quinta-feira, 22 de setembro de 2011
Sobre Egas Moniz (1874-1955)
Novo post de António Mota de Aguiar:
Egas Moniz, que teve uma vida cheia de acontecimentos, quer na sua desajeitada passagem pela política, quer na investigação científica que levou a cabo com sucesso e nas lutas que engajou para defender a sua descoberta científica, jaz, por vontade testamentária, numa humilde campa rasa do cemitério da sua Avanca natal, ao lado da sua companheira de toda a vida.
No livro que escreveu, A Nossa Casa, publicado em 1950 e dedicado a sua mulher, Egas Moniz narra a sua infância em torno da Casa do Marinheiro, “donde a família provém. Ali todos se juntavam em dias festivos; templo de confraternização, amizade e harmonia em que sempre viveu a minha gente.”
Em casa de Egas, os pais tinham dificuldades financeiras, o que os terá levado a ceder a educação do filho, quando Egas tinha cinco anos, ao tio abade, que vivia em Pardilhó, e onde ingressou na escola do padre José Ramos. Todos os dias ia à escola a pé, mas acompanhado por um criado. Dormia no quarto da criada, por medo e terror nocturno.
Da sua infância guarda uma certa melancolia, mesmo tristeza, porque, ao terminar a licenciatura, era o único que restava da família, todos os seus familiares próximos tinham falecido.
Após terminar o ensino primário, foi para o Colégio jesuíta de S. Fiel, “cuja propina era bastante elevada”. “Em 1899 havia neste colégio 310 pensionistas da aristocracia e da elite política do país”.
Egas Moniz elogia em, A Nossa Casa, a boa qualidade de ensino que recebeu neste colégio, onde assinala que se faziam experimentações científicas e, por iniciativa do padre Joaquim Silva Tavares, em 1902, se fundou a revista Brotéria, publicação científica dos professores deste colégio.
De São Fiel, Egas Moniz recorda o padre Manuel Fernandes de Santana (1864-1910), que o desaconselhou a seguir a carreira eclesiástica, pois duvidava da vocação de Egas.
É este padre Santana que, anos mais tarde, mantém uma acesa polémica com Miguel Bombarda, autor de A Consciência e o Livre Arbítrio, já aqui tratado.
Em 1891 entra para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e, uns anos mais tarde, levado pelo Conselheiro José Luciano de Castro (1834-1914), um dos fundadores do Partido Progressista, e figura central das últimas décadas da Monarquia, Egas Moniz entra na política. Em 1900 é eleito deputado progressista por Tondela.
Raul Brandão escreverá nas suas Memórias que Egas Moniz era um “conspirador e político até à medula”. De facto, encontramo-lo nas principais acções políticas desta época como conspirador envolvido no derrube da monarquia, e, mais tarde, na República.
Quando em Maio de 1907 D. Carlos dissolve as cortes e se entra no período conhecido como “ditadura franquista”, sucederam-se os primeiros encontros para derrubar a monarquia. Egas Moniz faz parte do grupo conspirador que, em Janeiro de 1908, tenta raptar João Franco e transportá-lo para um navio, também raptado pelos conspiradores. A conspiração falha, e Egas Moniz está entre os 120 conspiradores presos. Todavia, para sorte sua, a 1 de Fevereiro dá-se o regicídio e, cinco dias depois Egas Moniz é posto em liberdade. Sabe-se lá como evoluiria a sua vida se este acontecimento não se tivesse produzido.
Egas condenou o assassinato do rei e do príncipe herdeiro, e defendeu que o movimento revolucionário que pretendia prender João Franco nada tinha a ver com o regicídio.
Em Agosto de 1908 vemo-lo numa manifestação anti-religiosa, ele que tinha sido educado pelos jesuítas, outra vez no campo republicano, e fazendo dois dias depois um discurso no parlamento de “inexplicável ambiguidade”, segundo nos diz o Prof. João Lobo Antunes, em Egas Moniz Uma Biografia, que acrescenta:
“No fundo, o sentimento de Egas em relação à religião era algo ambivalente e este manteve com o clero uma relação de mútuo respeito e afabilidade. Confessaria mais tarde: «Nós, ateus, vivemos por vezes situações curiosas. Por exemplo, eu sei que a minha mulher terá um profundo desgosto se o meu funeral não tiver a presença de um padre». Egas far-lhe-ia a vontade com a «condição de ser só um padre»”.
Alguns anos mais tarde, em Junho de 1915, encontramo-lo ligado a uma intentona, “para repor a obra moderada do general Pimenta de Castro”.
Em Dezembro de 1916 é de novo acusado de uma intentona militar liderada por Machado Santos.
Em 12.2.1917, numa entrevista dada ao jornal A Opinião, argumenta:
“Sou contra todo e qualquer movimento revolucionário e muito especialmente no momento que atravessamos, deveras crítico para a nossa nacionalidade. (…) Bom seria que se formasse uma agremiação patriótica, fora de todas essas concepções (…) cujo programa se condensasse nesta simples divisa – Pelo País.”
Alguns meses mais tarde, em Outubro de 1917, funda o Partido Centrista Republicano, que classifica de “organização republicana de direita”, procurando nele reagrupar, numa coligação, todos os partidos da direita, para fazer face ao Partido Democrático de Afonso Costa, de quem era acérrimo inimigo.
De 5 a 8 de Dezembro de 1918 deu-se a revolta militar de Sidónio Pais.
“Que grupos políticos estiveram com Sidónio Pais na Rotunda”? Pergunta-se a historiadora Maria Alice Samara. “Em primeiro lugar, «amigos íntimos de Egas Moniz», ou seja, homens do partido centrista, como por exemplo Tamagnini Barbosa, que não actuaram, contudo, enquanto unidade política, mas sim como agentes individuais.” (História da Primeira República)
Em Abril, o Partido Centrista apoiava totalmente a ditadura imposta por Sidónio Pais e fundia-se com o Partido Sidonista, o Partido Nacional Republicano.
O País atravessava uma grave crise económica, não era por isso um homem que ia levantar Portugal. Por isso, compreende-se mal por que se integrou num bloco tão heteróclita, sem grande hipótese de sucesso. De resto, poucos meses depois do golpe militar, avisaria Sidónio Pais que o Partido se desorganizava de dia para dia e que sem a criação de uma forte agremiação partidária, o regime acabaria por baquear.
Em Fevereiro de 1918 Egas Moniz é nomeado por Sidónio Pais responsável pela legação de Madrid, onde vai tratar das relações diplomáticas com o Vaticano e, com a Espanha, “do aproveitamento da bacia do Douro para produzir energia eléctrica.”
Em Agosto desse ano é nomeado ministro dos negócios estrangeiros em Paris, para negociar, pela parte portuguesa, o Tratado de Paz que pôs fim ao conflito mundial. Porém, com o assassinato de Sidónio Pais, é substituído por Afonso Costa.
Abandona Paris em 1919, ano que pôs fim à sua carreira política.
Muitos anos mais tarde, ao abandonar o ensino, em 1944, a um grupo de alunos que viera homenageá-lo, Egas Moniz dissera-lhes:
“Transviei-me, em tempos, da minha vida médica deixando-me arrastar pela actividade política (…). O único bem que tirei desse afastamento foi reconhecer que andava pelo caminho errado.”
Egas Moniz teve uma vida política activa, onde não faltaram “conspirações revolucionárias” e intentonas, por vezes no campo de Afonso Costa, a quem odiava.
Paralelamente à sua faceta de político, Egas Moniz diz que nunca abandonou os estudos neurológicos e, em 1911, é provido em lente catedrático da cadeira de Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina de Lisboa, ramo da ciência para a qual ele sempre se inclinara, e universidade a que ficou ligado para o resto da sua vida.
Ainda no tempo de aluno da Universidade de Coimbra Egas Moniz revolta-se contra o ensino ministrado, critica o seu carácter livresco e o “enciclopedismo” vigente.
E 1901, em provas para o doutoramento, escreveu vários trabalhos sobre sexualidade, indo contra a opinião dos mestres da universidade.
Os seus trabalhos em sexologia, tornaram-no conhecido nesta matéria, tendo na altura emitido vários pareceres em matérias legais, além de ter dado várias conferências, as quais colocavam problemas considerados tabus à sociedade de então.
Quando vem para Lisboa, instala o seu consultório na área do Chiado, e anuncia que dá consultas de “doenças nervosas”, e que possui uma instalação de “Electroterapia geral com duches estáticos, correntes galvânicas, farádicas, etc.”, como tratamento para patologias diversas, como hipertensão arterial e arteriosclerose, terapias que João Lobo Antunes considera mais que discutíveis quanto à eficácia, que nos diz ainda que a sua clínica estava longe de se limitar à neurologia e à psiquiatria. “O seu receituário incluía purgantes, drogas para o coração, gripe, impotência sexual e poluções nocturnas.”
O certo é que se tornou um neurologista conhecido e médico assistente de figuras importantes da sociedade portuguesa, como Fernando Pessoa e Mário Sá Carneiro, entre outros.
Além das actividades que mencionei: professor, político e clínico de sucesso, ganhava dinheiro com seguros e com actividades comerciais, fabris, que ao longo da vida empreendeu. Gabava-se de ser um importante comprador de antiguidades e, possivelmente, também terá vendido algumas. Egas Moniz sabia ganhar dinheiro, foi um homem rico (não vejo nada de mal nisso quando o enriquecimento é licito!) que vivia em grande estilo: viajava de primeira em comboio e em barco, apreciava os bons carros – o último que teve foi um Cadillac – “modelo único em Portugal, com strapontins.” “Nas viajas longas viajava com motorista e trintanário.”
Frequentava hotéis de luxo, como as termas de Vidago, onde convivia com o seu “velho amigo” presidente da República, Óscar Carmona, e hospedava-se no Hotel Palace do Estoril onde se encontrava com a aristocracia da época.
“Continuava a viver fidalgamente, embora na sua declaração para o imposto suplementar referente a 1941 registasse apenas 34.800$00 de rendimento profissional…”.
Faço notar, contudo, que esta ostentação de riqueza se dava numa cidade com muita pobreza, como era Lisboa nestas décadas.
Possuiu ao longo da vida moradias sumptuosas. Durante a sua permanência na Legação em Madrid, Egas Moniz ajudou a restabelecer as relações diplomáticas com o Vaticano, e, em 1943, vendeu-lhes a luxuosa moradia que tinha mandado construir em 1919 na Avenida Luís Bívar, em Lisboa.
Desde criança, do tempo do tio abade, teve sempre criados a servi-lo. Na casa de Avanca, hoje museu, em 1920, tinha “um feitor, três criados, uma cozinheira e um criado de mesa.”
Egas Moniz teve alguns inimigos, que, ao longo da vida lhe chamaram vários nomes: “Oportunista e cobarde”, “célebre aventureiro”.
Fernando Pessoa não teve muita simpatia por ele, porque escreveu o seguinte:
“O que me indigna não é que esse parvo da ciência tenha estas opiniões. É que eles gozem, no nosso meio de idiotas, de prestígio suficiente para que a essas opiniões se ligue importância”.
E acrescenta:
“O Dr. Egas Moniz é o conselheiro Acácio da neurologia nacional. Nunca tem uma opinião própria. Nunca esculpiu relevo em uma única frase. Seguiu sempre.”
O jornal a “A Luta” de Brito Camacho, escrevia em 1918 que: “O Sr. Egas Moniz tem sempre, em política, opiniões excessivamente provisórias”.
Egas Moniz não mostrou simpatia pelo Estado Novo, embora tivesse “excelentes relações” com Óscar Carmona e alguns ministros do Estados Novo, seus antigos companheiros na Universidade de Coimbra. O governo de Salazar tratou-o com respeito, embora Egas Moniz tivesse “um ódio de estimação” a Salazar, tal como o tivera a Afonso Costa. Em 22.10.1945, numa entrevista à “República” diz que:
“…sem liberdade de expressão de pensamento não pode haver progresso social. A liberdade só existirá quando desaparecerem os censores, carcereiros das ideias, déspotas do pensamento alheio”.
Como político, a meu ver, foi um desastre. Em 1917, faltava no leque partidário da República o partido que ele precisamente criou, o Partido Centrista Republicano, “uma organização republicana da direita”, como ele o intitulou.
Nessa altura, o partido centrista deveria ter servido para sustentar a República, tanto mais que a Guerra Mundial tinha chegado ao fim, e tentar, nas próximas eleições – na República havia democracia -, colocar o seu partido o melhor possível, e proceder às alterações que entendesse as melhores segundo as suas ideias políticas.
Mas não foi isso que aconteceu, ao contrário, enveredou pelo apoio a um golpe de estado. Tivesse ele tido uma acção dentro do quadro da democracia e teria contribuído para evitar os traumas que as gerações vindouras vieram a conhecer.
Em vez disso, provavelmente por ambição política, afunilou por um golpe de estado improcedente, que causou durante oito anos uma crise que levaria a outro golpe de estado, o de 26 de Maio de 1926, e ao fim do regime republicano.
Anos mais tarde, em 1939, sofreu um atentado de um doente seu, que quase o matava. Agradeceu a Salazar pelo interesse que este tivera pela sua saúde: “…Venho agradecer por este meio enquanto não se proporciona o ensejo de o fazer pessoalmente…” mas Salazar nunca o recebeu.
Aos 51 anos Egas Moniz, empreende a carreira de investigador científico, propondo-se como objectivo visualizar os vasos cerebrais.
“Vivia atormentado pelo desejo de alcançar o fim, isto é, um método de visibilidade vascular para a localização dos tumores cerebrais (…) conseguir um líquido opaco ao Raio X.”
“Era necessário obter um líquido que fosse inócuo na injecção das artérias cerebrais,” escreve ele nas Confidências.
Depois de várias tentativas, consegue, a 28 de Junho de 1927, a 1ª arteriografia ao vivo:
“Pela primeira vez vimos ao vivo na radiografia obtida, os vasos cerebrais.”(…)
“Quando vimos pela 1ª vez as artérias cerebrais aos Raios X, denominámos a descoberta como «Encefalografia arterial» (…) a breve trecho deixámos essa designação para outra mais simples: «angiografia cerebral».”
Com a radiografia das artérias do cérebro na pasta, rumou a Paris para fazer parte da sua descoberta, apresentando uma comunicação em 7 de Julho desse ano, subordinada ao título “encefalografia arterial, sua importância na localização dos tumores cerebrais.”
A partir de aqui foram muitas as viagens que fez ao estrangeiro, em particular a Paris, por ser o País onde a neurologia, nestas décadas, estava mais desenvolvida.
Nas “Confidências de um Investigador científico” Egas Moniz detalha as exposições e conferências que fez, as lutas que travou, por um lado, para fazer reconhecer internacionalmente as suas descobertas, por outro lado, para as defender do plágio ou da apropriação ilícita por outros, como a certo momento aconteceu, e que ele narra.
Em 1936, obtinha novos avanços científicos (Egas Moniz teve sempre a seu lado como colaborador o médico Pedro Almeida Lima) com a descoberta da leucotomia préfrontal.
Recebeu o Prémio Nobel em 1949 e, em 1954, um ano antes de morrer, ainda lutava, num discurso na Academia das Ciências de Lisboa, para que outros não viessem retirar à ciências portuguesa as descobertas realizadas.
As suas descobertas foram resultado de um corajoso e árduo trabalho experimental, que implicou o transporte no seu carro pessoal, primeiro, de cabeças de animais entre o Instituto Rocha Cabral – já aqui tratado - e o Hospital de Santa Marta e, posteriormente, com cabeças de cadáveres, entre as mesmas duas instituições, para depois, no Hospital de Santa Marta, onde havia os utensílios experimentais necessários, proceder às experiências científicas que lhe deram o Nobel.
Egas Moniz foi um persistente investigador científico, um árduo trabalhador, obstinado na pesquisa do que o preocupava, e que por isso recebeu o Prémio Nobel, o que veio sobremaneira prestigiar a ciência portuguesa. Aos 51 anos soube dar a volta à sua vida, deixando a política para trás, da qual diria que colhera “um ilusório sucesso e muitas contrariedades.”
Ao longo da vida escreveu dezenas de artigos científicos e alguns de índole não científica. Escreveu igualmente alguns prefácios e mais de uma dezena de monografias.
A sua obra científica é ainda pouco conhecida dos portugueses por isso conselho a leitura do livro do Prof. João Lobo Antunes já citado, uma boa iniciação à obra do nosso único Nobel de medicina.
António Mota de Aguiar
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