terça-feira, 22 de março de 2011

Comentário em defesa das ordens profissionais



“Quanto mais extrema, intransigente e radical é uma afirmação tanto mais ela solicita e reclama a afirmação oposta” (Mario Perniola, professor de Estética da Universidade de Roma “Tor Vergata”).

Na segunda parte do meu post, publicado em 17.Julho.2010, ínsito neste blogue, com o título “Dicionário Histórico das Ordens Profissionais e Instituições Afins e Ordem dos Professores (2)”, relato, pari passu, a discussão, na Assembleia da República, da petição do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (02/12/2005) para a criação da Ordem dos Professores. O supracitado post, mereceu um comentário do leitor João Viegas a demarcar-se da posição daqueles que, em representação institucional ou opinião meramente pessoal, sem argumentação sólida, ou mesmo sem qualquer argumentação, se assumem contra a criação de uma Ordem dos Professores.

Como peça de uma frutuosa discussão, transcrevo textualmente esse doutrinário comentário que, desta feita, me isenta de ser juiz em causa própria, precedido de uma breve introdução minha que pretende ser esclarecedora de um clima desfavorável a um debate parlamentar devidamente desobrigado em face, essencialmente, destas duas situações:

1. A Ordem dos Engenheiros não reconhecer as licenciaturas em Engenharia Civil passadas pela então Universidade Independente.

2. Encontrar-se na forja, “ipso facto”, a publicação de uma aberrante lei-quadro que retirava às ordens profissionais a prerrogativa desse reconhecimento.

Reza o comentário do leitor João Viegas:

"Caro Rui Baptista,

Muito obrigado pelos dois posts, interessantes e informativos. Tentando elevar o debate, que não me parece ter nada a ganhar com a sua inevitável ligação a questões de estratégia político-partidária, quero apenas fazer dois reparos, que são acima de tudo duas interrogações :

1. Não me parece que exista incompatibilidade de principio entre a existência de uma ordem e a existência de um sindicato. São duas coisas distintas que têm aliás funções complementares. Um sindicato tem por missão velar pelos interesses profissionais de uma categoria de trabalhadores, normalmente para negociar condições de trabalho com a entidade patronal. Salvo erro (mas não resido em Portugal, portanto posso estar enganado nesse ponto) não existe apenas um sindicato de professores, e menos ainda um sindicato abarcando todas as categorias de professores (do publico, do privado, etc.), cujos interesses meramente profissionais não são inteiramente coincidentes. Já uma ordem é outra coisa. Só tem sentido se for única. Pretende velar, não pelos "interesses" dos professores, mas pelo respeito das regras deontológicas que caracterizam a profissão no seu todo. Estas regras não visam principalmente proteger os membros da profissão, visam antes proteger o interesse público, ou seja impedir que os profissionais percam de vista a utilidade social do seu ministério. E' claro que os bons profissionais também têm "interesse" no cumprimento dessas regras deontológicas, porque um bom médico, um bom advogado, um bom veterinário, tem interesse em que os charlatães não se reclamem impunemente da sua arte, mas estas regras não têm por objecto principal assegurar os seus interesses particulares, e até podem às vezes implicar que esses interesses particulares sejam sacrificados em benefício do interesse público. Um médico, um advogado, um veterinário, etc., também tem obrigações deontológicas, para com a sociedade, e essas obrigações fazem parte da sua deontologia. São pois regras cujo respeito não diz apenas respeito aos membros da ordem profissional, mas à sociedade inteira. É perfeitamente possível, e até salutar, existirem simultaneamente uma ordem profissional e um ou vários sindicatos profissionais. Pode mesmo haver inter-acção entre eles: por exemplo na medida em que os sindicatos propõem candidatos aos órgãos representativos da ordem.

2. Pelas razões expostas acima, a questão de saber de onde emanam as regras não me parece realmente crucial e pode até ser considerada como metafísica. Em princípio, as regras deontológicas nascem da tradição e da historia, ou seja do comportamento dos profissionais que deram consistência e sentido social à sua actividade profissional. No entanto, é frequente, e inteiramente legítimo, que estas regras sejam sancionadas por uma lei (muitas vezes elaborada após consulta dos profissionais), o que lhes confere um valor superior e uma força vinculativa que se justifica pelo facto de serem também de interesse geral. Um exemplo: o segredo profissional é uma regra deontológica (e começou por ser apenas isso), mas é também uma regra penal, isto porque a sociedade no seu todo tem interesse em que os cidadãos que se dirigem a um médico, ou a um advogado, o façam em condições de plena confidencialidade e na certeza de que as informações que dão ao profissional que consultam não irão ser divulgadas. Assim se explica que existam códigos deontológicos que constam de diplomas legais, o que apenas significa que a sanção do seu cumprimento, em vez de ser deixada unicamente ao cuidado dos órgãos ordinais, é confiada aos tribunais comuns. Existe depois outra questão, diferente, que consiste em saber em que medida os profissionais devem ser consultados na elaboração das regras que fazem da sua deontologia uma norma geral, invocável por quaisquer cidadãos. Parece-me obvio que a prudência manda que os profissionais sejam associados à elaboração desse tipo de normas legais, e parece-me ser o que se passa na prática em todos os casos, da mesma forma que os profissionais também devem ser, e são, consultados para a elaboração das regras de acesso à profissão, etc. No entanto, esta regra de prudência não deve ocultar que existe um interesse geral, de todos os cidadãos e não apenas dos profissionais que exercem a profissão, em definir as regras básicas de exercício da profissão. Isto porque uma profissão – e por maioria de razão uma profissão LIBERAL, conceito que implica que o seu exercício beneficie a todos – não é apenas uma fonte de rendimento para aqueles que a exercem. Tem um valor social, que lhe da sentido útil e que é sempre o que devemos ter em conta quando estamos a falar de deontologia, sob pena de esvaziar completamente de sentido esta palavra tão importante quanto nobre.

Desses dois pontos deduzo que a oposição entre os partidários de um (ou vários) sindicatos e os partidários de uma ordem, é largamente artificial e não corresponde a nenhuma dificuldade substancial. Não vejo nenhuma razão para colocar a questão em termos alternativos. Se me posso permitir dar um exemplo pessoal, eu sou, simultaneamente, membro de uma ordem e membro de um sindicato. Acho imprescindível ser membro de uma ordem, porque considero exercer uma profissão que seria desvirtuada sem deontologia, e considero importante fazer parte de um sindicato, porque é legitimo velar colectivamente pelos interesses dos profissionais que exercem esta arte, uma vez que se não nos preocuparmos com isso, teremos uma belíssima profissão no papel, sem nenhuns profissionais para a exercer na prática. Mas sei que, no dia em que os meus interesses profissionais passarem à frente das regras deontológicas da minha profissão, deixará necessariamente de fazer sentido continuar a exercer esta profissão. E sei que o primeiro dos meus interesses, mesmo pessoal, é nunca perder isto de vista…

Desculpe este longo comentário. Oxalá possa ajudar a esclarecer a questão, que no meu entender é tão importante quanto melindrosa".

16 comentários:

Anónimo disse...

Muito obrigado, caro Rui Baptista, pela honra que me faz ao destacar o meu humilde comentario. Venha pois o debate, sobre uma questão deveras importante, não apenas para os professores alias.

Com os meus melhores cumprimentos.

joão viegas

Rui Baptista disse...

Prezado João Viegas: Não tem nada que agradecer. Tive grande prazer na transcrição do seu comentário. Só teria pena se ele não movimentasse as hostes que se agitam nos bastidores contra a criação de uma Ordem dos Professores. Seria (ou será?) salutar para uma discussão, bem fundamentada e com honestidade, que se arrasta num tempo em que, segundo John Stuart Miller, "o mal de silenciar uma opinião constitui um roubo à humanidade".

Por mim falo. Não me eximirei a essa discussão, e atrevo-me até a pensar que o caro João Viegas participaria nela de boa vontade com a serenidade espelhada no seu comentário.

José Batista da Ascenção disse...

Com tal clareza as razões estão aduzidas que, em minha humilde opinião, apenas digo:
Constitua-se (isto é, façamos) uma "Ordem dos Professores".
Obrigado.

Rui Baptista disse...

Prezado José Batista da Ascenção: De quando em vez, surge em mim a dúvida se não estarei a ter um papel um tanto ou quanto quixotesco quanto à criação da Ordem dos Professores.

Todavia, ela logo se desvanece com o entusiasmo que suscita naqueles poucos que têm a certeza (se neste Portugal actual de incertezas, ainda há lugar para ela!) que, mais dia, menos dia, a Ordem dos Professores será uma realidade. Assim, o seu comentário tem uma palavra de ordem, que subscrevo totalmente: "CONSTITUA-SE UMA ORDEM DOS PROFESSORES".

Isto apesar de o interesse de políticos ter criado uma legislação que amputou às futuras ordens profissionais o papel importantíssimo de ser o garante público de que os seus membros se acham devidamente credenciados academicamente.

Debalde, quiseram, até, os respectivos legisladores ir mais longe tornando-a retroactiva em relação a ordens profissionais já constituídas, e de longa tradição, como, por exemplo, à Ordem dos Engenheiros que não se vergou à prepotência dos validos deste país que pretenderam que o hábito fizesse o monge…

Ou seja, como primeiro passo constitua-se uma Ordem dos Professores com a certeza de que as leis (se para mais mal feitas ou mesmo iníquas) não são um inamovível Rochedo de Gibraltar. Só assim teremos a garantia da probidade de um magistério digno e dignificado sem apresentar docentes com “licenciaturas” tiradas em escolas privadas e em fins de semana com o aval do próprio Estado que as equipara, em desobediência a princípios éticos e sob pressão sindical, para progressão na carreira docente, a verdadeiras licenciaturas. Pode ser que esses diplomas sejam legais…mas são imorais!

José Batista da Ascenção disse...

Meu caro Rui Baptista:

Entendo como quixotescas as ideias erradas e ridículas.
E vejo grande nobreza e dignidade nos que se batem por ideias (e ideais) que, embora difíceis de pôr em prática, constituem um caminho acertado, honesto e necessário.
Por tal motivo, encarecidamente lhe peço o favor de não esmorecer. É bem certo que atrás de uma dificuldade, outra e outra se levantarão. E surgirão dificuldades até onde (e de quem) menos se esperaria.
Mas o que Rui Baptista tem feito são sementes que não foram lançadas à terra em vão. Seguramente, com maior ou menor custo, com mais ou menos lentidão, algumas daquelas sementes, mesmo em solo magro, hão-de vingar.
A certeza disto vem-me da persistência e da coragem limpa da sua luta. O que muito lhe agradeço.

joão boaventura disse...

Caro Rui

Eu não sei como será a vida do professorado com a Ordem que o defenda das malfeitorias governamentais, mas constato que sem ela a vida do professorado está ao sabor do catavento, perdida, sem rumo, porque essa é a posição defensável do Ministério da Educação, como forma de se apresentar sempre como o único salvatério dos caminhos para os professores.

Posto isto ocorre-me perguntar, a propósito da profissão liberal, instrumento de arrimo a quem propala a omissão dessa :

- os profissionais liberais que trabalham para o Estado continuam a ser liberais (independentes) ? ou passam a dependentes ? Não há aqui um ritual de passagem, de independente para dependente ?

- os professores que estão desempregados continuam dependentes ? ou passam a independentes (liberais)? Não se observa o velho ritual de passagem de dependente para independente ?

O mal maior reside na, e emana da, ideologia que cada governo pretende impor quando assume a posição de Estado. Esse é o óbice de peso que oblitera qualquer outra medida mais consentânea com os objectivos do professorado, o da transmissão do conhecimento, e o da salvaguarda da sua independência face às variáveis ideológicas, de que cada governo se julga senhor absoluto e irrevogável.

Enquanto os governos não se libertarem do fantasma das ideologias, estas serão a sua etiqueta e o seu código de conduta. Tudo será configurado segundo o figurino mental.

A Ordem dos Professores é o medo dos governos perderem o exército de professores, mas terá um exército revoltado, sem força para obedecer, e sem motivação para transmitir o conhecimento.

Um abraço

Anónimo disse...

Caros,

Bom vejamos as coisas pelo lado positivo.

1/ Estamos a falar de um assunto de fundo, de um assunto politico no sentido mais nobre do termo, que devia interessar a toda a gente, não apenas por dizer respeito à mais vasta categoria profissional que temos, mas sobretudo porque se trata de saber a quem confiamos TODAS as nossas crianças, e também de um assunto com infinitas ramificações, ja que a questão do valor do ensino, e do valor dos professores, é talvez uma das que têm maior incidência pratica sobre a transmissão e a redistribuição de riqueza...

Portanto se formos fazer contas, conhecendo os nossos compatriotas como os conheço, deveremos provavelmente concluir que ja é extraordinario sermos três a achar que o assunto merece uns segundos de reflexão...

2/ Correndo o risco de discordar do estimado José Batista de Ascenção, penso que apenas existe uma medida seguramente mais importante do que a proposta no post, para o ensino geral e a cultura dos portugueses, que seria tornar obrigatorio para todos os cidadãos portugueses lerem pelo menos uma vez todos os 5 anos, de uma ponta a outra, essa genial e inultrapassavel obra prima que da pelo nome de Dom Quixote...

Saudações cordiais

joão viegas

José Batista da Ascenção disse...

Caro João Viegas:

É-me muito grato ler o que escreve.

Relativamente ao segundo ponto do seu comentário das 18.45 h não é que discorde propriamente. Mas, já me bastava que a obrigatoriedade de ler a obra-prima de Cervantes se limitasse a uma vez durante a vida. Creio que isso bastaria para que muitos a voltassem a ler... De resto, se a sua proposta se tornasse válida, e tivesse efeitos retroactivos, estava eu em maus lençóis, porque só li a obra duas vezes. E à segunda gostei mais ainda, talvez porque a tradução é de Aquilino Ribeiro Machado. Mas admito voltar lá...

Só mais uma nota: para além da satisfação é para mim uma honra ter a possibilidade de aprender um pouquinho mais "trocando" comentários com pessoas como o João Viegas, o João Boaventura, o Rui Baptista e outros de tão boa formação, cordialidade e estatura ética. Que, associadas à franqueza, à frontalidade e à coragem, constituem tão só o cumprimento do dever de cada um de nós. Mas é bom poder constatar que há quem cumpra gostosamente esse dever.
Desculpem se me alarguei.

Disse. Sinceramente.

Rui Baptista disse...

Caro João:

Começo a preocupar-me se na minha defesa ao conceito de definição liberal, aplicada à docência, não descurei o próprio conceito de profissão, “tout court”, que, num conceito simplesmente sindical, em clima favorável de uma descontrolada massificação do ensino, se satisfez com o simples exercício em ministrar aulas e pagar quotas que davam direito ao (ab)uso de um cartão que dizia ser o seu portador aquilo que não era. Mas isto são contas de um rosário que tentarei abordar numa outra altura.

Mas tudo isto não seria assim tão escandalosamente grave (isto é, a manutenção de um “statu quo” sindical que pouco continua a ligar à qualidade da formação dos professores promovendo a igualdade entre desiguais ) não se desse o caso de ter a cobertura das diferentes tutelas da 5 de Outubro que comungam de igual oposição à criação de uma Ordem dos Professores. Aquilo que o João tem como “o medo dos governos perderem o exército dos professores” como simples e obedientes cumpridores de ordens burocráticas emanadas de instâncias oficiais sem o direito de as discutir mesmo que atentem contra a sua dignidade, os seus deveres e direitos e o próprio sentido de responsabilidade de uma profissão que, pela sua formação académica actual, deve assumir o estatuto de autónoma pelo sentido de responsabilidade que lhe deve ser reconhecido, porque, como reconheceu François Charmot, “o educador é um ser superior”. E, como tal, deveria (ou melhor, deverá) ter esse estatuto!

Um grande abraço.

Rui Baptista disse...

Caro José Batista da Ascenção:

Citando-o, entende como quixotescas as ideias erradas e ridículas. Mas nem sempre assim acontece por parte daqueles que assumem o papel materialista do escudeiro Sancho Pança ao pretenderem ver a docência numa óptica meramente sindical, ou seja sob o ponto estritamente laboral. Para esses o exercício da docência assim se esgota e se contenta em ruidosas manifestações sindicais de um sindicalismo com raízes no século XIX.

Quanto ao apelo que me faz, e que me garante não estar desamparado da companhia de pessoas lúcidas que têm o magistério como uma das mais nobres profissões responsável pela formação das elites intelectuais e profissionais deste país, mais vezes do que seria normal e desejável, confundidas com analfabetos encartados, uso para mim o axioma de que “burro velho não aprende línguas”.

A proximidade de dois meses em cumprir oitentas anos de vida com uma aposentação aos setenta depois de quarenta e poucos anos de actividade docente em vários graus de ensino, desde do técnico e liceal ao ensino universitário em duas prestigiadas universidades estatais portuguesas, dão-me a paz de alma, ou mesmo um certo orgulho, de fazer saber, “urbi et orbi”, que não me movem interesses meramente pessoais. Unicamente o mérito que não desmereço ( e termino com uma outra citação sua) da minha “persistência”.

Cumprimentos amigos.

Rui Baptista disse...

Corigenda ao meu comentário das 09:56: 2.ª linha do último §, oitenta anos.

Rui Baptista disse...

Começo a notar e a penitenciar-me pelos meus 79 anos de idade: CORRIGENDA.

Rui Baptista disse...

Caro José Viegas: Os programas de literatura do ensino secundário têm os escritores que pertencem à memória de uma juventude de outros tempos de exigência, v.g., Eça, Camilo, Almeida Garrett, etc., mal-amados, arrumados nas prateleiras ou então dados em resumos que facilitam a aprendizagem dos alunos e servem, por vezes e infelizmente, a ignorância dos respectivos docentes.

Pois se até o Vate da nossa epopeia marítima foi proscrito, após o 25 de Abril, por ser considerado um perigoso “fascista”, não será a obra do imortal Cervantes, perdoe-se-me a gíria, demasiada areia (bastante mais de mil páginas) para a camioneta de uma juventude que, em grande número, sabe de cor os nomes dos jogadores de futebol mas ignora, por exemplo, o nome de escritores portugueses que da “lei da morte se foram libertando”? E não se trata de alunos do secundário, apenas.

Assim, no “Jornal Nacional” da TVI (29/01/2003), alunos da Faculdade de Letras de Lisboa ao serem confrontados com simples perguntas dos nomes dos autores de “Os Maias” e de a “A Cidade e as Serras”, não souberam responder e um deles atribuiu, até, a autoria de “Os Maias” a Egas Moniz, deixando a alternativa da escolha: Egas Moniz, honradíssimo fidalgo do século XII, ou Egas Moniz, Prémio Nobel/1949?

Aliás, já o próprio Eça se queixava desse flagelo:”Um dos maiores males de Portugal, e digamos, o maior, é a ignorância. A completa, a perfeita, a absoluta ignorância. (…) Portugal é um país ignorante, mergulhado no obscurecimento da alma, e apenas guiado pela perfeição do instinto. O mal desaparecerá com a instrução: sob esta ideia se desenvolvem em todos os pontos as escolas, os estudos, os estabelecimentos de instrução. Procura-se por meio dos estudos, das leituras, da influência das ideias justas, pela activa perseverança com que a racionalidade transforma a alma, procura-se instruir o povo para atenuar a criminalidade, a embriaguez, a prostituição, todas estas formas ardentes da fatalidade social. Em Portugal não se pensa nisso…”

Em nome do facilitismo que assentou arraiais no sistema educativo nacional, cada vez se pensa menos nisso com a proliferação das Novas Oportunidades (ou novos oportunismos?) e Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos (ou ignorantes maiores de 23 anos?). Portanto, meu caro José Viegas, não exijamos demasiado dos nossos jovens: o título apenas de duas ou três obras dos nossos melhores escritores, a leitura de livros cor-de-rosa, o folhear das revistas do “jet-set” e a leitura, essa sim, cuidada de jornais desportivos parecem suficientes num Portugal em que a mediocridade substituiu o mérito…

Cordiais cumprimentos.

Rui Baptista disse...

Prezado João Viegas: As minhas desculpas pelo engano involuntário da evocação escrita do seu nome próprio. Camilo dizia que nos podemos enganar nos tratamentos, mas na gramática lavra mais fino. Para mim, neste lamentável lapso de memória,lavra fino de igual modo.

Anónimo disse...

Caros Rui Baptista, José Batista de Ascenção e outros comentadores,

Obrigado pelos vossos comentarios. Sem grande tempo, dois pequenos reparos :

1; Quanto à questão levantada acima, da compatibilidade entre pertença a uma ordem profissional e estatuto de funcionario publico julgo que não existe nenhum obstaculo de princpio : ja hoje existem, se não estou em erro, médicos que são funcionarios e que não deixam de pertencer à ordem por causa disso. Mas a questão remete para o proprio estatuto da função publica e não deixa de ser fundamental. A não ser que se tenha do estatuto da função publica uma acepção muito estreita, não devia causar nenhuma estranheza existirem agentes nomeados pelo Estado para desempenhar a sua função com independência. Assim acontece, por exemplo, com os magistrados. Em teoria, assim acontece também com os membros do corpo docente. Esta circunstância é que justifica, alias, que eles so possam ser avaliados no plano pedagogico pelos seus pares...

2. Admito que o Dom Quixote é um livro muito exigente e que é provavelmente angélico pedir que se leia de uma ponta à outra todos os 5 anos. A minha "boutade" prende-se no entanto com o seguinte : se lermos a obra com atenção, até vamos la encontrar todos os elementos que permitem definir a "liberalidade" caracteristica da profissão liberal. Lembre-se que Dom Quixote não é apenas cavaleiro andante, é também o "mestre" de Sancho, e promete, de forma "liberal", eleva-lo. E que cumpre a promessa...

Nota final : muito bem faz o amigo José Batista de Ascenção em lembrar a tradução do Aquilino. Esta tradução, que mais do que uma versão, é uma verdadeira homenagem, deve ser considerada como um dos melhores exemplos que existem de importação de uma obra prima de uma lingua para outra. Quem ler o Quixote na tradução de Aqulino esta na verdade a matar dois coelhos duma cajadada so : lê um classico universal, lê uma obra-prima da literatura portuguesa.

Abraços,

joão viegas

Rui Baptista (google) disse...

Meu Caro João Viegas: Não queria que pudesse pensar ser por mim interpretado o seu conselho para a leitura da obra-prima de Cervantes como uma "boutade". Bem pelo contrário!

Julgo, por outro lado, que ninguém, que pugne pela elevação do nível cultural do povo, possa ter feito essa errada e injusta interpretação. “A contrario”, o seu avisado conselho serviu para eu lamentar, apenas, a sua inexequibilidade. Desde o século XIX até a este dealbar de século, “um dos maiores males de Portugal é a ignorância.

Aliás, a verdadeira Cultura na Península Ibérica ,e mesmo para além dos Pirenéus, sempre teve o menosprezo de políticos incultos e ignorantes: Camões e Cervantes morreram na miséria. Mais chegado ao nosso tempo, Pessoa, com uma vida de dificuldades económicas, só teve o devido reconhecimento depois da morte…

O meu grande apreço pelo seu comentário, meu caro João Viegas, leitmotiv para este meu post, teve o (grande) mérito de reavivar a necessidade da criação de uma Ordem dos Professores que dê a garantia de um ensino sério para cuja programação tenham voz activa os docentes (devidamente titulados como professores), actores de uma profissão de interesse público.

Por último, como prova do ensino das grandes obras de literatura ser ministrado através de simples sinopses, transcrevo este naco de prosa que seria burlesco não se desse o caso de ser trágico:

“Como se avalia este professor, ouvido há tempo numa livraria: - Bom dia, queria a Aparição do Fernando Pessoa. - Desculpe do Vergílio Ferreira – Francamente, quer-me ensinar a mim que dou aulas de português há 15 anos? Há pessoas que não deviam estar em certos lugares.(Caricato??? Mas verdadeiro. É piada ainda hoje nessa livraria) Conversa entre mim e uma professora sobre a questão dos A.T.L. – haaaaa! Conheço-a bem (refere-se a Maria Montessori) ainda o ano passado estive com ela numa acção de formação. (incrível mas verdadeiro) conversa entre mim e a colega que dá a cadeira de Português – Não li os Contos Exemplares nem vou ler. Eles (alunos) que leiam. Já comprei um estudo de obra para lhes dar aquilo. – E como vais dar se nunca leste nem analisaste?- Da mesma forma que dei o Felizmente há luar, pelos resumos. (Sem comentários)” .

Estarei a ser demasiado pessimista? Tive um grande amigo já falecido, de seu nome José Viegas, que me dizia: “Prefiro ser um pessimista que se engana, a ser um optimista que se engana!” Daí, talvez, a origem do meu justificado pessimismo…

Um abraço amigo.

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...