sábado, 12 de março de 2011

Carolina Michaëlis de Vasconcelos e a educação

Carolina Michaëlis de Vasconcelos, a primeira professora a entrar numa universidade portuguesa, desenvolveu uma obra multifacetada, não deixando de dar atenção à educação. O texto que de seguida citamos, e que terá continuação, é dedicado a esse mesmo tema, tendo sido publicado pela primeira vez em 1877 "em três números da Revista O ensino - Jornal do Colégio Portuense" e depois disso praticamente esquecido, até ao momento em que o Professor Joaquim Ferreira Gomes, da Universidade de Coimbra o republicou na Revista Portuguesa de Pedagogia.

"O curioso que percorrer; às oito horas da manhã ou à uma da tarde, as ruas de qualquer das grandes cidades alemãs de primeira e de segunda ordem, quer no centro quer nos arrabaldes, não deixará de contemplar com prazer certos edifícios imponentes pela vastidão, pela harmonia das proporções, e delineados em estilo sóbrio, mas belo, de onde sai, ao dar a hora, uma multidão de crianças e jovens, um 600 a 700 meninos e meninas de 6 e 16 e alguns de 18 anos (candidatos ao ensino normal), seguida de 20 a 30 adultos que procuram apenas regular a vivacidade deste mundo infantil que se agita, com a alegria no rosto e no coração. Esses palácios grandiosos são as escolas e essas crianças felizes, os alunos, dirigidos por excelentes mestres e mestras que todo o alemão considera com respeito, amor e orgulho legítimo de nacional. A eloquente expressão que lhes anima os rostos mostra a alegria e o gosto com que frequentam essas salas dedicadas ao trabalho e à ciência. Em nenhum olhar se descobre má vontade, nem enfado; rostos indiferentes, sem animação, fisionomias amortecidas, só excepcionalmente se encontram; aparece algum aqui ou acolá entre os mais novos, mas com a idade cresce a viveza e irradia a expressão, até conduzir ao admirável sentido da palavra Backfisch, que representa a menina no período que medeia entre a infância e a adolescência; o seu rosto é como que o frontispício de um livro interior que revela, com a clareza da letra impressa e a fidelidade de um espelho, os segredos de uma elaboração fecunda.

A colheita de tais frutos não foi fácil. Há mais de sessenta anos, desde os funestos dias de luto nacional na Alemanha (1809-1812), os espíritos mais elevados de toda a nação trabalham, com incansável afã, na solução do grande problema: a educação popular. Os filósofos justificam os títulos históricos da filosofia alemã, ocupando-se incessantemente no aperfeiçoamento dos sistemas de educação e dos métodos de ensino (…).

O Estado e o município têm sempre a mão a aberta para ministrar os meios de pôr em execução os planos maduramente pensados e eficazmente provados: ambos sabem que juros hão-de render, mais dia menos dia, o capital emprestado à educação popular. A família aceita com gratidão o que o Estado e o município lhe facultam; guarda e cultiva com lúcido cuidado os germens intelectivos que, fora da sua acção, são semeados sobre o fértil terreno do coração infantil, primeiro preparado por ela. O trabalho em casa e o trabalho na escola completam-se em recíproca aliança. Se qualquer destes elementos hostilizasse o outro, contrariasse os planos do aliado, ou os aceitasse com indiferença, seria isso o bastante para alterar o resultado harmónico, o crescer e desabrochar do espírito infantil.

O que devemos a nossos pais, à família inteira, a cultura física e intelectual de todo o ser interior e exterior do indivíduo, é um bem, sem dúvida maior do que aquele que nos faz a escola, a qual se dedica a um fim especial, concreto; á cultura da nossa inteligência, embora não descure a nossa índole nem o nosso corpo.

Os laços da família duram enquanto a vida dura; a escola começa só no nosso segundo período; recebe-nos passados os seis anos mais importantes da vida, durante os quais recolhemos em nós um mundo de conhecimentos, de experiência, de concepções, sem trabalho, sem consciência, sem ensino sistemático. Passados dez anos, saímos da escola, e, como a deixamos mau grado nosso, tem a lembrança saudosa largo quinhão em nossa memória e sentimento, parecendo-nos até quase maior a dívida aos mestres do que aos pais. Cada encontro casual com eles é um sucesso, se não temos a felicidade de continuar as suas relações de um modo mais íntimo, aceitando-lhes o conselho, o saber, o auxílio ulterior, a visita à antiga escola um doce rememorar; não perdemos nenhum ensejo para mostrar aos mestres e à escola a nossa gratidão; e, quando em círculo íntimo se ajustam, após 20 ou 30 anos, duas ou três amigas, é sempre a escola o ponto onde se encontram as mais gratas recordações. Então, evocam-se os episódios mais insignificantes, chamam-se a testemunho as lembranças mais modestas, quais as folhas de um álbum.

Então diligenciamos popularizar a ciência que nos transmitiram, alimentar o fogo sagrado que acenderam. O interesse que acordaram em nós, segundo a tendência e a aptidões de cada individualidade, continua vivo, graças ao impulso espontâneo que nos souberam fortalecer desde os primeiros anos. As línguas, a literatura, as ciências naturais e até as exactas, a história, a filosofia, as artes, segundo o gosto e a ocasião, continuam a merecer o cuidado de cada um de nós: o indivíduo aumenta o capital da escola, até no meio das preocupações mais urgentes da família e do labor quotidiano, e assim se desenvolve no sombra da modesta obscuridade uma fecunda iniciativa, um foco que reflectido milhões de vezes em milhões de pontos, prolonga a influência da escola e lhe aumenta indirectamente a vida até que, com o decurso do tempo, entramos em novo contacto com ela, confiando-lhes os nossos filhos. Assistimos então a um triunfo invejável, ao ver os nossos filhos nesses lugares que ocupámos outrora, aprendendo muitas vezes com os mesmos mestres. Então provamos com exemplos vivos que não olvidámos nenhuma das doutrinas que nos foram ensinadas, habilitando com elas nossos filhos a percorrer com maior facilidade e segurança a verdadeiro caminho; que não nos esquecemos de lhes incutir especialmente a máxima fundamental – que o trabalho tem em si mesmo o seu prémio –, sem por isso lhes diminuir em nada a responsabilidade desse trabalho; e que estamos resolvidos a torná-los superiores a nós mesmos em saber e método.”
Referência completa:
- Michaëlis de Vasconcelos, C. (1976). A cartilha portuguesa e em especial a do snr. João de Deus. Revista Portuguesa de Pedagogia, Ano X, páginas 59-93.

2 comentários:

Anónimo disse...

Carolina Michaëlis é realmente, no feminino, a face emblemática, por excelência, da universidade conimbricense que, por ela, alcançou, nos tempos actuais, renome internacionalidade. Na universidade compostelana emparceirou, nos estudos fililógicos, com personalidades lusas da craveira de Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa e Hernâni Cidade, ainda hoje referidos como intelectuais de primeira grandeza, nem sempre bem tratados ou conceituados no seu país de origem, mais dado ao culto das mediocridades. JCN

Sara Raposo disse...

Cara Helena Damião:

Não vou fazer um comentário sobre o post que escreveu. Utilizo este meio apenas para partilhar uma reflexão que fiz, como professora, sobre os exames e os testes intermédios: assuntos que já ocuparam muitos dos posts que escreveu neste blog.
Caso lhe interesse, pode ser ler em:

http://duvida-metodica.blogspot.com/2011/03/uma-reflexao-sobre-o-teste-intermedio.html

http://duvida-metodica.blogspot.com/2011/03/testes-intermedios-nos-cursos-de.html

Cumprimentos.

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...