domingo, 26 de outubro de 2008

Não podia acontecer na América

Sinclair Lewis foi o primeiro escritor americano a ser galardoado com o Nobel da Literatura, «pela sua vigorosa e gráfica arte de descrição e pela sua habilidade para criar, com humor e genialidade, novos tipos de personagens».

Lewis ficou conhecido pelos seus fantásticos trabalhos satíricos alguns deles distopias intemporais que paradoxalmente (ou não) continuam a ser excelentes caricaturas da América de hoje. Do seu universo ficcional destacam-se Main Street (1920), considerada uma das mais importantes obras de crítica social, Babbitt (1922) - uma sátira à cultura de «massas» -, Arrowsmith (1925), uma crítica da subordinação da ciência a desígnios imediatistas e materialistas ou Elmer Gantry (1927), uma excelente crítica do fanatismo religioso e da hipocrisia concomitante.

Gosto especialmente do Babbit, que alguém descreveu de uma forma que considero extraordinariamente bem aplicada a todos os Babbits que ainda hoje vivem em transição cultural, não aceitando que o mundo que gostariam de impor aos outros está morto para sempre: «lost between two worlds, the one dead to him forever and the other powerless to be born». Aliás, acho espantoso como esta obra prima parece desde as primeiras linhas, que poderiam perfeitamente descrever a génese da bolha do subprime, ter sido escrita ontem:
«His name was George F. Babbitt. He was 46 years old now, in April 1920, and he made nothing in particular, neither butter nor shoes nor poetry, but he was nimble in the calling of selling houses for more than people could afford to pay».
O livro permite-nos ainda um vislumbre do anti-intelectualismo que seria aprofundado noutras obras, nomeadamente o anti-intelectualismo latente naqueles que acreditam, com toda a força da ignorância, que uma estadia numa universidade estadual os transformou em iluminados ecléticos e pensadores independentes quando na realidade apenas seguem acefalamente a «manada», por exemplo quando declaram convictamente ser necessário silenciar radicais, acabar com a imigração e «manter os negros nos seus lugares».

Lewis explicita-nos este ponto noutro parágrafo que não perdeu a actualidade:

«Just as he was an Elk, a Booster, and a member of the Chamber of Commerce, just as the priests of the Presbyterian Church determined his every religious belief and the Senators who controlled the Republican Party decided in Washington what he should think about disarmament, tariff, and Germany, so did the large national advertiser fix the surface of his life, fixed what he believed to be his individuality».

Igualmente interessante é o breve período de rebelião em que Babbitt tentou fugir à insipidez da sua vida monótona e enfadonha. O livro foi escrito pouco depois do dealbar do projecto do novo liberalismo, que na altura não adquirira ainda a esquerdista conotoção actual, e é delicioso ler o que é quiçá o melhor exemplo da excelência acérbica e satírica do autor quando Lewis descreve como vários Babbitts se declaram liberais quasi como sinónimo de «modernos».

O Babbitt de Sinclair Lewis foi fonte de inspiração para muitos, em particular para outro nome grande da literatura, Philip Roth. Roth, que escreveu versões actualizadas sortidas do Babbitt de Lewis - um personagem de Roth em «A marca humana», pergunta-se mesmo «Será que ninguém leu Babbitt?» - inspirou-se noutra obra mais tardia de Lewis, publicada em 1936, para o seu «The Plot Against America».

Embora considerada uma obra menor de Lewis, It Can’t Happen Here (disponível no projecto Gutenberg), é talvez a obra mais interessante numa altura em que estamos a pouco mais de uma semana das eleições que escolherão o próximo presidente dos Estados Unidos.

O It Can’t Happen Here descreve o que acontece numa América alternativa em que nas eleições de 1936 não é o democrata Franklin Delano Roosevelt que foi (re)eleito com todos os votos eleitorais excepto os do Maine e do Vermont que perdeu para Alfred M. Landon. Nesta distopia, que tem início exactamente no Vermont, são outros os candidatos: o demagogo e populista Berzelius "Buzz" Windrip e o senador republicano Walt Trowbridge (o mau da fita nesta história de Lewis é um democrata, ao contrário do que acontece quer em Roth quer no Iron Heel de Jack London).

Escrito em apenas alguns meses, «Não podia acontecer na América» conta-nos a história focada no editor do jornal de uma pequena cidade do Vermont, Doremus Jessup, a voz do liberalismo - e da consciência - na sua área. Apoiado pelo clero católico mais retrógrado e orientado por um secretário maquiavélico, Buzz Windrip decide disputar com FDR a nomeação democrata. Windrip consegue a nomeação explorando o anti-intelectualismo da população e louvando a sapiência dos Babbits com a ajuda da Liga dos Homens Esquecidos (League of Forgotten Men) liderada pelo bispo Paul Peter Prang - inspirado literalmente no padre Charles E. Coughlin, o simpatizante de Hitler que fez da rádio um púlpito para os seus sermões anti-semitas e anti-comunistas ... e para ele, até Roosevelt era um malvado bolchevique.

O senador democrata concorre com um programa indisfarçavelmente totalitário, racista e chauvinista que os homens de bom senso, como Jessup, acreditavam não ter hipóteses de enganar ninguém. No entanto, Buzz ganha a eleição facilmente e a América, a terra dos homens livres, transforma-se numa ditadura fascista no espaço de dias.

Há três anos, por ocasião da reedição da obra de Lewis nos Estados Unidos, Joe Keohane escreveu uma coluna no Boston Globe que vale a pena ler na íntegra e de que o parágrafo, que transcrevo, não sei porquê me recordou o último livro de Primo Levi , «Os afogados e os sobreviventes»...
«When Windrip is elected, all hell breaks loose. Dissent is crushed, the Bill of Rights is gutted, war is declared (on Mexico), and labor camps are established to help shore up Windrip's vaunted ''New Freedom,'' which is more like a freedom from freedom. All that's really left of the old America are the flags and patriotic ditties, which for many is more than enough.

But to Lewis it's not entirely the fault of those who will gladly abide America's principles being gutted. The blame also falls on the ''it can't happen here'' crowd, those yet to realize that being American doesn't change your human nature; whatever it is that attracts people to tyranny is in Americans like it's in anyone else.»

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