A educação sexual desapareceu. Não dei conta, porém, de a Lei n.º 60/2009, de 6 de Agosto (regulamentada pela Portaria n.º 196-A/2010 de 9 de Abril de 2010) que tornou obrigatória esta "educação para..." ter sido revogada. Para uma lei deixar de ter efeito, não tem de ser revogada?
Critiquei essa "educação" e essa lei, nomeadamente pelo seu carácter doutrinal, mas, atenção, a educação financeira e para o empreendedorismo tem exactamente o mesmo carácter... O objecto de doutrinamento é diferente, mas o espírito doutrinal é o mesmo. O que pensar? Que há uma doutrina má (como a sexual) e uma doutrina boa (como a financeira e empreendedora)? Doutrina é doutrina. E a escola pública não pode ser doutrinal. Se quisermos invocar a lei, está na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo.
Passo ao documento actualizado da ENEC: a mesma narrativa, as mesmas frases, as mesmas expressões do anterior e do anterior ao anterior e de muitos outros paralelos... Não importa a ordem pela qual surgem as expressões e as frases, a retórica é circular. Parece que se entende, sendo incompreensível; parece evidente, sendo obscura.
Detenho-me apenas e só na participação dos chamados "agentes educativos":
- pais/encarregados de educação, que devem participar activamente no início do ano escolar, no plano de turma relativo à Educação para a Cidadania. O Plano deverá ser aprovado em reunião de conselho de turma, no qual também devem participar. Após aprovação do Plano, deverão ser informados de todas as atividades a desenvolver no âmbito da concretização dos projetos que envolvam Educação para a Cidadania.
Terei lido bem?! Não há diferença entre a educação que a família deve proporcionar e aquela que deve ser proporcionada pela escola? Os pais são o que são, e, uma coisa é certa, fazem parte de uma sociedade que não é bonita de se ver... Insisto: a escola tem o dever de procurar mudar a sociedade para melhor, não de acolher todas as "sensibilidades", "tendências", "interesses", seja o que for. Por isso, tem de manter uma distância estratégica da sociedade, dos seus membros, dos pais.
- comunidade, com a qual as escolas podem estabelecer parcerias, em concreto, com entidades externas desde que em estreita colaboração com as famílias (pais e encarregados de educação).
Estas entidades serão as empresas, fundações, instituições, organizações que há muito gravitam em redor da educação para a cidadania com o fito de chegar aos alunos e de os influenciar desta ou daquela maneira. O seu poder tem aumentado ao ponto de, em alguns casos, substituírem os professores e assumirem a sua formação. E os professores consentem, aderem... Mas parece que agora, para manterem o seu lugar, têm de agradar às famílias. Como as irão convencer de que são bons parceiros? Não deve ser difícil com as estratégias que algumas foram aperfeiçoando.
- alunos declarados "autores", sendo que, em tal qualidade, participam também na elaboração e aprovação desse Plano.
Se o aluno é autor, tem autoridade. E desde o primeiro ciclo. É interessante perceber que ao professor não é conferido, no documento, semelhante estatuto e atributo. Por outro lado, se o aluno já sabe elaborar um plano para se educar a si mesmo, e tem discernimento para o aprovar porque se insiste em educá-lo para a cidadania? Só quem já é educado é que pode saber o que é importante para educar, não é?
Pelas Aprendizagens essenciais, só passei os olhos. Um suplício! Primeira coluna "Organizador/dimensão": o que é isso?! Segunda coluna "Conhecimentos, capacidades e atitudes": onde ficou o último elemento do quarteto, os "valores"? Terceira coluna "Ações estratégicas de ensino orientadas para o perfil dos alunos": julgo que se quer dizer "métodos"... e que métodos!
Não, Senhor Ministro, não vou contribuir para a consulta pública.
Deveria? Sim, pois estudo há décadas o currículo escolar (com interesse pela educação para a cidadania) e ensino nessa área, incluindo na formação de professores, mas, a verdade, é que, parafraseando o físico Ernest Pauli, os documentos agora apresentados não apenas não estão certos como nem, ao menos, estão errados. São uma amálgama de pseudo-ideias, que nem a filosofia nem as ciências que se dedicam à educação podem corroborar.
E mais do que isso, tentam responder a solicitações, conveniências, compromissos, pressões... de grupos, agentes, entidades... a quem o poder político tem dado, e continua a dar, acolhimento e expressão. Mantendo o essencial da dita retórica, governos mais à esquerda puxam para um lado e os mais à direita puxam para outro lado. Ora, a educação para a cidadania não pode ter orientação partidária. A neutralidade neste aspecto tem de ser escrupulosamente respeitada, porque isso é o correcto e porque está nas duas leis-mestras acima invocadas.
Isto não significa, bem entendido, que a neutralidade deva abranger os valores éticos. Isso nunca pode acontecer. Educar para a cidadania é educar para os valores éticos, que são universais. E isso faz-se no quadro das disciplinas, na História, na Literatura, na Música, na Física, na Geografia, na Filosofia, na Economia... Fora das disciplinas, à margem do conhecimento que veiculam, a educação para a cidadania é vazia de conteúdo, resvala para a doutrina.
Enfim, comentar esses documentos, em sede de consulta pública, seria uma tarefa infinita e assaz difícil, tantos são os aspectos críticos a indicar e, pior, a explicar com base em argumentos reconhecidos como válidos, que não se podem confundir com declarações inconsequentes, as quais mesmo repetidas ad infinitum, não se tornam verdadeiras... Uma tarefa incompatível com o espaço limitado do formulário disponibilizado pela DGE para recolha de contributos (não consegui confirmar isto pois os links indicados no site não abrem).
E de nada resultaria essa tarefa, não é? Por regra, os documentos curriculares de educação para a cidadania são publicados tal como se apresentam na versão provisória. Não falo de cor, tenho feito o exercício de comparação entre uns e outros.
Uma última nota: estes documentos são piores do que os de outros governos? Não. Nem piores nem melhores. São iguais, na matriz, na retórica, na ligeireza, no desconcerto com que se encara a formação cidadã, ou seja, a formação ética dos nossos alunos.
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