sexta-feira, 4 de julho de 2025

Apontamentos — para reflexão

 Há um interesse global em estupidificar as pessoas

António Carlos Cortez, em entrevista recente ao Semanário Expresso (ler aqui) 

1.

No final do século passado, "foi êxito estrondoso na Alemanha" o livro do professor de literatura Dietrich Schwanitz intitulado Cultura — tudo o que é preciso saber, tradução portuguesa de 2004, edições D. Quixote. Logo a abrir, numa "Introdução sobre o estado das escolas", o autor, lembrando o naufrágio de Robinson Crusoe, escreve:

"No que à cultura diz respeito, encontramo-nos na situação de Robinson. Naufragámos. Isto é grave, mas não é uma catástrofe, desde que não percamos o moral, não entremos em pânico, sejamos capazes de aprender e tenhamos determinação e persistência suficientes para nos reorganizarmos."

E continua:

"O ensino transformou-se num reino das trevas. No seu interior evaporaram-se as ideias sobre o que devemos, afinal, aprender. Uma reflexão séria, apoiada numa base científica sólida, sobre os objetivos do ensino, é algo que não se vislumbra acontecer em parte alguma."

2.

O escritor Afonso Cruz, no seu mais recente livro, sugestivamente intitulado O vício dos Livros II (Companhia das Letras, Maio de 2025), reflecte, em textos curtos, sobre os problemas inerentes à relação entre os livros e os leitores, na procura de resposta a questões: como tornar a leitura apelativa? como levar os jovens a ler? como levar os adultos a ler? O escritor deve escrever para o leitor?

São questões de sempre que estão intimamente ligadas a outras — literacia, conhecimento, educação e cultura. É na escola que tudo começa...

Num desses capítulos, o autor, cita John Carey, professor emérito de Literatura Inglesa, que num livro publicado em 1992, no qual analisa a relação entre a literatura e as massas entre 1880-1939, escreveu:

"Os intelectuais não poderiam, evidentemente, impedir a alfabetização das massas. Mas podiam impedi-las de ler literatura, tornando-a extremamente difícil de ser compreendida — e foi isso que fizeram. O início do século XX assistiu a um esforço deliberado, por parte da intelectualidade europeia, de excluir as massas da cultura. Em Inglaterra, o movimento ficou conhecido como modernismo. Noutros países europeus, recebeu nomes diferentes, mas os ingredientes eram essencialmente os mesmos, revolucionando as artes visuais e também a literatura. O realismo do tipo que se supunha que as massas apreciavam foi abandonado. O mesmo aconteceu com a coerência lógica. A irracionalidade e a obscuridade foram cultivadas."

Os escritores não estavam sozinhos... Este elitismo faz parte das políticas culturais da época e de uma determinada definição de cultura, defendida e apoiada pelas determinações oficiais, em termos de educação, de divulgação do livro. Cultura era, então, a alta cultura... Havia, assim, os intelectuais cultos e o povo inculto.

3.

Lembremos:

— Entre nós, o Estado Novo, criou, em 1936, o Instituto Alta Cultura, designado Instituto para a Alta Cultura a partir de 1952, com o fim de apoiar a investigação científica e a divulgação da cultura portuguesa. 

— Este Instituto só foi extinto em 1976. Deixou de ter funções na área da Investigação Científica, funções que passaram para o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), agora Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), um I.P. que iniciou a sua actividade em 1997.

Perdeu-se, entretanto, o termo "Cultura", ficando apenas "Investigação"...

Mas os Programas de Governo iam manifestando a sua preocupação com as questões culturais:

— no primeiro governo após o 25 de Abril de 74, havia o Ministério da Educação e Cultura

— em 1983, surge, pela 1.ª vez, um Ministério da Cultura.

E a CULTURA foi passando de Secretaria de Estado a Ministério, e vice-versa.

Significativamente, ou não, no actual governo a designação passou a ser "Ministério da Cultura, Juventude e Desporto".

Isaltina Martins

3 comentários:

Anónimo disse...

Como professor do ensino secundário, da disciplina de Física e Química, embora também já tenha lecionado Matemática, Geografia e Biologia, entendo perfeitamente as lúcidas palavras de António Carlos Cortez e Dietrich Schwanitz sobre descalabro do ensino nas escolas. Eu sou do tempo em que ainda se aprendia a calcular raízes quadradas “à mão”. De então para cá, foi-se instalando o paradigma de que muito mais importante do que aquilo que se ensina e aprende na escola são os diplomas que nos habilitam a todos, sem exceção, para o mundo do trabalho ou para entrarmos na universidade, se preferirmos o prosseguimento de estudos. Dentro desta conformidade, os professores limitam-se a ensinar um mínimo de matéria e de muito fácil aprendizagem pelos alunos. Numa dada altura, introduziram o ensino por objetivos para os alunos identificarem facilmente o muito pouco que tinham de aprender. Dietrich Schwanitz levanta a questão sobre os objetivos do próprio ensino. Efetivamente, o atual rumo de prosseguir com a redução do que se pode ensinar e aprender na escola, poderá conduzir ao fim estupidificante do ensino e da aprendizagem.
Tenho para mim que alguns destes problemas do ensino têm a ver com a sua massificação nas últimas décadas, mas sou um fervoroso defensor da igualdade de oportunidades. Igualdade absoluta, não!

Mário R. Gonçalves disse...

Muito bem visto, concordo inteiramente, e acrescento: na música também o 'modernismo' ultra intelectual, ultra elitista fez das suas. Enquanto a música culta até ao século XX era também muito popular - Vivaldi, Handel, Haydn, Mozart, a ópera italiana - Verdi, Rossini ... - sendo composta com muito saber e inspiração, a música ' moderna' é o lixo atonal electro-acústico que se sabe, intragável, para um nicho de iluminados. Resultado: o povo gosta é de punk, rap, hip-hop, heavy metal e qualquer outra coisa com batida em sol-e-dó. E estupidificante também. E a massificação das coisas, desde a literatura ao ensino passando pelas viagens e pela gastronomia, dá sempre o mesmo: degradação, pauperização. Quanto mais se alarga o nível social mínimo de bem-estar, mais se rebaixa o nível cultural. Porque será que nalguns países não é tanto assim? Estou a lembrar-me do Báltico, da Noruega, do Canadá. Qualquer coisa de 'clássico´ainda remanesce por essas bandas.

Carlos Ricardo Soares disse...

Estupidificação é uma palavra tipo banha da cobra. Faz parte do léxico de qualquer prestidigitador que se preze. Se fosse na dança, seria contorcionismo, se fosse técnica de vendas, seria ilusionismo, enfim, podíamos explorar por aí fora o fértil território do histrionismo e da retórica à base de unto, mas com o courato às avessas. Mas o interesse global, então, deixa-nos pasmados a olhar para ver onde para o interesse e começa o global e vice versa. Existe uma cilada nos apelos e nos incentivos à leitura indiscriminada, porque faz supor que é um fator de desenvolvimento de capacidade de análise crítica sem os contraceptivos da censura, mas não tem na devida conta que o busílis da questão é “como sobreviver a uma leitura indiscriminada?”, ou, por outras palavras “como saber o que não vale a pena ler antes de ler?”. A questão dos filtros, que não deve ser sacrificada à problemática da censura, está a tornar-se incontornável, até porque o tempo é escasso, sobretudo quando se trata de ler com olhos de ver, sabendo nós que poucos são os remunerados para ler e que a maioria dos leitores paga os livros e ainda gasta uma parte do seu tempo, que pode ser considerável, para os ler. Não sei como dar a volta a este problema mas, a continuar assim, é de esperar que os leitores, mesmo que não percebam o logro, ou a insustentável razão dos insistentes apelos à leitura, claudiquem naturalmente na ingente e árdua e onerosa tarefa de descodificar léxicos. Estupidificação seria se fossemos obrigados a ler. Estupidificação obrigatória.
Mas há que admitir, não obstante, que existem outros processos de estupidificação obrigatória, mais ou menos subtil e maliciosa. Se nos tratarem como estúpidos, e isso não acontecerá por virtude de quem o faz, ao fim de certo tempo, existe o risco de nos tornarmos estúpidos. E admito que também haja formas de estupidificação voluntária, como há variadas formas de intoxicação voluntária. No entanto, o meu foco e o meu interesse vai para o reverso da questão. Se nos tratarem como inteligentes, capazes, respeitáveis, responsáveis, dignos, acredito que, se o não fossemos já, nos tornaríamos progressivamente.

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