sábado, 26 de março de 2011

CARLOS ADRIÃO RODRIGUES OU DO BOM USO DAS MÁS COMPANHIAS

“Em todas as decadências o primeiro sintoma é a depravação do sentimento da amizade” (Pierre-Joseph Proudhon, 1809-1865).

O meu conhecimento de Eugénio Lisboa (que se viria a transformar em forte amizade e grande admiração em Lourenço Marques onde nos viemos a reencontrar anos depois) data da nossa frequência no Curso de Oficiais Milicianos, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, em início da década de 50, numa altura em que o desconforto da caserna e do famigerado campo de obstáculos, para os cadetes menos inclinados para as práticas físicas, era agravado pelo militarismo desapiedado do então comandante de Batalhão, de seu apelido Carrasco.

Carrasco de nome e senhor de uma férrea disciplina militar que não se coadunava com a nossa vivência anterior de jovens civis, uns já licenciados, outros arrancados aos respectivos cursos superiores por completar (o Eugénio, então, no último ano do curso de engenharia electrotécnica do Instituto Superior Técnico). Acredito que muito terá sofrido este meu então camarada de armas subtraído, ademais, das suas leituras e tertúlias literárias estudantis.

Mas nem tudo foram espinhos para si, como nos dá conta no seu último post aqui publicado, Um Homem Bom (21/03/2011), em que nos relata a sua colocação em Portalegre como oficial miliciano e de uma vida de convivência com grandes vultos da Cultura e de não menor humanismo. Eis-nos, agora, perante a sua homenagem póstuma a Carlos Adrião Rodrigues em texto que ora se publica e em que sobressai o nobre sentimento da amizade cultivado em elevada medida:

“A notícia dada ontem (dia 10) pelo João Afonso dos Santos abalou-me profundamente: o Adrião, como nós, afectuosamente, lhe chamávamos, tinha sido encontrado sem vida, de manhã, na sua cama: ar sereno, olhos fechados, as mãos cruzadas no peito, morrera, provavelmente, durante o sono. Foi como se, de repente, me roubassem, num minuto negro, toda a minha juventude. Num texto que me dedicou, o Adrião começava por citar Rilke, segundo o qual, a nossa pátria é a nossa juventude. A minha juventude foi, sobretudo, a que tive em Lourenço Marques – uma juventude cheia, variada, estimulante, não raro perigosa, por causa dos combates que travávamos, com alegria e algum desprezo pelas consequências: combates culturais, políticos, cívicos, enfim, combates... O Adrião estava sempre presente, quando não era ele mesmo que os iniciava, disponível, cheio de ideias e astúcias, que lhe vinham com uma naturalidade bem humorada e pachorrenta. A sua bonomia inquebrantável amaciava qualquer frenesi ou terror que ocasionalmente visitasse os bem intencionados menos afoitos.

No Cine–Clube, de que foi presidente, mais de uma vez, desenvolveu, com um dinamismo discreto mas altamente produtivo, uma actividade impressionante. Graças a ele, num período de censura altamente repressiva, vimos ali, numa Lourenço Marques remota e mágica, todos os grandes clássicos do cinema americano, inglês, russo, polaco, checoeslovaco, húngaro, italiano, francês, japonês. Muitos deles, sobretudo os dos países de leste, só foram vistos em Lisboa depois do 25 de Abril, quando nós já os tínhamos gozado, traduzido e profusamente comentado, muito antes, em Moçambique. Graças, em grande parte, à complacência envergonhada de um censor monárquico...

No Cine–Clube, n’A Voz de Moçambique, na Tribuna, no Teatro de Amadores de Lourenço Marques (TALM), do Mário Barradas, a presença influente e activa do Adrião era obrigatória, fecunda e indispensável. Moçambique ficou a dever muito ao Carlos Adrião Rodrigues, como dinamizador cultural e como advogado sorridente, bem informado, plácido, lento no andar, mas rápido na acção e intrépido no ataque, surpreendendo o adversário com a sua modéstia sossegada. O Craveirinha, o Luís Bernardo Honwana, o Virgílio de Lemos foram apenas alguns dos que o Adrião defendeu, em julgamentos públicos que marcaram uma época.

Já na independência de Moçambique, o Banco de Moçambique e Moçambique ficaram a dever à integridade e competência de Adrião Rodrigues serviços inestimáveis. Serviços que prestava sem alarde, com inteligência e, se necessário, com alguma matreirice construtiva e não pouco daquela alegria gozada de estar a dar uma volta às coisas.

Com a inesquecível Quina, sua mulher, a casa deles era uma porta aberta para os amigos que dela usavam e abusavam, porque nunca dali vinha o mais pequeno tique de impaciência. Mas foi o seu comprometimento político – apetecer-me-ia dizer, antes, ético – mesmo feito sem foguetes e sem provocações vistosas, que fez dele, a certa altura, no Moçambique colonial, o inimigo público nº 1 da PIDE e do “establishment” em vigor. Andar com o Adrião, ser amigo do Adrião era ficar pestiferado para toda a eternidade. Um cônsul francês, em Lourenço Marques, galardoado com a Legião de Honra e ex-gente grande do Le Monde, que se fizera meu amigo devido à minha assumida francofilia, entregara-me a tarefa de ali constituir uma Alliance Française, mas acabaria por se virar contra mim, por eu andar em más companhias. De poucas “más companhias” me orgulho tanto como da companhia do Adrião. E poucas coisas me têm magoado tanto como certos comportamentos de “real politik” da pátria da liberdade, igualdade e fraternidade.

Tinha com o Adrião, com o João Afonso dos Santos e com o Fernando Magalhães uma tertúlia mensal, aqui em Cascais, na primeira terça feira de cada mês. A tertúlia vai continuar e o Adrião vai continuar a estar presente. Estar presente, nos momentos difíceis, foi sempre o lema dele”.

Eugénio Lisboa

Na imagem: fotografia da "remota e mágica" Lourenço Marques.

6 comentários:

Banda in barbar disse...

data da nossa frequência no Curso de Oficiais Milicianos, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, em início da década de 50, numa altura em que o desconforto da caserna e do famigerado campo de obstáculos, para os cadetes menos inclinados para as práticas físicas, era agravado pelo militarismo desapiedado do então comandante de Batalhão, de seu apelido Carrasco

se era desses tempos
lembra-se do capitão
mas obviamente não se lembra do 2ºsargento que lhe deu a instrução...

é típico

Banda in barbar disse...

geralmente os que se consideram algozes

marcam mais que os restantes

os outros são coisas para as élites

brutos que lhes infernizam as existências

coisas...pois

Rui Baptista disse...

Caro "Banda in barbar" (03:28): Apenas uma correcção. Para além do major Carrasco (um batalhão é comandado por um oficial superior com a patente de major), lembro-me do nome do comandante da minha companhia: Pizarro (por nós conhecido por cobra cuspideira!), com a patente de capitão.

Já agora (e porque o saber não ocupa lugar),um batalhão é formado por duas companhias com vários pelotões. O comandante do meu pelotão foi o alferes Soares Carneiro, um militar exigente, mas humano. O Eugénio Lisboa, daquilo que me recordo, pertencia a uma outra companhia e, consequentemente, a um outro pelotão.

Quanto ao sargento que me deu instrução, recordo-me da pessoa bondosa que era. Julgo que esta recordação é bem mais importante que um simples nome para mais quando a sua recordação não é das melhores.

Mas o apelido Carrasco vindo à colação apenas foi mencionado pelas (más) razões adiantadas na introdução por mim feita ao post de Eugénio Lisboa. Esse sim, importante por pôr em destaque o valor que a amizade tem para pessoas que a cultivam e pelo recorte literário do texto que a exalta.

Mea Culpa Mea Maxima Culpa Miserere Dominus Meo disse...

quanto ao facto da composição de um batalhão
serem duas companhias tal
variou muito ao longo dos tempos históricos

o meu bisavô foi capitão de milícias

um dos meus avôs 1º cabo na chamada grande

o meu tio capitão promovido a major com o 25 de Abril

o resto da famelga nunca passou de sargento

espanta-me é que haja tanta gente do tempo do Soares Carneiro (acho que já bateu as botas..

e do Eanes que também tirou o curso em Mafra nos anos 50

e o eu sou o general Salavisa também andou nesses tempos

e faltaram uns pozinhos sobre os famosos ratos

ou sobre a biblioteca

o oficialato que na altura era promovido a pingos

obviamente tinha ressentimentos vários que descontava na recruta

o facto de se forjarem amizades duradouras em praxes ou outras situações de stress mais ou menos prolongadas é natural

Rui Baptista disse...

Caro “Roxo d’inveja”:

Recordar é viver outra vez, na voz do nosso povo.

Recordou-me aqui os ratos do Convento de Mafra, onde se situava a Escola Prática de Infantaria. Essa recordação traz-me à memória outra fauna nada melhor: os percevejos que na caserna dos cadetes, pela calada da noite, depois de apagadas as luzes, desciam de paraquedas do teto para nos infernizarem uma noite de cansaço, depois de um longo dia instrução militar.

Mas voltemos aos ratos que o mito popular transformou em ratazanas cegas, maiores do que coelhos, que espreitam a oportunidade, quais alienígenas, para tomarem de assalto Mafra fazendo aí seu quartel para se apossarem do resto do País. Mas será que não cumprem o seu destino por recearem um pobre país Portugal endividado até às pontas do cabelo e povoado de “vampiros que comem tudo e não deixam nada?”

Recorda-me (e bem) os laços de solidariedade, ou mesmo fermento de uma sólida amizade futura, que se criam na vida militar. Aliás, foi esse o leitmotiv da minha nota introdutória…

Como diria Pessoa, “Pedras no caminho?/ Guardo-as todas, um dia vou construir um castelo”…de recordações. Umas tantas más que nos fazem esquecer as boas.Mas ambas fazem parte da vida.

Cordiais cumprimentos.

Rui Baptista disse...

Uma consulta à Obra pessoana faz-me crer que os versos que citei, no final do meu comentário (28 Março; 14:50), como sendo de Fernando Pessoa, são apócrifos. O respeito pela verdade e a consideração pelos leitores, obrigam-me a esta rectificação.

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