski como uma «erudição inútil».

Quando, em Setembro, Minkowski se preparou para divulgar as suas ideias no encontro de Colónia, sentiu-se na necessidade de as expor de maneira acessível ao maior número possível de cientistas. Conseguiu fazê-lo com bastante sucesso, em parte porque desenvolveu uma abordagem geométrica da Relatividade que ainda hoje é usada, sob o nome de «diagramas de Minkowski». Já nos seus trabalhos de Teoria dos Números Minkowski tinha introduzido ideias geométricas numa área que parecia inacessível à visualização.

Em menos de um ano, o texto da palestra foi publicado em alemão, francês e italiano, mas Einstein manteve-se céptico durante anos quanto ao modo como Minkowski abordava a Relatividade e continuou a empregar nos seus trabalhos somente Matemática elementar. Mas, a partir de 1912, ao começar a tentar desenvolver a Teoria Geral da Relatividade (que visava generalizar a teoria já existente de maneira a englobar a gravitação) teve que reconhecer que isso não bastava. Em 1916, depois de conseguir levar a cabo essa tarefa, prestou homenagem aos trabalhos do seu antigo professor ao escrever:

«A generalização da Teoria da Relatividade foi consideravelmente facilitada por Minkowski, um matemático que foi o primeiro a aperceber-se da equivalência formal entre as coordenadas espaciais e a coordenada temporal e que empregou isto na construção da teoria.»


E mais: sem a abordagem de Minkowski, «a Teoria Geral da Relatividade [...] talvez não tivesse passado da infância».

Para Minkowski, esta homenagem não chegou a tempo. Quatro meses após a palestra de Colónia tinha falecido inesperadamente quando convalescia da extracção do apêndice.

José Carlos Santos

3 comentários:

JSA disse...

Belíssimo post. E que demonstra a importância da matemática para as restantes disciplinas científicas (apesar de eu, sendo engenheiro, preferir matemática tão simples quanto possível).

joão boaventura disse...

Em 1734, o nosso Martinho de Mendonça de Pina e Proença, apresentava estas definições:

"Espaço... significa somente a ordem dos corpos coexistentes, e tempo, a ordem das coisas sucessivas.

Unknown disse...

Muito boa matéria,
para que nossos jovens cientístas saibam que, até chegar na Teoria Geral da Relatividade, Einstein além de ralar muito, contou ainda com ajudas muito importantes, a exemplo da matemática de Minkowski.

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