quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Civilização ou barbárie em John Dewey


“À semelhança do que se passa com a vida biológica, a existência da sociedade é devida a um processo de transmissão. É através da comunicação de hábitos de fazer, construir e sentir, por parte dos mais velhos para os mais novos que esta transmissão se processa. Se não acontecer esta comunicação dos ideais, esperanças, expectativas, padrões e opiniões daqueles que mais depressa irão desaparecer do grupo dos vivos para aqueles que começam a fazer parte deste, então a vida social não sobrevive (…). A menos que sejam tomadas medidas de forma a verificar que se processa uma transmissão genuína e completa, qualquer grupo, por mais civilizado que seja, regressa à barbárie e seguidamente ao estado selvagem. De facto, os jovens humanos são de tal forma imaturos que se fossem abandonados a si próprios sem a orientação e ajuda de outros poderiam nem adquirir as competências rudimentares necessárias à própria existência física.”

As palavras acima transcritas são de John Dewey (1859-1952) e foram publicadas em 1916, no seu livro Educação e Democracia.

Dewey é um dos autores mais referidos nos trabalhos académicos que se produzem na área da pedagogia. Toda e qualquer dissertação de mestrado ou doutoramento, artigo ou livro que trate da aprendizagem, do ensino, da formação de professores, da educação para a democracia, da educação científica, da educação artística, da teoria e desenvolvimento curricular, dos métodos pedagógicos, inclui, por certo, o seu nome.

De facto, é inegável a influência das teses que formulou nas concepções de ensino que se retomaram ou formaram no passado século. E isso não aconteceu apenas no seu país - os Estados Unidos da América -, cedo chegaram à Europa e, naturalmente, a Portugal. A vastíssima e diversificada obra que produziu poderá justificar este reconhecimento, mas só em parte. Na verdade, os ódios e as paixões que ela desencadeou contribuíram bastante para isso.

Muitos foram aqueles que, ainda ele era vivo, o acusaram frontalmente de, com a sua proposta “progressista”, contribuir para a acentuada decadência da educação.

Por seu lado, os entusiastas dessa proposta aligeiraram-na e transformaram-na em slogans bem conhecidos como “ensino centrado no aluno”, “preparação para a vida”, “resolução de problemas complexos”, “aprendizagem pela descoberta”, “aprendizagem activa”, etc.

Quem o reconheceu, talvez em primeira mão, foi o próprio Dewey, que passou grande parte da sua vida a procurar esclarecer o sentido das suas palavras. E, nessa tarefa de reposição do que considerava certo, houve aspectos em que insistiu de modo muito vincado: a importância do ensino, o valor do conhecimento e a sua transmissão estruturada.

Dewey criticou sobretudo aqueles que, dizendo segui-lo, contribuíam para a não educação ou para a deseducação, ao defenderam a centração na criança, nos seus interesses e no respeito que mereceriam, ao ponto de advogarem a sua não modificação e proporem actividades pedagógicas sem substância.

Se alguma coisa este pedagogo e filósofo fez questão de deixar bem vincada foi a necessidade de se assumir a mudança intelectual e axiológica quando se exerce a acção educativa. Ainda que, para se chegar a todos os alunos, e não apenas aos mais privilegiados, como ele defendia, fosse importante ter em conta os seus interesses, que deveriam constituir um ponto de partida, mas nunca um ponto de chegada.

Aos professores atribuiu Dewey essa nobre e difícil tarefa de, partindo dos alunos, proporcionarem experiências de aprendizagem verdadeiramente educativas destinadas a desenvolver a cognição e, assim, assegurarem a manutenção da civilização.

Por esta e por outras ideias que veiculou - algumas das quais discutíveis à luz dos conhecimentos actuais - vale a pena a ler a sua obra, na versão original.

6 comentários:

Rui Baptista disse...

Helena: Oxalá o trio da 5 de Outubro,responsável pelos destinos da Educação siga o seu conselho de valer a pena ler a obra de John Dwey na versão original.

Embora, como muito bem diz,"algumas [dessas ideias] sejam discutíveis à luz dos conhecimentos actuais".

Anónimo disse...

Olá,

Concordo com todos os pontos neste post. Vim de uma educação dita de excelência numa escola de ensino privado e revejo esses pontos todos, quer nos alunos quer nos professores.
Também sou adepto de um modelo de ensino que enfoque na importância deste, no valor do conhecimento e na transmissão estruturada.
Um bom professor é aquele que sente o aluno, as dificulades deste mas também os pontos fortes e o leve pela mão até chegar ao objectivo desejado, que é transmitir o conhecimento e incutir sentido crítico no que se faz.
Penso que a palavra-chave para o sucesso deste modelo de ensino é a empatia entre professor e aluno, embora não seja requisito absolutamente indispensável.

Helena Damião disse...

Caro Rui, penso que se alguns responsáveis por políticas e medidas educativas, neste e noutros países, estudassem o que de sério tem sido feito na área da filosofia da educação, bem como tem na investigação científica na área da pedagogia provavelmente pensariam duas vezes antes de tomarem as decisões que tomam. Na verdade, tenho percebido que a invocação que fazem das grandes teorias pedagógicas pouco ou nada tem a ver com elas, chegando mesmo a inverterem o seu sentido. Daí eu pensar que o mal da educação não se situa propriamente nas teoria pedagógicas bem formuladas e testadas, mas, sim, nas estranhas apropriações que muito fazem delas.
> Entendo que, entre as mais equívocas e lesivas apropriações das ideias pedagógicas na actualidade contam-se a negação da educação de excelência e a estruturação do ensino e das aprendizagens, sob o falso argumento de que é preciso "centrarmo-nos" no aluno. Ora, como Berri, parece-me óbvio que não se trata de aspectos mutuamente exclusivos, mas, sim, de aspectos que podem e devem articular-se, e isto independentemente do meio social, cultural, étnico em que nos situemos.

Helena Damião disse...

Caro Rui, penso que se alguns responsáveis por políticas e medidas educativas, neste e noutros países, estudassem o que de sério tem sido feito na área da filosofia da educação, bem como tem na investigação científica na área da pedagogia provavelmente pensariam duas vezes antes de tomarem as decisões que tomam. Na verdade, tenho percebido que a invocação que fazem das grandes teorias pedagógicas pouco ou nada tem a ver com elas, chegando mesmo a inverterem o seu sentido. Daí eu pensar que o mal da educação não se situa propriamente nas teoria pedagógicas bem formuladas e testadas, mas, sim, nas estranhas apropriações que muito fazem delas.
> Entendo que, entre as mais equívocas e lesivas apropriações das ideias pedagógicas na actualidade contam-se a negação da educação de excelência e a estruturação do ensino e das aprendizagens, sob o falso argumento de que é preciso "centrarmo-nos" no aluno. Ora, como Berri, parece-me óbvio que não se trata de aspectos mutuamente exclusivos, mas, sim, de aspectos que podem e devem articular-se, e isto independentemente do meio social, cultural, étnico em que nos situemos.

Desidério Murcho disse...

Penso que a apropriação errada de que fala a Helena é apenas a continuação do mau tipo de trabalho académico de que já se queixava o Eça.

Seja qual for a teoria da educação que se defenda, se não há trabalho académico de qualidade, nem excelência intelectual e escolar, tudo fica a eterna choldra de que falava o Ega.

Esse é o nosso problema central, eu penso: importa-se qualquer coisa, e isso até pode ser bom, mas o que se importa é mal compreendido, mal assimilado, pior aplicado.

Lembro-me de aulas na universidade em que acontecia o seguinte: ao ler um mau comentador de um filósofo sofrível, o comentador dizia ainda mais loucuras do que o filósofo de partida; mas a professora exagerava ainda mais e dizia ainda mais disparates; no fim, era o completo delírio, obtido por incompetências em cadeia. E eu nem quero saber o que escreviam os meus colegas nos seus trabalhos... que depois se tornaram professores.

Agora, por que razão isto acontece? Não sei. Mas uma das coisas que pode ajudar a impedir que aconteça é a crítica e a discussão aberta. Se os alunos daquela professora tivessem a liberdade de olhar criticamente para o que estavam a ouvir, os disparates não passariam todos como se nada fosse. Se a própria professora tivesse a liberdade de ser crítica, na sua dissertação de mestrado ou doutoramento, relativamente aos comentadores que era obrigada a ler, talvez os visse com outros olhos e ganhasse outra compreensão das coisas.

Transfira-se isto para o ensino secundário, por exemplo. Se quem faz os programas e os manuais não andasse só a copiar às cegas o que mal entende, com base nas ideias mal entendidas dos professores que os formaram, as coisas não seriam tão facilmente a choldra que são.

Isto é o que eu penso, mas posso estar redondamente enganado.

Unknown disse...

Uma óptima ideia esta de escrever sobre Dewey. Autor incontornável, as suas ideias têm servido para sustentar práticas pedagógicas muito discutíveis. Para além de serem, em grande parte, deturpadas (como a Helena tão bem descreve no presente texto), é preciso notar que muitos estudos se fizeram depois de Dewey. Sem retirar uma linha à importância e genialidade deste autor, não nos podemos esquecer que viveu numa época anterior a muitos trabalhos desenvolvidos no âmbito da pedagogia e da psicologia e que nem sempre confirmaram as suas ideias. Gostaríamos de salientar, entre esses trabalhos, aqueles que, oriundos da psicologia cognitiva, nos revelam que a aprendizagem a partir de problemas (uma das grandes orientações curriculares actuais) é incompatível com as características da nossa memória. Dadas as limitações desta última, o confronto com situações complexas, como são os problemas, impede o tratamento da informação necessário à sua aquisição e recuperação posterior. Os problemas devem ser resolvidos depois do aluno ter adquirido os conhecimentos indespensáveis à sua resolução. Estar a organizar o ensino/aprendizagem de forma inversa, como prescrevem as actuais orientações pedagógicas e curriculares, pode ser um dos grandes obstáculos do projecto educativo que consiste, acima de tudo, em fazer com que todos aprendam e se desenvolvam.
Parabéns Helena pelo texto e pelo debate que pode suscitar.

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