quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A história de um padre e de um rei que quiseram voar


A propósito do lançamento do vol. I da Brasiliana da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra ontem, o jornal "Público" publicou, a seu pedido, uma nova versão, mais dirigida ao grande público, do artigo que já aqui deixei neste blogue sobre o padre Bartolomeu de Gusmão. Intitula-se "A história de um padre e de um rei que quiseram voar" e fica aqui:

O fim do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685–1724) foi trágico, mas podia ter sido pior. Com 39 anos, morria, doente, em Toledo, numa apressada fuga da Inquisição. Esse perseguição não deve ter tido, porém, a ver com as suas invenções, entre as quais a famosa Passarola. Sabemos hoje, graças ao testemunho dado à Inquisição espanhola pelo seu irmão que o acompanhava na fuga, que pendia sobre eles uma acusação de judaísmo, um libelo muito perigoso numa época de frequentes autos-de-fé. A acreditar no depoimento do irmão carmelita ideias estranhas sobre a vinda do Messias e o Quinto Império assaltavam a mente do “padre inventor” nesses seus últimos dias.

Apesar da sua curta vida, Gusmão ficou na história por ter conseguido, a 8 de Agosto de 1709, no Paço Real em Lisboa, sob os olhares de D. João V e da sua corte, concretizar a primeira ascensão documentada de um objecto mais pesado que o ar no mundo ocidental. Precoce na revelação dos seus dotes intelectuais, Gusmão foi também precoce no pedido de “patente” do novo engenho que fez ao rei nesse mesmo ano (provavelmente o primeiro pedido de propriedade intelectual em terras lusófonas) e também na sua demonstração prática, embora num espaço interior e, portanto, limitado. Nascido no Brasil e na época estudante de Cânones na Universidade de Coimbra, Bartolomeu era, com apenas 23 anos, apenas um pouco mais velho do que o rei que, entronizado dois anos antes, tinha 19. Parece hoje um atrevimento de dois jovens: um tem uma “boa ideia de negócio” e outro acha essa ideia prometedora e decide financiá-la. O jovem brasileiro tinha vindo estudar para Coimbra, uma vez que, com a excepção da escola jesuíta de Évora, a Universidade de Coimbra permaneceu até à implantação da República a única em todo o Império Português (contrasta nisso com o espanhol, que fundou uma universidade em S. Domingos em 1538). Os maiores talentos do ultramar tinham pois de vir para Coimbra para seguir estudos superiores. Entre muitos outros, passou por Coimbra o mineralogista e metalúrgico José Bonifácio de Andrada e Silva, natural de Santos tal como Gusmão (Bonifácio diz ser seu parente), que haveria de ser “patriarca” da independência do Brasil em 1822.

Na Primavera de 1709 D. João V recebia do padre Bartolomeu (o sobrenome Gusmão é tardio) uma Petição para construir um “instrumento para se andar pelo ar”, com cópia conservada na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Reza assim essa solicitação:
“Senhor, diz Bartolomeu Lourenço que ele tem descoberto um instrumento para se andar pelo ar, da mesma sorte que pela terra, e pelo mar, e com muito mais brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia, no qual instrumento se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos e terras muito remotas quase no mesmo tempo em que se resolverem: em que interessa Vossa Majestade muito mais que nenhum dos outros Príncipes pela maior distância do seu domínio, evitando-se desta sorte os desgovernos das conquistas, que procedem em grande parte de chegar muito tarde a notícia deles a Vossa Majestade. Além do que poderá Vossa Majestade mandar vir todo o precioso delas muito mais brevemente e mais seguro. Poderão os homens de negócio passar letras de cabedais com a mesma brevidade. Todas as Praças sitiadas poderão ser socorridas tanto de gente como de munições e víveres a todo o tempo, e retirar-se delas as passoas que quiserem sem que o inimigo o possa impedir. Descobrir-se-ão as Regiões que ficam mais vizinhas aos Pólos do Mundo, sendo da Nação Portuguesa a glória deste descobrimento que tantas vezes têm intentado, inutilmente, os estrangeiros.”
Para ver um fac-simile do documento original pode consultar-se o belíssimo livro que acaba de ser lançado no Rio de Janeiro intitulado Bartolomeu Lourenço de Gusmão – O padre inventor, que é o volume I da Brasiliana da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, promovida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A solicitação foi deferida por alvará de 19 de Abril de 1709, guardado na Torre do Tombo:
“Hei por bem fazer-lhe mercê ao Suplicante de lhe conceder o privilégio de que, pondo por obra o invento, de que trata, nenhuma pessoa de qualidade que for, possa usar dele em nenhum tempo deste Reino e suas Conquistas, com qualquer pretexto, sem licença do Suplicante, ou de seus herdeiros.”
Numa época pré-globalização as notícias do invento correram céleres, suscitando não só estupefação mas também, e sobretudo, abundante chacota. O jornal Wienerisches Diarium, de 1 de Junho, saído na Áustria, a pátria da esposa de D. João V, publicou a tradução de um folheto português, num suplemento de quatro páginas, com figura mostrando a “nova barca”, que era incrível. Gusmão, a quem o rei cedeu, além do alvará, as chaves da sua quinta em Alcântara para nela construir o engenho, não demorou a “pô-lo por obra”. O balão de Gusmão – pois que de um balão afinal se tratava - foi finalmente demonstrado no Paço Real. Apesar de alguns percalços (ia pegando fogo ao Paço!) a experiência de ascensão ao longo quatro metros de um objecto esférico foi coroada de sucesso. Entre as testemunhas das ascensões no interior do palácio contava-se o núncio italiano Michelangelo Conti, que haveria de se tornar papa, sob o nome de Inocêncio XIII. Conti relatou, a 16 de Agosto, em carta ao Vaticano:
“O sujeito, que se comunicou faz tempo pretendia de querer fabricar um engenho para voar, fez por estes dias a experiência na presença do Rei havendo formado um corpo esférico de pouco peso: mas como a virtude impulsiva ou atractiva parece ser constituída por espíritos [álcool], estes pegaram fogo, e queimou-se o engenho da primeira vez sem se mover da terra, e da segunda embora se elevasse duas canas, igualmente se queimou; onde ele, empenhado em fazer crer que que não corre perigo a sua invenção, está fabricando outro engenho maior. "
Teriam sido realizados ensaios com balões ao ar livre, mas não há certezas sobre eles. Perseguido pela maledicência popular, e talvez desanimado pela colossal discrepância entre o que havia sido prometido na sua Petição – um engenho tripulado grande e capaz de longas viagens – e o realizado na prática – um minúsculo balão que subia só um bocadinho – Gusmão desistiu de prosseguir o seu ambicioso projecto, pelo que não chegou a enriquecer com a “patente”. Mas hoje é, em geral, atribuído o mérito das primeiras experiências de ascensão em balão a Gusmão, reservando a glória da construção dos primeiros grandes balões aos irmãos Montgolfier, que, em Paris, em 1783, concretizaram a primeira subida tripulada.

Gusmão não era um cientista, mas sim um inventor, um criador de tecnologia. De resto, a tecnologia não estava na época tão intimamente ligada à ciência como hoje. Apesar da qualidade do ensino no Colégio Jesuíta de S. Salvador da Bahia onde Bartolomeu estudou (escola integrada na vasta rede da Companhia de Jesus, da qual o Colégio de Jesus, em Coimbra, foi um dos primeiros nós), não terá ficado, na sua preparação para a carreira eclesiástica, a par do que de mais moderno se fazia na ciência no alvorecer do século das luzes. Tão pouco terá adquirido grandes conhecimentos científicos em Coimbra, já que frequentou o curso de Cânones (que só em 1720 concluiu). A ciência em Coimbra, dominada pelos jesuítas, não competia na época com o melhor que se fazia lá fora. Lembremos que Descartes estudou num colégio jesuíta por um livro português, os Conimbricenses, que ele achou um pouco démodé.

Porquê voar? O intuito prático de chegar ao outro lado do mundo ou mesmo descobrir novos mundos encontra-se na Petição. A coesão do Império Luso que seria proporcionada por um meio rápido de deslocação talvez tenha estado na base da ideia do padre que nunca foi jesuíta por não ter completado os votos. As duas viagens marítimas que já tinha empreendido para atravessar o Atlântico tinham sido longas e cansativas. E a utopia do Quinto Império, tão cara ao Padre António Vieira, não lhe era estranha. Mas um Manifesto atribuído ao próprio Gusmão e que, tal como a Petição, se conserva na Biblioteca Geral de Coimbra, aborda o velho sonho humano de imitar as aves. Aí se defende a ideia de voar numa linguagem filosófica. Veja-se um excerto, que lembra a retórica do jesuíta António Vieira (que, curiosamente, passou pelo Colégio onde o jovem Bartolomeu estudou, sem porém se terem encontrado):
“Três coisas pois são necessárias à ave para voar, convém a saber: asas, vida e ar; asas para subir; vida para as mover; e ar para as sustentar. De sorte que faltando um destes três requisitos, ficam inúteis os dois; porque asas sem vida não podem ter movimento; vida sem asas não pode ter elevação: ar sem estes indivíduos não pode ser sulcado. Porém, dando-se estas três circunstâncias de asas, vida e ar, a qualquer artefício conforme a necessária proporção, é infalível o voo no lenho, como o estamos vendo na ave. Entra agora o nosso invento com as mesmas três circunstâncias, em que infalivelmente devemos dar lhe o voo por certo. O nosso invento tem asas, tem ar e tem vida.”
O princípio da impulsão tinha sido estabelecido por Arquimedes na Antiguidade e revisitado por Galileu na Revolução Científica, mas a impulsão investigada por esses autores dizia respeito a objectos imóveis em líquidos. O estudo dos gases ainda estava por fazer e seria a Química que os iria explorar. Depois do triunfo da mecânica de Galileu e Newton, a física mais moderna, no século XVIII, dizia respeito aos fenómenos eléctricos e a não à flutuação. Gusmão, bem mais do que um físico do seu tempo, é um tecnólogo visionário, na linha de Leonardo da Vinci.

É clara a diferença entre o “instrumento de voar pelos ares” para a qual foi concedido o alvará e o “corpo esférico de pouco peso” que Gusmão construiu. Há a Passarola, que nunca voou, e o balãozinho, que se elevou no Paço. A primeira é caricaturada na gravura austríaca. Por outro lado, o balão de ar quente descrito pelo núncio não seria muito diferente, embora menor, dos balões de hoje, servindo uma pequena barquinha de vaso da combustão para aquecer o ar. Uma espécie de balão de S. João, portanto. Se a Passarola era um “instrumento” enorme que nunca poderia voar, já o balãozinho o fazia com graciosidade.

Uma gravura não datada apensa a um manuscrito do século XVII, conservada na referida Biblioteca será uma extrapolação mais plausível para a escala humana do mini-balão. Tem parecenças com um barco voador, com a vela substituída por uma pirâmide insuflada. Mas nenhum engenho tripulado semelhante ao dessa gravura deve ter voado. A tecnologia avança por pequenos passos, por tentativa e erro. As experiências de Gusmão estão entre o sonho de voar e o voo efectivamente conseguido pelo homem.

2 comentários:

Cláudia S. Tomazi disse...

Olhando este livro, estimo por invento o que comum seja ao ser humano por devotado querer concorrendo diante possibilidade de realização, e Doutor Carlos Foilhais digo-lhe:
Por primeiro alguém cismara que um padre e um rei poderiam ser capazes de idealizar e concretizar uma invenção sem propriamente serem cientistas?
E por onde nascera tal estímulo que um padre pudera considerar entre outro assunto que não o de Deus, e sejamos honestos da necessidade para tal propósito, ao que da vez caiba ao rei não menos obstáculos, porém, sendo a coroa seu diferencial por sorte de atributos.
Então por segundo, notada é a integridade da realeza na questão cuja tradição absorvera tanto o impulso do padre, quanto o aspecto do rei, pois oferecera à possibilidade do intento a nação, outro sim ao mundo.
Por terceiro o que inspira tal crédito do padre que não dos assuntos divinos, mas por tão divino ser voar, estas questões dadas como impossíveis, então eis que a dinâmica da certeza é a fortaleza por concretizar. Quando do padre nascera a certeza de que em Portugal houvera solução para a causa, pois de seus estudos despertara dada consciência da excelência conferida a Coimbra, onde conhecimento fora estructura latente na Europa em escala dilatada por entusiasmo real, por experiência própria.
E por último, quanto ao engenho de poder científico tão precoce como disciplina pelo sentimento da arte de voar teve por dinâmica a conversão de um anseio e eis a prova que o ser humano pode e deve motivar idéias inventivas, estas que calibradas pela possibilidade do saber inato de uma nação responsável cuja credibilidade tem justificada a causa do ardor pela capacidade de realização. Concluo que Pe. Bartolomeu de Gusmão, quando estudara em Coimbra saíra de lá com a firme convicção por formação de que tudo fora possível, e esta invenção tão somente evoluiu como resposta por herança da verdade que aplica-se por facto.

Por minha humilde visão creio que a formalização deste livro torna-o um marco pela mensagem do que tudo fora possível em Portugal.

joão boaventura disse...

Cara Cláudia Tomazi

O que confere com Francis Bacon:

"A Experiência é uma espécie de pergunta que a Arte faz à Natureza para a obrigar a falar."

E quando exterioriza que "a dinâmica da certeza é a fortaleza por concretizar", afigurou-se-me estar perante o "vir a ser" de Heráclito, ou a equivalente definição de "movimento" em Aristóteles

"É a passagem de potência a acto"

Cordialmente

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