Comovente preito de homenagem póstuma do ensaísta Eugénio Lisboa a um homem bom e homem da cultura de seu nome Feliciano Falcão:
Em 1954, mais precisamente, em Fevereiro de 1954, fui colocado, como oficial miliciano de infantaria, no Batalhão de Caçadores, 1, em Portalegre. Não por escolha, mas porque, em Mafra, fora um cadete miliciano repetidamente rebelde e assaz irrecuperável. Como finalista de engenharia, conviera-me ficar colocado em Lisboa ou perto de. Mas a classificação mortífera, em comportamento, empurrara-me para uma unidade de quase fronteira: Portalegre que ficava a cinco horas de Lisboa, de comboio – castigo que baste. Castigo? Como se enganavam! Ao fundo do túnel da contrariedade, brilhava uma luzinha entre o tímido, o provocatório e o intenso: em Portalegre, “cidade do Alto Alentejo”, vivia José Régio, cuja obra se me abrira, em Lourenço Marques, em 1945 ou 1946, quando um colega do liceu, Alberto Parente, me ofereceu, pelos meus anos, o primeiro volume de A Velha Casa, que trazia o título aliciante e aterrador de: Uma gota de sangue. Era todo um mundo que se me oferecia! Foi por aí – não pela poesia – que comecei. A poesia veio um pouco mais tarde quando, já estudante, em Lisboa, li o Fado (sim, também não comecei pelos Poemas de Deus e do Diabo, que só vim a adquirir, numa 2ª edição, comprada no Lobito – Angola – quando, em 1952, ali passei, de barco, a caminho de Lourenço Marques).
Em suma, fazer o sexto ano de engenharia (com trabalhos práticos pelo meio) a cinco horas de distância e com os constrangimentos das obrigações e da disciplina militares – era bico de obra! Seria talvez compensado, se chegássemos à fala, pelo convívio com o Régio! O que não era seguro, dada a minha timidez de urso, neste caso agravada pela veneração que me inspirava a obra do grande escritor. Para quem não é atrevido, não é fácil a aproximação dos deuses – ficam longe e alto e costumam esconder-se atrás de cortinas... Pelo menos, assim o pensava ou assim me fazia pensar a reputação de inacessível que a lenda colara ao autor de As Encruzilhadas de Deus. Os próprios textos inculcavam uma solidão trágica e relatavam, com pérfida minúcia, os escolhos ao amor e à amizade. As traições espreitavam, o convívio humano era um território minado. Não era certo que o exílio em Portalegre me viesse a trazer a contrapartida com que sonhava.
Tudo foi, porém, surpreendentemente diferente e mais fácil. Um ou dois dias depois de termos chegado, o Rui Serrão, colega miliciano, extrovertido e desenvolto, aparece-me no Batalhão com boas notícias: conhecera, no Café Central, um Dr. Feliciano Falcão, alentejano, analista e investigador, cortez e prestável, que se oferecera para apresentar o Régio aos oficiais acabados de chegar, que nisso tivessem interesse. O Régio ia ao Central todos os dias e se quiséssemos, depois do jantar... Fiquei excitado e apavorado. Conhecer o Régio, aqueles olhos de certeza perscrutadores (A Velha Casa, O Jogo da Cabra Cega, a poesia toda, as Histórias de Mulheres não deixavam margem a dúvidas), afrontar o Régio, ser julgado pelo Régio... Julgo que, antes desse encontro, conheci, depois do almoço, o nosso intermediário, o Dr. Falcão, que logo me acalmou: era, visivelmente, com o seu sotaque alentejano carregado, um homem de uma grande candura e bondade, culto, interessado, passa-culpas... Não tinha dúvidas de que gostaríamos de conhecer o Régio e de que ele gostaria de conviver connosco. Pareciam-me certezas a mais, mas a urbanidade serena, tranquilizadora e sorridente do Dr. Falcão de algum modo me confortavam. E, de facto, à noite, depois do jantar, no Café Central, o Dr. Falcão, com uma simplicidade não afectada, juntou-nos a uma mesa. Comecei mal – o nervoso era tanto, que entornei a chávena de café, agravando a tensão. Durante todo o ano que passei em Portalegre, reuni-me, quase diariamente, à mesa onde pontificava José Régio e na qual participavam, frequentemente, Feliciano Falcão, Adelino Santos, Arsénio Ressurreição (pintor), Rui Serrão (meu colega e amigo) e, também, o capitão Saraiva e sua Mulher (que fora aluna de Régio) – entre outros. Foi aí que tive oportunidade de conhecer bem a personalidade generosa, aberta, inteligente e bondosa do médico alentejano. Algumas vezes, em sua casa, ouvíamos música, porque era possuidor de uma vasta e ecléctica discoteca que incluía desde música medieval até aos contemporâneos mais cotados. Régio, que olhava com alguma malícia para a “abertura” cândida de Feliciano Falcão, nem sempre terá sido justo para o seu amigo – chegaram mesmo a cortar relações. A pureza do médico chegava a exasperá-lo e, com o seu feitio provocador tentava atiçá-lo... “ensaiá-lo”. Admirei Régio e fui seu amigo, mas senti por Falcão um profundo e respeitoso afecto. Feliciano Falcão era um aderente do Partido Comunista, o que quase me fazia sorrir: a profunda ética e delicadeza do seu proceder (nada compatível com o moto de que os fins justificam os meios), o seu profundo amor à arte, despreocupado de saber se ela “servia” ou “não servia”, a sua profunda e nunca desmentida admiração e empatia com a obra do autor de Mas Deus É Grande faziam dele um bem singular exemplo do comunista... Confesso que pouco me ralava o que ele era ou julgava ser: para mim, era um dos mais nobres e puros exemplares de homem que até então (e até hoje!) me foi dado encontrar.
Quando, ao fim de um ano, saí de Portalegre, estive uns meses em Lisboa e, depois, regressei a África, onde perdi o contacto com o Dr. Feliciano Falcão e só voltei a reatá-lo, em 1978, em vésperas de partir de Lisboa para Londres. Visitei-o ainda na sua casa da serra, em Portalegre e trocámos uma ou outra carta. Mas deu-se, pouco antes da sua morte, um facto significativo que foi, para mim, o testemunho de fogo da espécie de amizade que nos unia (sentia por ele, como disse, um profundo ainda que não expresso afecto e fiquei, por essa carta, a saber – a confirmar – que o mesmo sentia ele por mim). A sua missiva anunciava de modo discreto que o seu fim poderia não estar para demora. E ele admitia que pudesse não ser um fim “agradável”. Fazia-me um pedido que no tempo dos romanos, na antiguidade, era normal um amigo fazer a outro amigo: sendo necessário, ajudá-lo a morrer. «Elle était bien noble, pourtant,» observava Montherlant, «la conception que c’était votre ami, votre compagnon d’armes, votre esclave, qui vous aidait à vous tuer. C’était avec celui-lá qu’on aurait pu à bon droit faire le ‘mêlement des sangs ‘ ; quel que fût son rang ce pacte faisait de lui son égal.»
O que Falcão me propunha era esse pacto de fogo e amizade: sendo necessário, ajudá-lo a morrer. Ficava implícito que, sendo médico, me facultaria os meios. Era pedir muito – na nossa sociedade, como ela legalmente existe, era pedir um crime – mas era pedir o que um romano pedia à amizade de outro romano. Falcão sabia – pelos textos – da minha admiração por Montherlant e pelo mundo romano cujos valores cantara na sua obra soberba e hoje inadequada aos valores “farfelus” de uma sociedade consumista e desvirilizada. Pedia-me, portanto, que fosse seu amigo, como se deve sê-lo em tempo de crise. Fiquei uns dias a pensar no que poderia responder-lhe – quando tive notícia do seu falecimento. Hoje, gosto de acreditar que lhe teria respondido, dizendo-lhe que contasse comigo.
Eugénio Lisboa
Na imagem: Retrato do Dr. Feliciano Falcão
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