Texto na sequência do que se pode ler aqui e de outros sobre um assunto que, no De Rerum Natura, retomamos com frequência: a importância da exploração de textos clássicos, da literatura nacional e universal, em todos os níveis de escolaridade.
Podem alguns investigadores confirmar as múltiplas vantagens do ensino e da aprendizagem desses textos em termos de preparação cognitiva, axiológica, cultural dos alunos, podem alguns teóricos chamar à atenção para a sua beleza estética e para a importância de convivermos com eles, que é a única maneira de os mantermos vivos, podem alguns professores que os amam sentirem-se defraudados e, mesmo, desgostosos, por não os poderem levar para a sala de aula ou de apenas os poderem levar mutilados, adaptados e reduzidos a exemplos com o mesmo valor de e-mails ou de notícias de revistas vulgares.
Mas, temos de ser realistas:
O que prevalece na educação formal é o que consta nos documentos curriculares e programáticos provenientes da tutela e, em sequência, nos manuais escolares. E o que aí consta não é animador. Como se saberá, os programas de Língua Portuguesa para o Ensino Básico (ou de Português, como se intitulam) ficaram concluídos em 2008, desencadeando a redacção de novos manuais para o 1.º Ciclo, os quais foram apresentados no final do ano lectivo passado.
Uma apreciação atenta (que reconheço estar longe de obedecer ao rigor da análise científica) levou-me a concluir que, na generalidade, se fez um retrocesso na matéria a que me refiro: os textos clássicos são residuais e modificados, aligeirados, para, supostamente, se tornarem mais apelativos, actuais, próximos das vivências das crianças…
Ilustro o que digo com um exemplo retirado dum manual do 1.º ano para apoio na referida área disciplinar. Trata-se de uma conversa entre a Carochinha e a Branca de Neve, depois de a primeira ter decidido casar com o João Ratão.
(...)
"Branca de Neve - Estou...
Carochinha - Olá, Branca de neve!
Branca de Neve - Olá, Carochinha!
Carochinha - Branca de neve, quando eu te disser, ai quando eu te disser...
Branca de Neve - Qual é o segredo que me vais contar hoje, Carochinha?
Carochinha - Ai, Branca de Neve, estou tão feliz, tão entusiasmada! Quando eu te disser, ai quando eu te disser...
Branca de Neve - Então, diz!
Carochinha - Vou-me casar!
Branca de Neve - Estás a falar a sério? E quem é o noivo?
Carochinha - É o João ratão. Ele é tão giro e tem uma voz encantadora. Estou tão contente Branca de Neve!
Branca de Neve - Estou feliz por ti, minha amiga Carochinha.
Carochinha - Branca de Neve, eu queria fazer-te um pedido. Adorava que fosses a minha madrinha de casamento. Aceitas? Posso contar contigo?
Branca de Neve - Claro que podes!
Carochinha - Obrigada, muito obrigada, querida amiga. Olha...
Não houve mais conversa, porque o telemóvel ficou sem saldo."
Nota: Mais uma vez decidi não identificar o manual aqui convocado, pois ele é apenas um daqueles em que se pode encontrar o tipo de texto citado.
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6 comentários:
Torcato Guimaraes: há mais de uma década que o que o cultivo do conhecimento vem sendo reduzido ...ao pobre, ao patusco, ao básico. Mas, continua-se na educação cantando e rindo como se os clientes da educação (os alunos) fossem já sábios.
Mas também importaria que as famílias com licenciaturas (o casal, ou só a mãe ou o pai) darem a devida einstrução. Demitem-se...
Fantástico. A educação dos idiotas. Só ideias peregrinas. Como pai, já há muito percebi que o trabalho de apresentação de textos decentes aos nossos filhos tem que ser feito por nós. A escola é um local de tretas, mesmo
Olá.
Não pretendia dar muita visibilidade a este erro, mas, não sabendo como assinalá-lo doutra maneira, hélas, aqui fica, para eventual e posterior retificação: "por não os PUDEREM (?) levar para a sala de aula".
E, no exemplo do trecho do manual do 1º ano, não se trata apenas de aligeiramento: há também erros: de pontuação ("Carochinha - Olá [aqui]Branca de neve!
Branca de Neve - Olá [e aqui] Carochinha! (...) Estou tão contente [e aqui] Branca de Neve!") e o que podemos chamar lapsos que envolvem o sentido ("Posso CASAR contigo? [em vez de, presumimos, "CONTAR"]").
Paulo Lopes
Aqui está a prova que o uso excessivo do telemóvel faz mal ao cérebro.
Agradeço ao leitor Phronesis a anotação dos erros que cometi. O primeiro que assinalou foi devido a ignorância (uma professora do 1.º Ciclo teve a amabilidade de me explicar), os seguintes por pressa na transcrição.
Cordialmente,
Helena Damião
Então e ninguém aponta o "vou-me casar"! Por acaso o correcto não é "vou casar-me". Ou, à maneira do Brasil: "Vou me casar". Já não sei. Eu nas aulas estava sempre noutro planeta. Sim, era uma escola pública na década de 80 e também era uma grande treta.
De todos os modos o texto é horrível. Não lembra a ninguém. Por estas e outras eu nunca ouvia os professores. Nem o garoto mais estúpido merece isto. Ninguém merece este texto.
Ana
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