quarta-feira, 23 de março de 2011

ESTEIROS


É notável que Esteiros, o romance de Soeiro Pereira Gomes escrito durante as agruras da Segunda Guerra Mundial tenha chegado, com sucessivas edições, até aos nossos dias: faz este ano seis décadas e ainda não chegou a idade de ser esquecido. O livro dedicado aos “filhos dos homens que nunca foram meninos”, deve o seu título, como o autor explica logo a abrir, aos “minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga." A metáfora é, portanto, a da forte ligação entre o homem e a Natureza: o rio é uma grande mão, cujos dedos se ligam aos dedos e mãos de um grupo de rapazinhos pobres, que são desumanamente explorados no fabrico de telhas e tijolos a partir da argila do rio. Se o rio por um lado dá a mão, fornecendo um mísero sustento, por outro lado essa mão aperta como numa tortura. E outras mãos apertam o destino dos operários. A sucessão das estações de um só ano fornece o quadro temporal. Começa no Outono, com o frio: “Fecharam os telhais. Com os prenúncios do Outono, as primeiras chuvas encheram, de frémitos o lodaçal negro dos esteiros, e o vento agreste abriu buracos nois trapos dos garotos, num arrepio de águas e de corpos (...) mas o sol andava baixo: não calcinava o tijolo, nem as carnes juvenis da malta”. No final, é Verão e, depois de muitas desventuras, um dos rapazes, o Ginete, está preso por roubo. É então que um dos seus amigos, por quem ele chama, vai à procura do pai (eventual activista político), ficando uma esperança, ainda que vaga (a censura da época não permitia dizer muito mais), de liberdade: “Gaitinhas-cantor vai com o Sagui correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E, quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais – moços que parecem homens e nunca foram meninos”.

Soeiro Pereira Gomes (1909-1949) conviveu, em Alhandra, com esta mão de obra infantil, a quem, para além de tudo o resto, faltava a esperança. Embora Portugal não tivesse entrado directamente na guerra, eram dias duros esses que se viviam Portugal, tal como os do pré e pós-guerra. O autor não era nem da beira Tejo nem pobre como os meninos, mas a aventura da vida tinha-o colocado nos escritórios da Fábrica de Cimentos Tejo, que ainda hoje lá está, à beira da A1, depois de ter nascido em terras do Norte, em Gestaçô, Baião, de uma família de agricultores minimamente abastados (uma sua irmã, Alice Gomes, foi autora de livros infantis, tendo casado com outro escritor, Adolfo Casais Monteiro, que se exilou no Brasil, e um seu irmão, Alfredo Pereira Gomes, foi um professor de Matemática, também exilado no Brasil), de ter ido à escola em Ovar e de ter acabdo o curso de regente agrícola na Escola Agrária de Coimbra, onde casou. Ainda tentou, como o seu colega do movimento neo-realista Alves Redol (1911-1969, o centenário do nascimento comemora-se este ano), singrar em Angola, mas a vida colonial não lhe correu bem. Acabou por encontrar emprego na empresa cimenteira, onde o sogro já trabalhava. Envolveu-se na actividade do Partido Comunista, de um modo cada vez mais progressivo que o levou a entrar na clandestinidade. Só sobreviveu oito anos ao seu primeiro e único livro publicado em vida, por ter sucumbido ao cancro do pulmão (sim, fumava muito). O Partido Comunista, que tem hoje sede na Rua Soeiro Pereira Gomes num edifício que ostenta também o mesmo nome, não cessou de homenagear a sua memória. Tenho em mãos uma edição das Edições Avante!, de 1979 (com uma introdução de Isabel Pires de Lima, professora da Universidade do Porto), que reproduz os desenhos feitos por Álvaro Cunhal para a edição original da Sirius. Há, de resto, uma foto que mostra Cunhal com Pereira Gomes a bordo de um barco no Tejo, onde os militantes se encontravam. Cunhal estava, em 1941, fora da prisão, embora no ano anterior ainda lá estivesse: foi sob escolta fazer exame de finalista na Faculdade de Direito de Lisboa, onde Marcelo Caetano o examinou a sua tese sobre a questão do aborto. Em 1941 governava Salazar com mão de ferro e na cultura havia mão de Ferro. António Ferro tinha ajudado a erguer em 1940 a Exposição do Mundo Português, em Belém, que António Lopes Ribeiro filmou. O mesmo cineasta filmou uma grande manifestação no Terreiro do Paço de apoio a Salazar na Primavera de 1941, ano da estreia do seu filme O Pai Tirano. O palco principal da guerra estava longe, mas, na altura, com os panzers de Rommel a avançar no deserto, parecia que a Alemanha ainda a poderia ganhar. O conflito passava por Portugal: Lisboa era um ninho de espiões e, na província, havia minas de volfrâmio divididas por alemães e ingleses.

O movimento neo-realista tinha surgido à margem da cultura oficial. Redol tinha publicado em 1939 a obra que o inaugura: Gaibéus, ainda sobre os trabalhos no rio Tejo, embora nos campos mais a montante. E, em 1941, surgia em Coimbra o Novo Cancioneiro, incluindo a poesia neo-realista de Manuel da Fonseca (1911-1993, o centenário do seu nascimento também é este ano) e de Joaquim Namorado (que foi professor de Matemática da minha Faculdade em Coimbra). O neo-realismo, em oposição ao psicologismo e subjectivismo do modernismo português, queria de certo modo recuperar o realismo e o naturalismo dos finais do século XIX, mas acrescentado agora de um desejo de profunda transformação social. A inspiração literária provinha, entre outros, de Máximo Gorki, que tinha retratado o mundo soviético, ou, na língua portuguesa, de Jorge Amado (há quem tenha encontrado laços entre Capitães da Areia, uma das primeiras obras de Amaro, e Esteiros). Não se tratava tanto de retratar o homem e o mundo, mas mais de intervir para que o homem oprimido se libertasse no mundo. Mereceria comentário alargado a questão do papel social da literatura, que por alturas do 25 de Abril foi badalada à exaustão, mas aqui não há espaço. Como disse Luigi Nono, músico comunista italiano, para os revolucionários o “supremo acto cultural” devia ser a Revolução. A censura durante muitos anos esteve vigilante a prevenir a eventual revolução, de modo que as palavras pensadas tinham de ser medidas antes de serem escritas.

Porque resistiram à erosão do tempo as palavras de um livro que parece à primeira vista tão datado? Acontece que começou por ser bem recebido. João Gaspar Simões, o crítico que esteve de serviço à literatura nacional durante muitos anos, louvou o romance pouco depois de ele sair, embora fazendo notar que ele sobressaía mais pela falta de concorrência do que por mérito próprio. Poder-se-á também dizer que um romance sobre crianças condenadas à miséria é singular no panorama literário nacional, despertando emoções particulares. Depois, ou talvez sobretudo, há a componente política. Por razões mais ideológicas do que estéticas, o romance entrou para o cânone escolar, sendo de leitura obrigatória na escola, depois do 25 de Abril, para só sair, talvez ainda por razões ideológicas, passados alguns anos. Por isso, muita gente, mais ou menos jovem, o leu ou, pelo menos, teve obrigação de o ler.

De facto, o romance está bem escrito, sempre percorrido por metáforas que conseguem ligar o homem e a paisagem, sempre comunicando a mensagem da "exploração do homem pelo homem". Os excertos sobre uma cheia afogadora de muitas vidas (que ocorreu mesmo no Tejo em Fevereiro de 1941) são impressionantes. Como o são os excertos sobre a necessidade de as crianças roubarem para conseguirem sustento. Vale a pena terminar com um excerto da prosa de Pereira Gomes: “Calaram-se. Barcos, pombas e poente, toda a paixão daquele fim de tarde, entravam pelos olhos dentro do Gaitinhas, extasiado. Gineto, porém, só via os esteiros longos dos telhais, como dedos de mão arrepanhando águas. Os esteiros e as chaminés esguias das fábricas, que o crepúsculo enegrecia ainda mais.”

4 comentários:

Maria João disse...

O que é lamentável é que ano a pós ano as listas do PNL sejam mexidas e que Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Aquilino Ribeiro e outros sejam sistematicamente esquecidos do Cânone dos livros recomendados, estranho, não acham?

tempus fugit à pressa disse...

infelizmente as fábricas foram-se

esta é a geração dos homens que sempre foram crianças

ou das velhas crianças que nunca foram homens

tempus fugit à pressa disse...

não o plano nacional de leitura

é similar ao plano do estado novo de criar autores e textos para todos os imberbes

a estopada dos maias ou os 14 cantos e os 6 penaltys dos lusíadas

afastaram mais gente da leitura dos ditos clássicos

Porque não camilo porque não variar

porquê as mesmas nostalgias por autores que pouco dizem à actual maralha

Cânones INDEX ...etc etc preciosismos

recomendar sem explicar porquê e para quê

o que é que isto diz?

Catarina disse...

Estudei «Esteiros» como aluna, em 1976, embora já tivesse lido o livro antes disso. Quando comecei a ensinar, em 1985, talvez ainda estivesse no programa, mas nunca cheguei a dá-lo, talvez por desencontro de anos. Nos últimos 10 anos, «Esteiros» e os «Contos Vermelhos» de Soeiro Pereira Gomes estão na lista de livros que dou aos meus alunos do 9º ano, para as suas leituras. A lista do PNL não é vinculativa, faça-se-lhe essa justiça.
Não são os clássicos os inimigos da leitura. Nem «Os Maias» são estopada, nem o pouco que (ainda) se dá de «Os Lusíadas»». Inimiga da leitura é a sucessiva amputação da lista de obras de leitura orientada em aula, para tornar o ensino «mais apelativo».Quando dou aos meus alunos de 8º ou 9º anos excertos da «Carta de Pêro Vaz de Caminha», de Padre António Vieira, de Eça de Queirós, eles gostam e querem mais. Completo as parcas listas que aparecem nos manuais do secundários com mais títulos, de grandes clássicos da literatura nacional e mnudial e tenho, neste momento, alunos a ler Dumas Pai, Jane Austen, Camilo, Garrett, Charlote Bronte, Bram Stoker, Tolstoi, Tchekov...

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