sábado, 23 de novembro de 2024

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho
 
Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim.

Quando dou uma aula, ainda dou muitas, o entusiasmo e a energia que ponho na voz situam-me nos meus anos de docência, mas o facto de ter de a dar sentado, coisa que outrora nunca fiz, diz-me que esse tempo já passou há muito.

Quando olho para dentro de mim, tanto posso ser a criança ou adolescente, como o activo adulto que fui, mas, na rua, as irregularidades da calçada, ao fazerem-me procurar, na bengala, a segurança e o equilíbrio que perdi, dizem-me a mesma desconfortável verdade.
 
Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor do computador, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.

Bem sentado no autocarro, tenho a idade daquele ou daquela que vai ao meu lado e, se acontece falarmos, irmano-me com ele ou com ela e só me dou conta da idade que carrego sobre os ombros, ao descer do dito, naquele degrau que nunca me pareceu tão alto.
 
Muitas outras realidades me dizem, todos os dias, que sou mais um entre os muitos velhos deste belo e, desde sempre, mal governado país. São os meus antigos alunos, agora de cabelos brancos, muitos deles pensionistas como eu. São os meus netos, já adultos e com barba, são as consultas médicas, as idas frequentes ao Hospital e aos Centros de Saúde e o exagerado número de fármacos diários ao pequeno-almoço, almoço e jantar.
 
Diz-se que os velhos só têm o presente, o que não está longe da verdade. Não têm passado nem futuro. O passado perderam-no, sem darem por isso. Uns mais do que outros, podem guardá-lo na memória e é tudo o que dele lhes resta. Quanto ao futuro, esse foge-lhes por entre os dedos, como a areia. A diminuição progressiva das suas capacidades rouba-lhes a ideia de futuro. Não lhes permite fazer planos. Vivem, como se ouve dizer, “um dia de cada vez”. Preparar uma palestra e proferi-la, fazer uma conversa, onde quer que seja, e escrever algo sobre o que me parecer dever fazer, cabem dentro deste horizonte de vida.
 
É nesta tranquila certeza que, nos meus 93 anos já vividos, organizo as 24 horas do dia, de todos os dias. 
 
Proferi ontem a última de cinco conversas de um minicurso de Geologia, Como Bola Colorida, numa perfeita organização do Âmbito Cultural, do El Corte Inglés. Casa cheia todos os dias. Eram só idosos, da primeira à última fila de cadeiras, e eu era o mais idoso de todos eles. 

É nesta tranquila certeza que me dou conta da exiguidade do meu horizonte de vida, face ao muito que ainda tenho em mente e gostaria de fazer, e nesse muito está, por um lado, escrevendo e falando, deixar aos meus concidadãos o que a vida e a profissão me ensinaram e, por outro, continuar a exercer o que entendo ser o meu dever de cidadania. 
 
Neste dever estão as lutas (lutas, sim, porque é de lutas que se trata, sempre morosas e difíceis de vencer) que continuo a travar com os governantes e outros decisores, pela valorização e salvaguarda do nosso património geológico.

A. Galopim de Carvalho

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns, Professor Galopim, pela sua extensa e ativa velhice.
A velhice é apenas o resultado do percurso da vida e deve ser vivida em pleno, assumidamente, com todas as capacidades que o corpo nos permitir.
Acho uma tristeza a tentativa de esconder a idade com cirurgias, botox, esticamentos aqui e ali, pinturas e mais pinturas que tornam os bonecos francamente ridículos. Em vez dessas preocupações estéticas, deveremos apostar em vivenciar a família, desenvolver gostos pessoais, fazer exercício físico, cuidar da saúde medicamente, passear, viajar, ler, ir ao cinema, conviver com os amigos, ter uma alimentação saudável (escolhendo um dia por semana para ir a um bom restaurante e deglutir o que faz mal), rir, escrever, integrar uma ou outra rede social, fazer workshops de música, pintura, culinária, jardinagem (temas que interessem), assistir a conferências, palestras, adotar um animal, tratar de plantas, ser voluntário ajudando os outros, etc, etc. Há tanto para ser e fazer na reforma, sem qualquer saudade do trabalho que fizemos toda a vida.

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