Meu artigo no mais recente As Artes entre as Letras:
Luís de Camões (C. 1524-1580) nasceu provavelmente no mesmo ano em que Vasco da Gama (1469-1534) viajou pela terceira vez para a Índia e morreu. É natural que falemos mais dos 500 anos do nascimento de Camões do que dos 500 anos da morte de Gama. Porém, não deixa de ser uma coincidência curiosa essa sobreposição de datas do nosso maior vate e do nosso maior descobridor.
Entre 1557 e 1570 (treze longos anos!) Camões viveu no Oriente, na maior parte do tempo na Índia, onde Gama tinha chegado em 1498. Essa experiência é muito posterior ao curto período em que Vasco da Gama foi vice-rei e governador da índia (1524) e ao período, esse maior, em que o seu filho D. Estêvão da Gama foi governador da Índia (1540-1542). E é também ulterior ao período em que D. João de Castro foi primeiro governador da Índia (1545-1548) e depois também vice-rei desse Estado (1548). Os Lusíadas, publicados originalmente em 1572, contam a história da viagem de Vasco da Gama e, ancorando-se nesta, a história de Portugal. Camões fala no canto I (estância 14) do «Castro forte» (acrescentando «e outros em quem poder não teve a morte») quando enumera alguns heróis que se notabilizaram na Índia. O poeta, para usar o adjectivo «forte», conhecia decerto a história do violento segundo cerco de Diu, ocorrido em 1546, para cujo desfecho a acção de D. João de Castro foi decisiva.
D. João de Castro (1500-1548) é mais conhecido como homem de Estado e chefe militar. Mas ele foi também um cientista: geógrafo e cartógrafo, mas acima de tudo, geofísico, podendo ser considerado o primeiro geofísico global. Fez duas viagens na carreira da Índia desde Lisboa até Goa e nelas efectuou medidas sistemáticas de meteorologia, de oceanografia e de magnetismo terrestre. Os seus estudos do magnetismo ajudaram a refutar a tese de que era possível conhecer a longitude através de medições com uma bússola. No Oriente, empreendeu o reconhecimento de costas do Mar Índico e do Mar Vermelho (na altura chamado Mar Roxo).
Ele foi o autor de três roteiros com o seu nome que ficaram justamente famosos: Roteiro de Lisboa a Goa (1538), Roteiro de Goa a Diu (1538-1539) e Roteiro do Mar Roxo (1540-1541). Esses escritos permaneceram como manuscritos até ao século XIX, quando foram impressos e começaram a ser comentados. Onésimo Teotónio Almeida, no seu livro O Século dos Prodígios (Quetzal, 2018), chamou a atenção para a modernidade de D. João de Castro que está plasmada nesses roteiros (assim como nas outras suas obras), designadamente na sua atitude empírica que precedeu a criação da ciência moderna no final do século XVI e ao longo do século XVII. Logo a seguir a tratar a modernidade do geofísico quinhentista, Onésimo aborda a modernidade do autor de Os Lusíadas, que veio na linha da de D. João de Castro.
Na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra conservam-se Tábuas dos Roteiros das Índia, de D. João de Castro, que contêm magníficos desenhos a cores de lugares daquelas costas, que são cópias de originais desaparecidos (são 29 tábuas no total, das quais 15 do segundo roteiro e 14 do terceiro). Essas imagens revelam observações muito cuidadosas. Constituem uma espécie de Google maps do século XVI, enriquecidos com pormenores artísticos que nos informam sobre a presença portuguesa desse tempo no Oriente.
Uma das traves-mestras do método científico para além da observação e experimentação é a sua combinação com o raciocínio lógico. Repare-se como D. João de Castro chama a atenção para a necessidade desse elo, no Tratado da Esfera, um manuscrito que lhe é atribuído: «É necessário aqui o sentido obedecer ao entendimento, e como cego deixar-se guiar por ele, porque certo está que em muitas coisas nos enganaram os sentidos, se não fossem guiados e examinados pelo entendimento. Julgando somente pelo sentido, todos julgaríamos que o sol é pouco mais ou menos como uma roda de carro, e estas estrelas como umas laranjas, e ficaríamos nisso muito enganados, pois o entendimento tem demonstrado, e está nisso convencido, ser o sol e muitas estrelas muitas vezes maiores que toda a terra. Engana-se a cada passo o sentido dos brutos com as semelhanças das coisas, tendo-as por verdadeiras porque não é ajudado de algum entendimento.»
Luís de Camões, que é quase contemporâneo de D. João de Castro, partilha a atitude empírica deste assim como a mundividência que dela decorre. No canto V (estrofe 17), sobreleva a experiência dos homens do mar: «Os casos vi que os rudos marinheiros,/ Que têm por mestra a longa experiência,/ Contam por certos sempre e verdadeiros,/ Julgando as cousas só pela aparência,/ E que os que têm juízos mais inteiros,/ Que só por puro engenho e por ciência,/ Vêem do mundo os segredos escondidos,/ Julgam por falsos ou mal-entendidos.» E, mais à frente no mesmo canto V (estrofe 23), enfatiza as novidades que os Descobrimentos tinham trazido face ao saber antigo: «Se os antigos filósofos, que andaram/ Tantas terras, por ver segredos delas,/ As maravilhas que eu passei, passaram,/ A tão diversos ventos dando as velas,/ Que grandes escrituras que deixaram!/ Que influição de signos e de estrelas!/ Que estranhezas, que grandes qualidades!/ E tudo sem mentir, puras verdades.»
No volume IV das Obras Completas de D. João de Castro (eds. Armando Cortesão e Luís de Albuquerque, Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1982), o historiador holandês Reijer Hooykaas, no artigo em inglês inserido em apêndice «Science in Manueline Style», considera D. João de Castro o mais moderno de todos os autores do século XVI, por ter valorizado a observação, a experimentação e o raciocínio. Onésimo Almeida, que tem insistido sobre a relevância desse texto, faz, em O Século dos Prodígios, o paralelismo com Camões: este «experimentou e viu claramente visto, aprendeu num saber de experiência feito, naquela viagem de 1553, que o mundo estava em grande mudança e experimentá-lo era o primeiro passo para a sua compreensão.»
1 comentário:
O Carlos Fiolhais está a atingir um nível extraordinário na arte de saber ler, de pensar a história e de comunicar a incomensurável riqueza de informações e de conhecimento que essa arte proporciona, para que não fiquemos reféns do nosso quotidiano, aparentemente sem horizontes.
Com o passar dos anos avoluma-se a singular grandeza da epopeia dos descobrimentos portugueses e da, não menos, original e talentosa cultura que a acompanhou, cujas narrativas, à luz do nosso atual modo de estar, de pensar e de ver, justamente causam estranheza, tanto mais quanto mais tentamos imaginar as condições dos protagonistas, nomeadamente as suas motivações para ações que envolviam grande paixão pelo ideal e desprendimento relativamente ao sacrifício de interesses e de valores que, atualmente, ocupam o centro das preocupações inglórias de cada um. E desenvolvermos a noção, por exemplo, de que esse era, claramente, o tempo da gestação deste tempo em que vivemos, totalmente imprevisível para os que vivenciaram essa época.
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