quarta-feira, 30 de março de 2011

O primeiro projecto de investigação pedagógica em Portugal

Como se sabe, nos Jardins-Escola João de Deus, que agora comemoram um século de história escolar, para se ensinar as crianças a ler usa-se um livrinho que se chama Cartilha Maternal ou a Arte de Ler. Este livrinho que João de Deus começou a redigir em 1870, que cinco anos mais tarde já era usado em versão provisória para alfabetizar mais novos e mais velhos, e que apareceu publicado em 1987 (apesar de a 1.ª edição ter no frontispício a data do ano anterior), cedo se percebeu ser “uma das obras mais notáveis da pedagogia portuguesa” (Rómulo de Carvalho 1996, 607). E logo desencadeou acesas críticas: “umas calmas, serenas e objectivas; outras talvez exageradamente laudatórias; e outras ainda apaixonadas e virulentas em demasia” (Joaquim Ferreira Gomes, 1976, 17). Assim, quando a Cartilha já estava a ser usada em cerca de 600 escolas, foi solicitada à Câmara dos Deputados a realização de um teste experimental, que permitisse afirmar, de uma vez por todas, a sua eficácia ou a sua ineficácia. Por portaria do Diário do Governo de 12 de Dezembro de logo 1879 foi determinado que esse teste seja realizado:
“Convindo verificar, por meio de uma rigorosa e imparcial confrontação, se o método de aprender a ler de João de Deus tem reconhecida vantagem e superioridade sobre os métodos anteriormente seguidos nas escolas primárias:
Atendendo a que a aludido método tem sido posto em prática por diferentes professores em diversas escolas e favoravelmente apreciado pelo público, subsidiado pelas municipalidades e recomendado por algumas juntas gerais de distrito em vista dos resultados da sua aplicação;
Atendendo a que muito importa promover e auxiliar todos os dês cobrimentos úteis, principalmente os que têm por fim o primeiro de todos os interesses sociais, que é o da instrução e educação da mocidade;
Atendendo a que, para ser sincera e demonstrativa, a confrontação entre os indicados métodos deve efectuar-se de modo que experimentalmente, e sob a inspecção do Estado, se possa reconhecer qual desses métodos merecem preferência:
Há por bem Sua Majestade El-Rei determinar o seguinte:
1. Serão escolhidas na capital 60 crianças que tenham a idade de seis a 14 anos completos, e que sejam analfabetas. Essas crianças serão divididas em três classes: a primeira de seis a nove anos, a segunda de dez anos até 12, e a terceira de 13 até 14 anos; e depois distribuídas por dois grupos de 30 cada um, tiradas à sorte e de modo que em cada grupo haja igual número de crianças de cada classe. A cada criança será abonada a retribuição de 40 réis por dia de frequência. Em cada dia de falta ser-lhe-á descontada a retribuição correspondente a dois dias;
2. Um dos grupos de 30 crianças será ensinado pelo método João de Deus, e o outro pelo método usual num edifício apropriado e próximo do centro da cidade;
3. Os cursos dos dois grupos começarão no mesmo dia, e a aulas serão no mesmo local, à mesma hora e com a mesma duração. As casas das aulas deverão ter quanto possível iguais condições de capacidade, de luz e de comodidade;
4. Os cursos serão regidos por professores designados pelo governo dentre os melhores mestres tanto públicos ou particulares que em Lisboa ensinarem pelos dois métodos Para este fim o comissário dos estudos de Lisboa e o autor do novo método enviarão ao governo uma lista tríplice dos professores que julgarem mais aptos para a regência dos referidos cursos. Os cursos serão diurnos e duração por tempo de três a seis meses.
5. Uma comissão especial, nomeada pelo governo, será encarregada de seguir paralelamente os dois cursos e de os inspeccionar com o maior rigor, mantendo perfeita igualdade nas condições das duas escolas;
6. Os professores nomeados para dirigir as duas escolas, sendo públicos, receberão uma gratificação além do respectivo ordenado, e sendo particulares, e sendo particulares uma remuneração igual e condigna;
7. Expiados os primeiros três meses dos cursos, proceder-se-á a um exame nas duas escolas consecutivamente. A este exame presidirá uma comissão especial inspectora, a qual poderá dirigir aos alunos todas as interrogações que julgar convenientes e ordenar todos os exercícios que lhe parecer;
8. Se em resultado do exame do 1.º trimestre não se puder ajuizar da preeminência de qualquer dos métodos renovar-se-ão os cursos experimentados por mais três meses. Findo o 2,º trimestre, proceder-se-á a 2.º exame, guardando-se nele as disposições do número antecedente;
9. Depois de realizado o 2.º exame, a comissão especial redigirá um relatório minucioso com o seu juízo comparativo sobre os dois métodos: Este relatório será enviado ao governo. Cada criança interveniente na experiência receberia.”
Joaquim Ferreira Gomes (1976) afirma estar delineado neste documento o primeiro projecto português de investigação experimental em pedagogia. Infelizmente falhou o passo seguinte, que era o da sua concretização, e não por falta de João de Deus, que prontamente indicou, como lhe tinha sido solicitado, o nome dos três professores. É ele mesmo que explica o que aconteceu (in A Cartilha Maternal e a Crítica, ps. 240-241 e Cartilha Maternal, 5.ª ed., Apêndice, p. 16):
“Tendo-se passado meio ano sem ainda se proceder ao confronto do meu método de leitura com o chamado método usual (…) e tendo-se nessa expectativa deixado de tomar, em câmaras e juntas de distrito (…) deliberações favoráveis à propagação do meu método, com prejuízo meu, da desgraçada infância e de todo este país, onde os analfabetos constituem os noventa e cinco por cento dos habitantes – graças ao método oficial (se assim se pode chamar ao das Escolas Normais) e outros semelhantes; não sendo justo que eu conserve por mais tempo obrigadas às suas promessas as pessoas se me prestaram a reger o curso pelo método da Cartilha Maternal, pondo-as assim em embaraços no governo da sua vida, como já sucedeu com a professora que rejeitou um excelente partido para fora do reino; tenho a honra de participar que retiro os três nomes que dei em meu ofício de vinte e três de Dezembro e me declaro estranho a todo o estudo particular ou confronto a que por acaso se haja de proceder oficialmente."
Referências: - Carvalho, R. (1996, 2.ª edição). História do ensino em Portugal: desde a fundação até ao regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. - Ferreira Gomes, J. (1976). Algumas reacções em torno da “Cartilha Maternal” de João de Deus. Revista Portuguesa de Pedagogia, Ano X, 3-57.

3 comentários:

باز راس الوهابية وفتواه في جواز الصمعولة اليهود. اار الازعيم-O FLUVIÁRIO NO DESERTO disse...

de certo modo é uma elegia ao ensino privado

Anónimo disse...

Entre outras muitas lembranças,
Coimbra fê-lo doutor
"honoris causa" em louvor
do seu amor às crianças!

JCN

Anónimo disse...

Como diz Manuel Bandeira,
em atenção ao João,
por muito que não se queira,
toda a sua geração
de poetas de craveira
foi de Deus por extensão!

JCN

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