segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Definições

Retirado da Enciclopédia de Termos-Lógico Filosóficos, eis um artigo sobre definições que poderá ser útil. As definições são cruciais na nossa vida cognitiva: em física, biologia, direito, filosofia, sociologia. Precisamos de saber exactamente o que é um solteiro, em termos legais, por exemplo; o que é a massa, em física; o que é a água; o que é a validade dedutiva. Em todos estes casos, precisamos de definições rigorosas, mas para saber avaliar e apresentar definições precisamos de ter uma visão clara dos diferentes tipos de definições. Foi isso que tentei fazer neste artigo. Espero que seja útil. Aproveito para informar que a versão portuguesa da Enciclopédia deverá sair em 2009. 

Definir é especificar a natureza de algo. Chama-se definiendum ao que se quer definir e definiens ao que a define. Por exemplo, pode-se definir o ouro (definiendum) como o elemento cujo peso atómico é 79 (definiens). E pode-se definir a palavra «solteiro» como «não casado». Chama-se «real» ao primeiro tipo de definição e «nominal» ao segundo.

Há três tipos principais de definições nominais: as lexicais, as estipulativas e as de precisão.
Nas definições lexicais ou de dicionário dá-se apenas conta do significado preciso que uma dada palavra realmente tem. Estas definições podem ser equivalentes a definições reais. Por exemplo, definir a palavra «água» como «líquido incolor, sem cheiro nem sabor, que se encontra nos rios e na chuva» é equivalente a definir a própria água porque muitas vezes o modo formal é equivalente ao modo material (ver MODO FORMAL / MATERIAL).

Usa-se uma definição estipulativa quando se introduz um termo novo (como «Dasein»), ou quando se quer usar um termo corrente numa acepção especial (como «paradigma», na filosofia da ciência de Thomas Kuhn). Uma forma falaciosa de argumentação consiste em presumir que uma definição capta sempre algo, como se a definição de «flogisto» implicasse a existência de flogisto. Outra, consiste em simular definir uma noção da qual depende a plausibilidade de uma ideia, mas fazê-lo de modo tão vago que impede qualquer avaliação crítica dessa ideia.

Usa-se uma definição de precisão quando se pretende tornar o discurso mais preciso, dando um significado particular a um termo que pode ser entendido de modos diferentes («liberdade», por exemplo). Uma forma falaciosa de o fazer é usar uma definição que não capta aspectos fundamentais da noção em causa, o que permite criar a ilusão de que se resolveu o problema em discussão.

Os tipos fundamentais de definições são os seguintes:
  • Definições Explícitas
    • Analíticas
    • Essencialistas
    • Extensionais
  • Definições Implícitas
    • Ostensivas
    • Contextuais
Nas definições explícitas define-se algo por meio de condições necessárias e suficientes ou (o que é equivalente) através do esquema «definiendum é definiens». Por exemplo, «Algo é um Homem se, e só se, é um animal racional» ou «O Homem é um animal racional».

Nas definições implícitas define-se algo sem recorrer a condições necessárias e suficientes. Por exemplo, ensina-se as cores às crianças por definição implícita ostensiva: apontando para exemplos concretos de objectos coloridos. A incapacidade para definir explicitamente algo não significa que não se sabe do que se está a falar, pois a maior parte das pessoas não sabe definir explicitamente as cores, mas não se pode dizer que não conhecem as cores. Contudo, a procura de definições explícitas de noções centrais é uma parte importante da filosofia (e da ciência); a definição de conhecimento, arte, verdade e bem, por exemplo, tem constituído parte importante respectivamente da epistemologia, da estética, da metafísica e da ética.

As definições implícitas contextuais podem ser tão precisas e rigorosas quanto as definições explícitas. Um sistema axiomático para a aritmética, por exemplo, nunca define a soma explicitamente, mas o sistema no seu todo define correctamente esta operação (ver DEFINIÇÃO CONTEXTUAL).

As definições analíticas são as mais fortes de entre as explícitas, no sentido em que toda a definição analítica correcta é uma definição essencialista correcta (mas não vice-versa), e toda a definição essencialista correcta é uma definição extensional correcta (mas não vice-versa).

As definições analíticas captam o significado do termo a definir, resultando numa frase analítica. Por exemplo, a definição «Um solteiro é uma pessoa não casada» é uma frase analítica. As definições analíticas são expressões de sinonímia. Estas definições são nominais; contudo, dadas as críticas recentes à definição metafísica de analiticidade (ver ANALÍTICO), é defensável que são igualmente reais.

As definições essencialistas procedem em termos de condições metafisicamente necessárias e suficientes (ver CONDIÇÃO NECESSÁRIA). Por exemplo, a definição «A água é H2O» é essencialista porque, em todos os mundos possíveis, uma condição necessária e suficiente para algo ser água é ser H2O (ou seja, a água é necessariamente H2O). Esta definição não é analítica porque o significado da palavra «água» não é «H2O» (mesmo as pessoas que não sabem que a água é H2O sabem o significado da palavra «água»).

As definições extensionais procedem em termos de condições necessárias e suficientes. Por exemplo, a definição «Uma criatura com rins é uma criatura com coração» é uma definição extensional porque todas as criaturas que têm rins têm coração, e vice-versa. Mas noutros mundos possíveis poderá haver criaturas com rins que não têm coração, e por isso esta definição não é essencialista (logo, também não é analítica).

As definições explícitas podem falhar por 

1) serem excessivamente restritas (não incluírem tudo o que deviam), 
2) serem excessivamente amplas (incluírem o que não deviam) e 
3) incorrerem no erro 1 e 2 simultaneamente. 

Por exemplo: «A filosofia é o estudo do Homem» é uma definição excessivamente restrita de filosofia, pois exclui disciplinas filosóficas como a lógica e a metafísica, entre outras; «O Homem é um bípede sem penas» é uma definição excessivamente ampla, pois inclui na categoria de Homem bípedes como os cangurus; «O Homem é um animal racional» é excessivamente ampla (poderá haver animais racionais noutras partes da galáxia, e eles não serão humanos) e é excessivamente restrita (alguns bebés humanos nascem sem cérebro, pelo que não podem ser racionais, mas são apesar disso seres humanos).

8 comentários:

MCA disse...

É com muito gosto que vos comunico que atribuí ao De rerum natura o galardão Brilhante weblog.
Agora, como manda a praxe, passem a outro e não ao mesmo :-)
Cumprimentos.

Ludwig Krippahl disse...

Oi Desidério,

Aó queria implicar com uma coisinha: «pode-se definir o ouro».

Eu acho que não se pode definir o ouro, tal como não se pode definir o Desidério. Podemos definir os termos "ouro" e "Desidério", e podemos atribuir (correcta ou incorrectamente) propriedades ao ouro e ao Desidério. Mas não me parece que faça sentido definir o ouro ou o Desidério.

Se eu te definir como um bilionário dás-me 50%? ;)

Desidério Murcho disse...

Pois, é por isso que não podemos dizer que a água é H2O. É a palavra "água" que é H2O.

Estou a gozar, claro.

É evidente que podes definir coisas. Chama-se a isso "definição real" e "definição nominal" às definições de palavras.

Mas, claro, as definições podem estar erradas. A ideia de que as definições não poderiam estar erradas resulta de pensar erradamente que todas as definições são estipulativas. Claro, as estipulações não podem estar erradas. Mas quem disse que todas as definições são estipulativas? Não há qualquer boa razão para pensar isso. A ciência faz carradas de definições que não são estipulativas, e esse é de facto um dos seus papéis principais. Queremos que a ciência descubra a verdadeira natureza das coisas e descobrir isso é descobrir definições verdadeiras de coisas como a água, ouro ou hidrogénio.

De onde vem provavelmente a tua ideia de que todas as definições são estipulativas? De dois lugares. Da filosofia da ciência positivista, que por várias razões, nenhuma delas boa, defendia que todas as definições eram lexicais ou estipulativas. E da campanha retórica do grande Galileu, defendendo que, coitado, não queria procurar essências como os aristotélicos da altura, mas apenas descrever as coisas. Ora, a procura de essências era vista pelos aristotélicos como intrinsecamente ligado à actividade apriorística de procurar definições: definir seria dar a essência. E isto é verdade, só que tipicamente não se pode fazer aprioristicamente. Galileu, para marcar a diferença da nova ciência, diz então que não procura essências, porque não está a pensar em palavras e definições, mas antes descrições da realidade empírica.

Não sei se de deste conta, mas entretanto estamos no séc. XXI. Muita água filosófica correu sob as pontes da ciência. Hoje sabemos que estas ideias positivistas e do grande Galileu estão subtilmente erradas. E ainda dizem que não há progresso em filosofia! Pois, se as pessoas continuarem a ler a filosofia que se fazia há 70 anos, parece realmente que não há progresso em filosofia.

Ludwig Krippahl disse...

Desidério,

«De onde vem provavelmente a tua ideia de que todas as definições são estipulativas?[...]
Pois, se as pessoas continuarem a ler a filosofia que se fazia há 70 anos, parece realmente que não há progresso em filosofia.»


Pelo que percebo do perspectivosmo de Giere, qualquer definição será de elementos do modelo. Pode ser de uma palavra, de um conceito, ou de como algo é assumido ser no modelo. Mas nunca será da coisa em si no mundo real.

Por isso se eu definir Desidério o que estou a fazer é a especificar como o Desidério é representado no meu modelo. E essa definição pode estar errada no sentido em que, por causa da forma como eu defini a representação do Desidério no meu modelo o meu modelo não corresponde adequadamente à realidade.

Mas parece-me inutilmente confusa a ideia que a definição se aplica à coisa em si e não ao modelo da coisa. Dizer que eu não estou a definir uma ideia que tenho de ti mas que te estou a definir a ti mesmo parece-me disparatado.

Ou seja, quando tentas definir o ouro estás na verdade e estipular um modelo que pretendes corresponder ao ouro.

Também não me parece que isto já tenha sido resolvido há setenta anos e que quem discordar é porque não leu nada mais recente...

Desidério Murcho disse...

Mas qual é o argumento a favor da ideia de que não podemos definir o ouro, mas apenas a palavra "ouro"? E como se refuta a ideia de que uma boa definição nominal acaba, em muitos casos, por ser também necessariamente uma boa definição real? Precisamente por eu não ver argumentos da tua parte é que penso ser uma coisa puramente ideológica; defendes isso porque isso encaixa na tua conversa acerca de modelos. Mas podes manter a tua conversa acerca de modelos e admitir que há definições nominais (mas nem todas são nem pretendem ser nominais). A conversa dos modelos é evidentemente compatível com a ideia de que há definições reais.

Ludwig Krippahl disse...

Desidério,

«Mas qual é o argumento a favor da ideia de que não podemos definir o ouro, mas apenas a palavra "ouro"?»

Eu não nego que haja definições reais, nem que seja útil distingui-las das nominais.

Podemos definir a palavra "ouro", o conjunto de caracteres. E podemos definir um elemento de um modelo (que pode ser um modelo matemático, uma maqueta, um diagrama, etc) que represente algum aspecto do ouro. Esta será uma definição real.

Mas em nenhum dos casos estamos a fazer o que quer que seja ao ouro, e esse é um ponto importante para evitar o erro ocasional de se pensar que se pode garantir uma propriedade da coisa acrescentando-a à definição.

Parafraseando Shakespeare, seja qual for a definição que queiramos dar ao conceito, palavra ou modelo, o ouro será sempre dourado. Daí a minha sugestão que se evite dizer que definimos o ouro sem deixar claro que estamos apenas a definir um modelo do que julgamos ser o ouro.

Desidério Murcho disse...

Matas um mosquito com uma bala de canhão se eliminas as definições reais para garantir que as pessoas não possam definir coisas falaciosamente. Seria como eliminar o modus ponens para garantir que as pessoas não cometam a falácia da afirmação da consequente, na qual as pessoas caem precisamente por ser parecido com o modus ponens. Já agora também podes eliminar a física para garantir que os alunos não reprovem; se disseres isso à Ministra da Educação, ela vai gostar de contemplar esse mundo maravilhoso.

Uma definição real não é uma definição de seja o que for num modelo, mas sim a atribuição de uma propriedade à coisa mesma, e não à representação da coisa. Fazemos modelos para representar a realidade e é a realidade que nos interessa e não os modelos. E uma das coisas que nos interessa na realidade é conhecer a sua natureza. Saber que a água é H2O é sumamente importante. O que significa descobrir a definição real de água, e não a definição do nosso modelo de água. Se os modelos não modelam a realidade e nada nos dizem sobre a realidade, caímos num idealismo da representação que me parece escusado e a favor do qual não há qualquer motivação.

As nossas definições podem estar erradas porque a realidade não nos obedece na maior parte dos casos. Por isso podemos vir a descobrir que a água não é H2O, por exemplo. A confusão é pensar que todas as definições são estipulativas. As definições reais não são tipicamente estipulativas, mas sim descritivas: a direcção da adequação não é de nós para a realidade, mas da realidade para nós.

Para evitar a ideia falaciosa de que podemos definir o que nos apetecer e depois esperar que a realidade cumpra as nossas definições, podemos fazer duas coisas. A primeira é declarar que toda a definição é meramente sobre palavras ou modelos mas não sobre a realidade. Isto tem a vantagem de manter a ideia tola de que todas as definições são correctas, mas depois acrescenta que nenhuma define seja o que for na realidade, porque na realidade nada se define. A segunda é chamar a atenção para a diferença entre definições estipulativas, nas quais fazemos o que nos der na gana, e definições reais, nas quais também podemos fazer o que nos der na gana, mas depois pagamos um preço que não há nas outras: podem ser definições falsas. E podem ser falsas precisamente por serem definições reais.

Pondo as coisas em pratos limpos: queres definir deuses como “seres fixes que existem mesmo, realmente, verdadeiramente, absolutamente”? Podes fazer isso. Mas agora decides: ou esta definição é estipulativa e não pode estar errada; ou é uma definição real e nesse caso pode estar errada. No primeiro caso, a definição não pode estar errada porque é uma estipulação — mas daí não se segue que há tais coisas. No segundo caso, segue-se que há tais coisas só se a definição for correcta e só é correcta se houver tais coisas com tais propriedades, e elas não passam a existir só por as termos definido.

Penso que é muito mais iluminante compreender a falácia da ambiguidade entre definições estipulativas e definições reais do que admitir que todas as definições são correctas como as estipulativas. É precisamente esta admissão que faz as pessoas cair em falácias da definição. Mas se todas as definições são de palavras ou modelos, não podes argumentar conta esta admissão; tens de a aceitar mas depois declarar a implausibilidade de que em ciência não se definiu a água mas o nosso conceito ou modelo de água.

Finalmente: as definições da ciência podem estar erradas precisamente porque são definições reais, sobre a realidade, e não definições sobre os nossos modelos da realidade.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Simpático livro, professor Desidério Murcho.

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