quinta-feira, 17 de março de 2011
O CÉREBRO, A MEMÓRIA, VESÁLIO E AMATO
Palavras que disse ontem na Biblioteca Joanina a abrir uma sessão integrada na Semana do Cérebro, em que foram apresentadas obras de Vesálio, restauradas, e de Amato Lusitano, a restaurar:
O cérebro é o sítio onde se localiza memória. As bibliotecas, como sítios de memória, são, portanto, ampliações do cérebro. Nesta Semana do Cérebro lembrámo-nos de celebrar o cérebro numa biblioteca, na que é uma das nossas melhores bibliotecas. E, de entre todos os livros desta bela biblioteca, escolhemos para vos mostrar o livro De Humani Corporis Fabrica ou Fábrica do Corpo Humano do belga Andreas Vesalius, ou aportuguesando André Vesálio, que foi publicado por Johannes Oporinus na cidade de Basileia no ano de 1543. Esse é convencionalmente o ano do nascimento da ciência moderna. Recordo que foi no mesmo ano que foi publicado na cidade de Nuremberga a obra De revolutionibus orbium coelestium, Da Revolução dos Orbes celestes do padre polaco Nicolau Copérnico, do prelo de outro Johannes, Johannes Petrejus.
Lembremos que, seis anos antes, o rei D. João III – cuja estátua, agora em restauro, se ergue lá fora diante da porta desta Biblioteca – tinha mandado mudar a Universidade de Coimbra de Lisboa para Coimbra. Já nessa data existia a Biblioteca da Universidade, pois documentos escritos falam de uma biblioteca na Universidade em Lisboa em 1513, há quase quinhentos anos.
O exemplar que hoje vos mostramos deve o seu restauro e digitalização – mostramos aqui o original e mostramos a cópia a toda a gente através do nosso repositório digital de fundo antigo Alma Mater - à Sociedade Portuguesa de Neurociências. Agradeço, personalizando no Doutor João Malva, a todos aqueles que permitiram esta recuperação de um documento que, tanto quanto sabemos, é único no país e raro no mundo. Bem hajam! Oxalá o seu exemplo possa frutificar e o nosso programa SOS Livro Antigo ganhe novos mecenas para restauros e digitalizações como esta que em boa hora fizemos e agora apresentamos. Mas sobre Vesálio e o cérebro falará com mais propriedade do que eu a Doutora Maria de Sousa, uma das nossas maiores cientistas, distinguida este ano com o Prémio Universidade de Coimbra, que hoje temos a honra de receber na Biblioteca Joanina. Estou certo que ela partilha connosco a mesma emoção ao ver o original do livro que funda a ciência e a medicina modernas. Passou-se a ver o céu com outros olhos e passou-se na mesma altura a ver o corpo humano também com outros olhos.
Se é uma boa notícia salvar um livro antigo, é uma notícia ainda melhor salvar vários livros antigos. A Sociedade Portuguesa de Neurociências, no ano em que se celebram os cinco séculos do nascimento de Amato Lusitano – ele é, portanto, só um pouco mais antigo do que a nossa Biblioteca – vai continuar a salvar livros antigos. Mostramos aqui duas obras originais de Amato Lusitano que essa Sociedade vai salvar no ano que agora começa. No final do ano de Amato Lusitano mostraremos estas obras ao vivo devolvidas ao esplendor original assim como as mostraremos as respectivas imagens urbi et orbi na Internet.
João Rodrigues de Castelo Branco, ou Amato Lusitano, o judeu português que foi professor de Medicina na Universidade de Ferrara, em Itália, em fuga à Inquisição, e que descobriu as válvulas venosas, quando observava a veia ázigos, viveu 57 anos, sendo contemporâneo de Vesálio, que viveu 50 anos. A longevidade não era naqueles tempos o que é hoje, graças à medicina moderna... Vesalius nasceu três anos depois de Amato e há até a possibilidade de ter havido uma relação pessoal entre os dois, pois um colega e amigo de Amato em Ferrara era Francesco Vesalius, irmão de Andreas, e também médico, que pode muito bem ter sido visitado pelo irmão. Segundo uma obra do historiador de Medicina Perez Fontana, Amato figura até na o areópago dos médicos mais notáveis que aparece na portada do livro de Vesálio: será a figura, de barba e nariz adunco, que se debruça perto da mão esquerda do esqueleto. Infelizmente, esta impressionante gravura não se encontra na nossa edição, por vicissitudes da história deste livro (a memória, mesmo a das bibliotecas, tem apagamentos), embora se encontrem muitas outras belas figuras provavelmente feitas por um discípulo de Ticiano.
Vesálio conhecia a o trabalho de Amato e citou-o, ainda que fosse para o criticar a respeito do seu trabalho sobre a veia ázigos. E, por seu lado, Amato refere também várias vezes Vesálio nos seus trabalhos, também por vezes num tom de alguma crítico. Não há nenhum mal nisso: a crítica é uma das traves mestras da ciência. Cito de uma das Centúrias:
“Sobre ela – a raiz da china – me agrada falar aqui, visto que até agora, que eu saiba, pouco ou nada foi dito e tanto mais que André Vesálio, há poucos dias, publicou um livrinho a que pôs o título “A raiz dos chineses", no qual (poderia dizê-lo sem hostilidade pessoal) nada se encontra, além do título, que diga respeito à raiz dos chinas. Com efeito, todo o livrinho é de Anatomia. Para o entender é necessário o charadista Édipo. É Vesálio um insigne anatomista , muito sabedor e bastante versado na língua latina, tendo, contudo, um estilo duro nos seus escritos, especialmente neste livrinho, em que se lêem muitas coisas ilustres e dignas de saber-se a respeito da anatomia”.
Como se vê, a crítica vai a par do respeito e da estima. E noutro passo escreve Amato:
"É isto que nós e os médicos profissionais muitas vezes percebemos. Eis porque Vesálio melhor teria feito neste assunto se tivesse encolhido a sua língua virulenta em vez de aplicá-la, imbuído de falsas razões de Averróis contra Galeno”.
Da melhor retórica científica da época... Da mesma época é também o português Garcia de Orta, que, ao contrário do matemático Pedro Nunes, não se mudou com a Universidade da cidade de Lisboa para a de Coimbra, preferindo rumar à Índia, provavelmente para não ter de enfrentar a Inquisição: embarcou nove anos antes da Fábrica vir a lume. Pois Garcia da Orta, nascido em 1500 e falecido 68 anos depois, também cita Vesálio. A citação de Orta a Vesálio é também a propósito da raiz da China, uma planta trazida do Oriente pelos Portugueses (nestes dias em que tanto se fala do Japão, recordo que foi em 1543 que os portugueses chegaram àquelas ilhas), encontrando-se num dos Colóquios dos Simples, livro impresso em Goa em 1563 com um poema de Camões na introdução. Escreve o médico português:
“E destouta raiz da China dizem Vesálio e Laguna muitos males dizendo que é podre e sem virtude esta raiz da China e que custa muito dinheirto, e não tenho que ver com que custe muito ou que custe pouco, nem que seja cara ou barata, amtes me parece bem o que diz Mateolo Senense, que basta para esta raiz ser boa mesinha, tomá-la o Imperador Carlos V e aproveitar-lhe."
Pois aqui está um dito que poderia ser moderno: não importa o preço do medicamento, o que interessa é que o doente cure... Lembro que o livro maior de Vesálio foi dedicado ao imperador Carlos V de quem Vesálio foi médico. Foi também médico em Madrid do rei Filipe II, Filipe I de Portugal. Aliás a relação de Vesálio om Portugal e os portugueses vai mais longe. Pois aprendi há pouco tempo numa separata do Maximino Correia, o professor de Medicina de Coimbra que foi Reitor nos tempos do Estado Novo, intitulada Evocação de Vesálio: O renovador da Anatomia e os Portugueses, que Vesálio foi enviado por Filipe II juntamente com um médico português para tratar o rei de França, Henrique II, que teve um gravíssimo acidente num torneio do qual veio a falecer. Os historiadores de ciência já identificaram esse "doutor português" com o médico Fernão Lopes, que é homónimo mas nada mais tem a ver com o famoso cronista.
Apesar do que já se sabe, a história da ciência portuguesa está em grande medida por fazer e espero que, neste ano de 2011, em que, além dos 500 anos de Amato, a Universidade de Coimbra celebra os 100 anos da sua refundação republicana, haja em Coimbra um novo impulso nos estudos de história da ciência. A Joanina poderá albergar uma exposição sobre Amato e Orta numa altura em que se realiza aqui um Congresso Luso-Brasileiro de História das Ciências.
A ciência portuguesa tem continuado desde então. Ela tem avançado nos anos mais recentes com cérebros como o da Doutora Maria de Sousa. A nossa convidada de hoje, que trabalha em imunologia, uma área em que também se fala em memória, está na tradição dos grandes nomes nacionais como Amato Lusitano e Garcia da Orta, que ela como nós admira. É um prazer recebê-la. Vai ser um prazer ouvi-la.
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