terça-feira, 22 de março de 2011

A CIÊNCIA VIVA NO SÉCULO DAS LUZES


"O iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele próprio. Menoridade é a incapacidade de se servir do próprio intelecto sem guia de outro. Imputável a si próprio é esta menoridade se a causa dela não depender de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude! Ousa servir-te da tua própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo.” (Immanuel Kant, 1784)

O século XVIII, que começa sob a égide da monumental obra de Isaac Newton (os Principia Mathematica tinham saído dos prelos da Royal Society de Londres em 1687), foi um grande século para a ciência. Na Física a influência de Newton foi dominante: o tempo a seguir a ele foi basicamente o de reformular teoricamente e de confirmar observacional e experimentalmente os ensinamentos do professor de Cambridge.

A Royal Society de Londres, que tinha sido fundada em 1660 por uma dúzia de livres pensadores, começava a afirmar-se como a mais importante das academias científicas. Em 1703 Newton tornava-se seu Presidente, lugar que haveria de ocupar até à sua morte em 1727 (curiosamente, ano em que se completa a construção da Biblioteca Joanina, na Universidade de Coimbra, uma escola dominada então pelo movimento da contra-reforma). A figura muito prestigiada do autor dos Principia contribuiu decerto para o prestígio da Royal Society, embora ele, nos anos mais tardios da sua vida, estivesse já bastante longe dos seus momentos de apogeu criativo. A Academia de Ciências de Paris e a Academia de Ciências de Berlim, só um pouco posteriores à academia londrina, eram também sítios onde as últimas novidades da ciência eram apresentadas e discutidas e os primeiros jornais científicos eram publicados, desenvolvendo comunidades científicas que iam mais além dos perímetros das respectivas urbes.

A Natureza passou então a ser vista como uma máquina. Nessa época surgiram, com principal foco na cidade de Londres, oficinas onde se manufacturavam os instrumentos, ou máquinas, que permitiam interrogar a Natureza. As experiências realizadas com essas máquinas não diziam apenas respeito ao movimento produzido pela força de gravitação universal mas também aos fenómenos da electricidade e magnetismo. Se o conhecimento empírico das forças eléctrica e magnética é anterior, foi só no século denominado das luzes que, esclarecido o mistério da força gravítica, a atenção dos físicos se focou nelas. O livro de um membro da Royal Society, Francis Haukbee, Physico-mechanical experiments, saído em 1709, descrevia curiosas experiências de descargas eléctricas. Nomes como o norte-americano Benjamin Franklin, o francês Charles Coulomb, e os italianos Luigi Galvani e Alessandro Volta ficaram indelevelmente associados ao estudo dos fenómenos eléctricos, que iriam desembocar na grande união da electricidade com o magnetismo consumada no século seguinte. As experiências eram feitas não apenas nas sociedades científicas e nos laboratórios universitários, mas também nalguns gabinetes aristocráticos. A ciência começava a estar viva em todo o lado... A experimentação com essas máquinas era premonitória dos modernos módulos, como os dos Centros Ciência Viva, que servem não apenas para a instrução mas também para o entretenimento da população em geral.

Dentro das ciências físicas, com o trabalho de nomes como o inglês Robert Boyle, o escocês Joseph Black, o primeiro um dos membros iniciais da Royal Society de Londres e o segundo membro da Royal Society de Edimburgo, avançava também, mais por manipulação do que por elaboração teórica, o conhecimento dos fenómenos térmicos que haveria de conduzir mais tarde no mesmo século ao invento da máquina a vapor por um outro escocês, James Watt, e, na sequência, à primeira vaga da Revolução Industrial, baseada nesse tipo de máquinas, que precedeu a segunda vaga, já baseada em máquinas electromagnéticas.

Graças a diligentes observadores como o ingleses Edmond Halley e William Herschel, outros sócios proeminentes da Royal Society (o primeiro também nos derradeiros anos da sua vida astrónomo real no Observatório de Greenwich), os avanços da astronomia foram enormes, confirmando o extraordinário poder das leis newtonianas que regem a mecânica celeste. Era possível prever com precisão o regresso dos cometas, tal como haveria de ser possível prever, apenas com papel e lápis, a existência de outros planetas no sistema solar. A astronomia era considerada matemática aplicada: foram muito bem sucedidas as tentativas dos matemáticos italiano Édouard-Louis Lagrange e suíço Leonard Euler de livrar a teoria de Newton do seu aparato geométrico para lhe dar uma forma inteiramente analítica. Por seu lado, o matemático francês Pierre Simon de Laplace divulgava em território gaulês, consolidando-as e ampliando-as, a ideia newtoniana da acção à distância através do vácuo. Com isso ultrapassava o atraso que o seu compatriota René Descartes tinha provocado com a sua conjectura dos movimento dos planetas por turbilhões de éter. Na matemática pura e dura, o nome de Euler brilhou como uma estrela nde primeira grandeza. Poucos matemáticos tiveram até hoje o seu fulgor.

O século XVIII é também o tempo em que, por obra e graça da experimentação cuidadosa, a ciência química emerge ainda que a custo da alquimia. Embora com um labor que o próprio quis conservar secreto, Newton foi o último dos grandes alquimistas. A química veio a ficar estabelecida com sábios como os ingleses Joseph Priestley e Henry Cavendish, outros sócios da Royal Society, e, principalmente, com o francês Antoine-Laurent Lavoisier, cuja vida foi interrompida pela guilhotina que, em França, ajudava a derrubar o ancient regime.

As ciências naturais não ficaram para trás. Avançaram significativamente com a observação, colecção e classificação de espécies botânicas e zoológicas. Foi a época do sistema que deve o nome ao naturalista sueco Carl Linnaeus, cujos trabalhos seriam continuados ao longo do século XVIII e início do seguinte pelos franceses Conde de Buffon, Georges Cuvier e Jean-Baptiste Lamarck. Ainda estava algo distante o momento da grande unificação nas ciências biológicas realizada pelo naturalista inglês Charles Darwin. A geologia, por sua vez, estava ainda na sua pré-história, destacando-se o nome do alemão Abraham Werner, o pai da mineralogia.

Depois de, no século XVII, o médico inglês William Harvey ter clarificado a questão a circulação do sangue, a medicina conhecia grandes progressos no século seguinte, sendo representativo deles as obras do médico holandês Herman Boerhaave, com quem o português António Ribeiro Sanches trabalhou, e do médico suíço Albrecht von Haller, o autor de Elementa physiologiae corporis humani. Tal como nas ciências físico-naturais, também na medicina se reforçava o papel da observação rigorosa e da experimentação guiada por hipóteses. O método científico iniciado na Física estendia-se lenta mas seguramente ao espectro de todas as ciências.

E tudo isto não se fazia sem uma vaga enorme de alterações no pensamento filosófico: do outro lado do canal da Mancha sobressaíam os empiristas escocês David Hume e inglês John Locke, este último outro sócio da Royal Society e um dos membros do círculo muito restrito de amigos de Newton. No lado de cá, ganharam justa fama o francês Voltaire, divulgador antes de Laplace da obra de Newton, o suíço Jean–Jacques Rousseau, não tanto um iluminista mas mais um pré-romântico, e sobretudo Immanuel Kant, que estará para a filosofia moderna como Newton está para a física, Euler para a matemática e Lavoisier para a química. Foi de resto Kant, que começou por estudar a física de Newton antes de enveredar pela filosofia, quem melhor esclareceu o significado da palavra “iluminismo” que tão bem caracteriza o seu século: ousar saber!

O século de Kant foi, portanto, um tempo de gigantes. Na economia, para dar outro exemplo, foi o século do escocês Adam Smith, o autor da An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. E, na política e sociedade, as novas correntes filosóficas não foram estranhas às prodigiosas transformações consumadas com a Declaração da Independência dos Estados Unidos em 1776 e com a Revolução Francesa em 1789.

Em Portugal, o século XVIII deixou também profundas marcas: a marca do longo e rico reinado de D. João V, e a marca do governo com mão de ferro do marquês de Pombal, no reinado de D. José, que sorveu as ideias iluministas em Viena e Londres (foi também sócio da Royal Society) para mais tarde as aplicar graças à oportunidade de poder absoluto que o grande terramoto de 1755 lhe proporcionou. Os dois monarcas deram atenção à ciência e terão até desfrutado deo uso de instrumentos científicos. Nesse século Portugal conheceu um período de grande intercâmbio com o exterior, facto que favoreceu o aparecimento da dúzia de nomes notáveis da história da ciência que foram membros da Royal Society. Verdade se diga que, para isso, muito contribuíram fenómenos da intolerância a vários níveis: perseguiram-se tanto os judeus como os membros de ordens religiosas, primeiro os jesuítas e depois os oratorianos, para não falar já de acusações de cariz mais político a membros da nobreza. Jacob de Castro Sarmento e Jacob Rodrigues Pereira foram judeus perseguidos, os padres Teodoro de Almeida e João Chavalier foram oratorianos perseguidos, João Jacinto Magalhães era um frade crúzio que temeu e evitou da perseguição, e D. João de Bragança (2.º Duque de Lafões) era um membro da família real que não queria estar demasiado perto do Marquês. Foi o tempo dos “estrangeirados”.

Em Outubro de 1772, quando o Marquês de Pombal vem a Coimbra, revestido de todos os poderes do rei, para entregar ao Reitor Reformador os novos Estatutos da Universidade, estava a fazer o país entrar numa nova era, uma era em que os valores da ciência experimental deviam pontificar, fosse na física (com um Gabinete de Física Experimental, reunindo máquinas oriundas do Colégio dos Nobres em Lisboa), fosse na astronomia e na matemática (com um Observatório Astronómico), fosse ainda na química (foi construído de raiz um Laboratório Chimico num sítio que era refeitório de jesuítas e que hoje é a sede do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra), na História Natural (com um Gabinete de História Natural e um Jardim Botânico) e na Medicina (com um Teatro Anatómico e um Dispensário Farmacêutico). Recuperando o atraso que ele diagnosticou, o Marquês pretendia que a Universidade ombreasse com o melhor que se fazia na ciência europeia e mundial. No século das luzes ocorreu, assim, um dos períodos de luz da nossa história da ciência. A ciência passou também a estar viva entre nós.

E, naturalmente, o século XVIII não poderia findar sem ser fundada, entre nós, um correspondente da Royal Society e das Academias de Paris e de Berlim: a Academia de Ciências de Lisboa foi criada em 24 de Dezembro de 1779, já depois de morto D. José e derrubado o Marquês. Os pais fundadores eram alguns sócios da Royal Society, como o Duque de Lafões e o Abade Correia da Serra. Passados mais de cem anos sobre o aparecimento das suas congéneres de Londres, Paris e Berlim, também em Lisboa se passavam a discutir inter pares questões científicas ao mais alto nível. Também em Lisboa a divisa kantiana Sapere aude se impunha ao nível de um areópago de sábios...

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