Do "Livro dos Portugueses Esquecidos" de Joaquim Fernandes (Círculo de Leitores), que já está nas livrarias, apresentamos a ficha de um judeu português que alguns conhecem, mas que merecia ser mais conhecido.
Costa, Uriel (Gabriel) da
(n. Porto, ca. 1585 – m. Amsterdão, 1640.)
Deste livre-pensador judaico-português, Carolina de Michaelis disse que “por causa da religião sofreu coisas inauditas” e a sua biografía evoca a de Espinosa, excepto no que toca ao seu trágico fim. Filho de pais cristãos abastados, descendentes de judeus, e de alma profundamente religiosa, mas dotado de raciocínio incapaz de acreditar no transcendente, Gabriel da Costa, o seu nome de baptismo católico, converteu-se primeiro ao judaísmo e, por fim, dos dois monoteísmos revelados que confessava, optou pela simples religiosidade “natural”.
Em 1600 matriculou-se na Universidade de Coimbra, decidido a estudar Direito Canónico, objectivo que interrompeu no ano seguinte, antes de abandonar em definitivo a Universidade em 1608. Aos 25 anos, Gabriel da Costa tomou posse do cargo de tesoureiro duma colegiada do Porto e, pouco tempo depois, abalado por uma crise de consciência que se arrastava há anos, trocou o cristianismo pelo judaísmo. Resignou aos bens que possuía, vendeu a casa paterna e embarcou clandestinamente para a Holanda, levando a mãe e cinco irmãos, já que seu pai, Bento da Costa havia entretanto falecido.
Ao que se julga, as primeiras dúvidas religiosas de Gabriel teriam surgido cerca de 1601, inicialmente desencadeadas pelo pavor da impossibilidade da salvação da sua alma, passando depois a duvidar de tais exigências e dos dogmas sobre a vida futura. Dessa primeira reacção racionalista regressara, contudo, à atitude teológica, desta vez sob a doutrina judaica em prejuízo da cristã. Ao tempo em, que fora tesoureiro da colegiada optou por ler o Velho Testamento, estudando a lei no Génesis e no Deuteronómio, identificando-se com o espírito dos Profetas, dos Salmos e do Livro de Job.
O pensador portuense entendeu, essencialmente, que a lei de Moisés era venerada tanto por judeus como por cristãos, ao passo que os Evangelhos e as doutrinas das Epístolas de S. Paulo não falavam senão aos povos cristianizados, de raça diversa da dele. Em segundo lugar, deduziu que a lei judaica, com prémios e castigos meramente temporais. sem salvação nem condenação eternas, sem Satanás nem mistérios, era mais simples e compreensível.
Chegado a Amsterdão, ingressou na comunidade judaica, sujeitou-se à circuncisão e mudou de nome de Gabriel para Uriel. Casou pouco depois, mas a esposa faleceu sem lhe poder dar descendência. Em breve, a desilusão instalou-se, porquanto o novo converso não lograra encontrar nos judeus a convergência das suas práticas com aquilo que pensava ser a lei de Moisés.
Uriel da Costa viu-se, assim, transformado num judeu hetereodoxo, combatendo os fariseus e o farisaismo e afastando das suas práticas. Comportamentos que lhe valeram a crítica dos rabinos que acabaram por declará-lo hereje em Veneza e Hamburgo e excomungaram-no em Amsterdão. Os seus textos foram rejeitados pelas congregações e o anátema da sociedade caiu sobre Uriel que, desautorizado e só, abandonado pelos próprios irmãos, passou a contar apenas com a mãe.
Inconformado, escreveu então uma obra de análise às Tradições farisaicas, em que expõe dúvidas acerca da imortalidade da alma, trabalho esse o médico Samuel da Silva irá contradizer, acusando Uriel de ateísmo. O heterodoxo português não se livra de ser acusado e preso pelas autoridades holandesas. Liberto, é obrigado a queimar os seus livros e sair de Amsterdão.
Todo este processo acaba por incutir no livre-pensador a ideia de que a lei de Moisés é uma criação humana e não fruto de uma revelação divina. Em 1633, porém, reconcilia-se com os rabinos e reingressa na comunidade judaica, num gesto de aparente conveniência e não de sincera convicção. Recusando a prática dos preceitos judaicos, Uriel acabou por ser denunciado por um sobrinho e novamente excomungado.
Durante nove anos resiste neste quadro degradante, que o novo anátema lhe impusera. Isolado e na miséria, não podendo suportar o infortúnio, Uriel da Costa aceitou sujeitar-se à penitência que lhe for imposta. Na sinagoga, o arrependido foi publicamente açoitado e sujeito a vexames colectivos da comunidade. No rescaldo da cerimónia, não suportando o que passara, Uriel suicidou-se.
Principal obra:
Exame das tradições farisaicas conferids com a lei escrita contra a imoirtalidade da alma. Amsterdão, 1623.
Referências bibliográficas:
Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, Vol.II.
Inocêncio da Silva, Brito Aranha, Dicionário Bibliográfico Português, Vol. 7.
Menendez y Pelayo, La Ciência Española. Madrid, 1887.
Carolina de Michaelis de Vasconcelos, Uriel da Costa, notas relativas à sua vida e à sua obra. Coimbra, 1922.
Joaquim Fernandes
terça-feira, 28 de outubro de 2008
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1 comentário:
Quanto sofrimento passou esse livre pensador.muito odio e crueldade com um ser humano por pensar diferente. Deus sive natura.
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